
Negociacoes de paz na Havana. Ramon Espinosa / AP/Press Association Images. All rights reserved.
Nos acordos preliminares que foram alcançados na Havana, o Governa da Colômbia e a guerrilha das FARC manifestaram abertamente a sua intenção de promover a participação cidadã na construção da paz territorial. Os pontos até agora acordados, referentes à reforma rural integral, participação política, a solução para o problema das drogas ilícitas e o tema das vítimas, refletem a importância do envolvimento cidadão ao reconhecer que a “construção da paz é (um) assunto da sociedade no seu conjunto que requere a participação de todos sem distinção” (Acordo Geral, 2012, página 1).
Ditos acordos comtemplam a participação das comunidades em assuntos que vão desde a elaboração de planos e programas locais, como os Planos de Desenvolvimento desde uma perspectiva territorial até à vigilância, seguimento e controlo do seu efetivo cumprimento, reconhecendo nela um complemento e um mecanismo de controlo dos sistemas de representação política e da administração publica. Neste sentido, este processo de paz abre as portas a uma oportunidade para fortalecer a democracia através do envolvimento diretos das comunidades nos processos de gestão.
Contudo, aproveitar plenamente essa oportunidade e honrar a intenção manifestada nos acordos não será possível senão se reconhecerem os desafios que implica envolver a cidadania nos assuntos públicos no mundo de hoje, e se definam os esquemas de construção da esfera pública em função dessa realidade. Isto supõe, entre outras coisas, identificar o contributo das inovações democráticas recentes para reduzir a distância entre a cidadania e o Estado, especialmente daquelas inovações que tiram partido do potencial das tecnologias da informação e das comunicações (TIC).
Os desafios da participação cidadã nas democracias representativas
O mundo contemporâneo foi descrito como um lugar de relações fragmentadas, espaços públicos vazios, laços sociais flexíveis e indivíduos protetores dos seus próprios tempos e ritmos. Um lugar, onde segundo Ken Newton (2012), preponderam formas mais diretas e individualizadas de participação, que se distanciam das estruturas formais e tradicionais, e onde os cidadãos estão menos dispostos a investir enormes quantidades de tempo em discutir assuntos públicos ou a comprometer-se com a sua transformação, tal e como se promove sob os formatos atuais.
A dissonância entre este panorama e as estruturas rígidas dos sistemas políticos democráticos contribui ao que muitos especialistas diagnosticaram como uma democracia representativa em crise. Os altos níveis de abstenção eleitoral, a baixa confiança dos cidadãos nas instituições públicas, a diminuição da afiliação a organizações e a apatia perante a esfera pública ajudam a confirmar e difundir a ideia de uma democracia desgastada, na qual a distância entre governo e cidadãos se está a tornar cada vez maior.
Dados como os publicados pelo Projeto de Opinião Pública da América Latona (LAPOP) e o Barômetro de Capital Social (Barcas) reforçam estas afirmações no caso da Colômbia. De acordo com o LAPOP, em 2014 somente 9.6% da população afirma ter assistido a uma reunião municipal nos doze meses prévios a sondagem, e o nível médio de confiança nos governos locais obteve uma pontuação entre 40.1 e 45 numa escala de 0 a 100.
Em matéria de participação cívica, por exemplo, entre 2005 e 2011 o Barcas revela uma diminuição porcentual dos cidadãos vinculados a atividades voluntarias e uma queda na afiliação a organizações seculares, especialmente agrarias e camponesas. Assim mesmo, a participação política regista uma queda derivada do menor envolvimento cidadão em espaços como os concelhos de desenvolvimento rural, as veedurías cidadãs (mecanismo de participação social), os concelhos abertos e os conselhos territoriais de planeamento.
Em resposta a esta situação, os projetos de modernização e transformação do Estado levados a cabo por alguns países do Ocidente apostam, entre outras coisas, pela promoção e pelo fortalecimento da participação direta da cidadania na esfera pública. Contudo, assumir esse desafio e reivindicar o lugar das práticas democráticas na vida quotidiana requere em primeiro lugar superar a noção da participação cidadã presencial, comprometedora, puramente deliberativa, altamente informada e complexa, que é capaz de vincular os cidadãos que se supõe motivados. Neste sentido, parece importante pensar em formas de envolvimento mais práticas, menos custosas e complexas, mais conectadas com os desafios das instituições públicas, e mais claras e transparente nos seus objetivos e alcance.
O papel das TIC na transformação das formas de relacionamento entre Estado e Cidadania
As TIC transformaram as dinâmicas de relacionamento entre os indivíduos na vida cotidiana, pelo que não surpreende que sejam tidas também como uma via para modificar a relação dos cidadãos com os seus governos e as sus instituições. Especialistas no tema, como Archon Fung, chegaram à conclusão que ao abrir novos canais de comunicação, que o seu uso neste âmbito tem potencial para transformar a forma como os cidadãos incidem na esfera pública e a forma em que interatuam entre sim, com as organizações que os representam e com os governantes e instituições públicas.
Pese à pouca avaliação que se fez sobre os efeitos do uso destas ferramentas no fomento do envolvimento cidadã, está claro que têm o potencial para alterar as dinâmicas de relacionamento entre o Estado e cidadania. Isto afeta o balance de poder entre as partes, ao tornar os cidadãos menos dependentes dos canais institucionais para fazer-se ouvir e dar-lhes a possibilidade de desempenhar um papel mais ativo e direto na esfera pública.
As TIC abrem novos canais de comunicação e acesso à informação, reduzem as limitações espaço-temporais da interação presencial, modificam os requisitos de capital social, facilitam o contato entre indivíduos desconhecidos e distantes e permitem diversas formas de expressão de opiniões e manifestações de preferencias.
Os orçamentos participativos digitais dos municípios de Belo Horizonte e Rio Grande do Sul no Brasil, o sistema de seguimento e monitorização do Banco Mundial através de mensagens de texto Ontrack, utilizado na Bolívia, Uganda, Tanzânia e Nepal, os processos deliberativos em linha promovidos por governos locais na Alemanha e na Itália, o uso de jogos de role 3D para o desenvolvimento de exercícios de planeamento e renovação urbana no Estados Unidos, e as iniciativas governamentais de crowdsourcing como o Peer-to-Patent Project, são alguns dos exemplos do uso das TIC no marco desde tipo de processos.
Participação Cidadã, as TIC e a construção da paz
A superação de mais de cinquenta anos de conflito armado, o êxito da reconciliação nacional e a prevenção de novos ciclos de violência implicam reconhecer e abordar os efeitos que estes fenômenos tiveram sobre a nossa cultura, e apostar decididamente em pôr em prática um processo de transformação profundo das nossas formas de relacionamento social.
As plataformas digitais, as aplicações moveis e em geral os diferentes canais de comunicação, que habilitam tanto o acesso à informação como a interação de dupla via, permitem aos cidadãos conhecer, dialogar e interatuar com outras visões do mundo. O conflito afetou a possibilidade de diálogo entre diferentes, no que se refere ao desafio de construção de paz e de participação é abrir e possibilitar espaços que contribuam ao reconhecimento das diferenças e à identificação de pontos tanto de convergência como de divergência no marco de processo de construção coletiva.
Neste sentido, pôr em funcionamento cenários digitais pode ser uma via interessante para promover o encontro inicial entre grupos, pessoas e atores que, pela sua história de conflito e pelas representações mutuas que se derivam do mesmo, podem estar reticentes a iniciar processos de interação no marco de cenário presenciais de participação. Jogos virtuais de role como Participatory Chinatown, exemplificam a forma como a tecnologia contribui para o fortalecimento do raciocínio empático e modificação de preferencias iniciais a favor do bem-estar coletivo.
Desafios
Se bem que o desenho de estratégias e espaços que promovem o envolvimento da cidadania não se pode ignorar o lugar das ferramentas digitais, este também não pode ter lugar sob a base de falsos preceitos ou olhares ingénuos. A continuação mencionam-se três elementos chave a ter em conta no caso da Colômbia.
Transformações institucionais
Uma das principais razoes do desencanto com os espaços de participação é a baixa incidência que têm as interações entre a cidadania e o Estado, aspecto que depende menos das ferramentas digitais e da inovação tecnológica e mais do desenho de sistemas de gestão pública capazes de dar resposta de qualidade às demandas cidadãs. Ativar processos de participação efetivos e de qualidade, já seja em cenários presenciais ou virtuais, requere que o governo seja claro frente à forma como os gastos derivados destes processos contribuíram à toma de decisões.
Nesta via também é necessário avançar na incorporação da participação cidadã como elemento essencial do modus operandi das agências governamentais e difundir nela a noção de que a participação é funcional e de que é uma forma efetiva e legitima de trabalhar na construção da esfera pública.
Inclusão
Um dos poucos estudos que se realizaram sobre o impacto das TIC no desenvolvimento de processos participativos, elaborado por Tiago Peixoto, estabelece que estas ferramentas não promovem necessariamente a inclusão das populações vulneráveis ou tradicionalmente excluídas. Pelo contrário, nos casos avaliados, ditas ferramenta parecem ser mais efetivas para a ativação de segmentos tradicionalmente não participantes dentro de grupos que poderiam ser classificados como “privilegiados” (mais educados, com níveis socioeconômicos mais altos, etc.).
Esta consideração é importante, uma vez que quer dizer que é necessário pensar nas TIC desde uma perspectiva que inclui médios que vão desde a radio e a televisão, até dispositivos mais sofisticados como os telemóveis inteligentes. Pelo contrário, o uso das TIC para promover dinâmicas de envolvimento cidadão terminará por contribuir à reprodução das inequidades que se querem transformar.
Assim mesmo, e desde a perspetiva da conjuntura colombiana atual, é importante defender o argumento de que a construção de paz não é só uma responsabilidade das populações vulneráveis. As TIC são uma opção para envolver e abranger segmentos da população que, apesar de não serem os mais afetados pelo conflito, tem muito que contribuir frente ao desafio coletivo que significa superar meio século do conflito armado. Assim mesmo, é necessário pensar na ativação e mobilização de ditos segmentos tendo a proximidade da confirmação dos acordos, o qual requererá o apoio massivo da cidadãos em geral e não só dos habitantes das zonas de conflito.
Reconciliação
O uso das TIC tem potencial tanto para reivindicar como neutralizar identidades e pode, dependendo do seu alcance e mecanismos, contribuir para a construção coletiva ou para a polarização. Nesse sentido, o critério de reconciliação tem que atravessar os processos de desenho dos espaços e mecanismos de interação, tanto presencias como virtuais.
A escolha da aproximação mais adequada dentro do espetro de possíveis opções, que vão desde a abertura de espaços de interação presencial que favoreçam o encontra cara a cara entre diferentes atores, até a promoção de cenário de interação virtual com acesso restringidos e participantes anónimos, dependa das características do contexto, dos temas a serem tratados e dos atores que estão a ser chamados a expressar a sua voz.
Por exemplo, nos lugares onde continua a haver um alto risco de segurança para alguns atores sociais, especialmente em redor dos temas de restituição de terras ou reparação das vítimas, o uso de plataformas nas que se garante a proteção da identidade dos participantes pode ser útil nas fases de diagnóstico ou privatização de alternativas. O anterior, na medida em que as ferramentas digitais se têm vindo a mostrar uteis para a expressão livre de posturas e opiniões que não seriam facilmente comunicáveis num espaço presencial.
Finalmente é importante ter em conta que a apertura de canais de interação entre a cidadania e o Estado, e inclusivamente dentro das mesmas comunidades, implica ante tudo vencer o medo ao conflito social e repensar o lugar dos cidadãos na sua resolução. Para que isso aconteça é necessário começar por descentralizar a discussão sobre a participação cidadã e abrir um diálogo propositivo a nível local que dê uma ideia de como fazer com que as ferramentas digitais joguem a favor duma melhor relação entre as comunidades e os governos locais, agentes sobre quem seguramente recairão múltiplas responsabilidades na fase de implementação dos acordos.
Este texto recolhe as aproximações centrais desenvolvidas em maior detalhe no documento “Conectados pela Paz”, publicado pela Fundação Ideias para a Paz em novembro de 2015. O documento espanhol pode ser consultado em: http://www.ideaspaz.org/publications/posts/1256
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