
Pixabay. Domínio público.
Desde há uns anos que assistimos ao aparecimento do poder relacional, da transversalidade, da participação. Este é o fundamento que dá sentido e protagonismo à tecnopolítica, base sobre a qual se conceitualiza e se adopta uma nova visão da democracia: mais aberta, mais directa, mais interactiva. Um marco que supera a arquitectura fechada sobre a qual se cimentaram as praxis da governança (fechadas, hierárquicas, unidireccionais) em quase todos os âmbitos. Esta serie sobre “O ecossistema da democracia aberta” pretende analisar os diferentes aspectos desta transformação em movimento.
O impacto gerado pelas plataformas digitais nos últimos anos afecta todos os âmbitos e tipos de organização. Desde a produção ao consumo, desde os partidos políticos aos movimentos sociais, desde as empresas à Administração Pública, os sindicatos, a universidade ou os meios de comunicação de massas. A disrupção é transversal e intergeracional. A autogestão por parte do utilizador/a e a desintermediação são sem dúvida as grandes cartas comuns – ao menos discursivamente – de todas elas. As pessoas, através da tecnologia, têm mais capacidade para participar activamente os processos que se vinculam a uma determinada actividade. Por isso, falamos muitas vezes das plataformas digitais como um instrumento para democratizar a participação, já que as mesmas superam as tiranias do espaço e tempo tradicionais. De qualquer forma, se as analisarmos em detalhe e nos focarmos nas organizações que as promovem, dar-nos-emos conta que a melhora da participação democrática tem vários níveis de cumprimento e abordagens com lógicas diametralmente diferentes.
Cooperativismo e pró-comum digital
Fairmondo é um mercado virtual, similar à Amazon. Uma observação rápida desta plataforma de origem alemão pode ser suficiente para mostrar a relevância actual do projecto, um dos mais paradigmáticos do cooperativismo de plataforma (conceitualizado e popularizado por Trebor Scholz e Nathan Schneider) ou do cooperativismo aberto (conceitualizado por Michel Bauwens e a P2P Foundation). Realmente, Fairmondo é una cooperativa digital propriedade dos mesmos utilizadores que, além disso, são seus accionistas.
O impacto gerado pelas plataformas digitais nos últimos anos afecta todos os âmbitos e tipos de organização. Desde a produção ao consumo, desde os partidos políticos aos movimentos sociais.
O ADN da iniciativa é o código aberto, a inovação e a sociedade dos bens comuns. Lançada em 2013, uma serie de campanhas de microfinanciamento, com centenas de milhares de euros de capital angariado, permitiram o seu desenvolvimento. Apesar de que a dimensão da proposta, com mais de 12.000 membros e dois milhões de produtos, é global, a sua lógica é local. Com esta determinação, Fairmondo começou a configurar-se como uma federação de cooperativas locais em todos os países onde se estabelece uma organização. Ao contrário da Amazon, a governança democrática tem um papel chave no seu funcionamento.
A partir deste caso paradigmático, podemos observar diferentes tipologias de plataformas tecnológicas que estão determinadas, com frequência, pelo modelo económico que promovem. Neste sentido, podemos ligar o papel da tecnologia como um espaço de interacção entre iguais (P2P) com a emergência da Economia Colaborativa. Em qualquer caso, ao tentar realizar uma análise crítica, como assinala Mayo Fuster, é fundamental perguntarmo-nos pelo modelo de negócio (basicamente, para distinguir projectos como o seu animo de lucro), o tipo de tecnologia (de código aberto ou fechado; quer dizer, replicável democraticamente ou não) e pelo acesso ao conhecimento gerado (para observar se são dados públicos ou privados). Nesta trilogia podemos situar uma nova dimensao: a governabilidade da plataforma que, quase sempre, está intrinsecamente ligada à organização que a promove. Por este motivo, parece-nos imprescindível que, no momento de situar o papel democratizador duma plataforma tecnológica, analisemos holistamente a sua aproximação económica, social e política. A revisão critica de cada projecto é especialmente pertinente num campo de jogo onde já não só a cidadania actua como consumidora de produtos ou serviços, mas também como produtora ou oferecendo os seus próprios bens. Nalguns casos, já se denunciou o facto de que algumas plataformas digitais geram precarização e desprotecção laboral entre aqueles que oferecem serviços por esta via. A aplicação da Uber exemplifica este risco. O impacto social comunitário derivado também não pode permanecer alheio à valorização em termos de democratização. Neste sentido, um novo caso paradigmático como é Airbnb mostra o impacto, em termos de deslocalização cidadã, que provoca a sua actividade. Quer dizer, mais além de observar a plataforma como um instrumento para a troca de casas entre iguais, temos que analisar em detalhe o seu uso real e o seu impacto social e económico.
Em resumo, o cooperativismo de plataforma ou o cooperativismo aberto, já seja centrando-se na força social dos valores cooperativistas ou na necessidade de reapropriação dos bens comuns, apela a uma revisão detalhada e criticas das plataformas digitais no marco da sua acção local. Esta abordagem abstrai-se das análises globais do impacto da tecnologia que, às vezes, camuflam a réplica de modelos (com grande similitude a organizações verticais e hierárquicas) que geram ambientes digitais pouco democráticos.
O cooperativismo de plataforma ou o cooperativismo aberto, já seja centrando-se na força social dos valores cooperativistas ou na necessidade de reapropriação dos bens comuns, apela a uma revisão detalhada e critica das plataformas digitais no marco da sua acção local.
A Teixidora, uma plataforma digital democrática
Uma vez observados os riscos da valorização parcial do impacto da tecnologia e as chaves para a sua análise, voltemos ao ponto de partida: a democratização da participação. Determinada a relevância da avaliação local de ferramentas digitais globais, vejamos agora no caso da plataforma digital multimédia A Teixidora, que – devido à sua caracterização – permite sintetizar os aspectos que configuram, no nosso entender, a participação democrática.
Esta iniciativa, que se pôs em movimento a princípios de 2016 em Barcelona, organiza a estrutura colaborativa, em tempo real, com o objectivo de cartografar o conhecimento distribuído gerado em diferentes partes da cidade durante conferencias, encontros, workshops e outros formatos de reuniões offlines vinculados à tecnopolítica e ao pró-comum. Para isso, apropria-se de várias ferramentas (editor colaborativo, wiki, espaços de armazenamento de conteúdos) de código aberto. Além disso, utiliza uma licença de Creative Commons que, reconhecendo a autoria, permite que qualquer pessoa possa adaptar os conteúdos, inclusive utilizá-los comercialmente. Duas aplicações significativas ilustram o valor das suas funcionalidades, à volta da democratização da participação:
- A Teixidora cobriu, com a participação dumas vinte pessoas, o debate de Economies Col·laboratives Procomuns (Março, 2016) que, uma vez classificadas, foram transferidas para a plataforma Decidim Barcelona, que foi utilizada para definir, através dum amplo processo participativo, o Plano de Acção Municipal do Câmara da Cidade.
- Ao mesmo tempo, a ferramenta serviu para seguir as quinze equipas que seguiram o programa de desenvolvimento económico A Comunificadora, que tem como objectivo promover projectos de transformação social, incentivando, por sua vez, o empreendedorismo. Através de a Teixidora, as pessoas participantes puderam estabelecer um espaço de troca de conhecimento entre elas, com os mentores, com os gestores públicos e com a cidadania em geral. Os conteúdos são abertos e reutilizáveis.
Em definitiva, ambos processos, graças à plataforma, não só nutrem propostas, como configuram um espaço de aprendizagem aberto. Por sua vez, cartografando a participação, prestam contas de forma transparente, o que melhora a qualidade democrática do processo impulsado pela Administração Pública. Ao mesmo tempo, a informação e aprendizagem à volta do seu uso está a servir para redesenhar a própria plataforma tecnológica e adequá-la às necessidades das suas comunidades.
Como pudemos observar, apesar de que as plataformas digitais tendem a criar espaços de interacção, sem intermediação, a sua natureza e a sua acção distingue-as enormemente. Por este motivo, é relevante criar instrumentos de análise que permitam uma revisão critica e a sua correcta classificação. Neste sentido, como afirma Matthieu Lietaert, no debate sobre as diferentes tipologias de plataformas digitais gerada à volta da Economia Colaborativa, é essencial mostrar qual é a razão e o impacto de cada uma delas. As plataformas unicórnio, de natureza corporativa de código e licenças privativas, reproduzem modelos socialmente injustos, enquanto que as plataformas cooperativas ou aberta se situam numa procura de espaços de transformação social e económica pró-comum.
Soberania tecnológica
As respostas a estas perguntas – que impacto económico e social gera uma plataforma digital? Quem é o proprietário do software e os dados que geram a sua utilização? Quem as governa? Qual é relação entre utilizador/a e proprietários? – são relevantes na discussão sobre o papel da tecnologia num ecossistema democrático aberto. No nosso entender, sem termos isto em conta, corremos o risco de nos equiparmos com ferramentas que reproduzem modelos de intermediação e governança hierárquicos e opacos. Por este motivo, como indica Bernardo Gutiérrez, é especialmente relevante o rumo que se tomou nalgumas cidades – especialmente nas chamadas “cidades rebeldes” –, onde a reacção está a ser dupla. Por um lado, interpela-se o papel social e económico dos novos actores – também o seu modelo de governança – e, por outro, promovem-se ferramentas tecnológicas de participação intermunicipais.
Que impacto económico e social gera uma plataforma digital? Quem é o proprietário do software e os dados que geram a sua utilização? Quem as governa?
Não deveria surpreender-nos que, no contexto duma reivindicação da autonomia das cidades, interconectadas em rede, e com a vontade de aumentar a sua capacidade de resiliência, a partir da reivindicação da recuperação das suas soberanias (analisando as fontes e os abastecedores de recursos de energia eléctrica ou hídrica ou a própria proveniência dos alimentos), a dimensão tecnológica represente uma nova dimensão inevitável a ter em conta na era da Sociedade Rede, ecossistema que, como diz Manuel Castells, está a redefinir as relações de poder.
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