
As línguas indígenas são fundamentais para entender quem realmente somos

As línguas constituem um dos maiores emblemas da diversidade humana, pois revelam as diferenças surpreendentes com as quais os seres humanos sabem perceber e se relacionar com o mundo e dar sentido a ele. Servem também de bibliotecas, nas quais encontramos nossa história coletiva, o conhecimento, a mitologia e as percepções de todo um povo. No entanto, essa diversidade está sendo perdida em um ritmo alarmante. Alguns especialistas ousam dizer que 90% das línguas do mundo estão em risco de extinção.
Por que a perda de línguas indígenas é preocupante? As línguas indígenas são fundamentais para entender o mundo em que vivemos, quem realmente somos e do que os seres humanos são capazes. Entenda como.
Por que a perda de línguas indígenas é preocupante? As línguas indígenas são fundamentais para entender o mundo em que vivemos, quem realmente somos e do que os seres humanos são capazes. Entenda como.
As línguas morrem porque as pessoas param de falar devido a pressões sociais, mudanças demográficas e forças externas. A colonização e o capitalismo globalizado foram, talvez, a principal causa do desaparecimento de línguas na história da humanidade, e esse legado ainda está vivo e ativo hoje. A Survival International lançou uma campanha contra as “Escolas-Fábrica” (internatos) que contribuem ativamente para a morte de línguas ensinando crianças indígenas no dialeto dominante ou na língua oficial do Estado e não em sua língua materna. Essa supressão cultural sistemática é uma ameaça à vida de milhões de crianças, suas famílias, comunidades indígenas e a sobrevivência de línguas em todo o mundo.
Embora haja cerca de 7.000 línguas faladas na Terra, cerca de metade da população mundial fala 23 línguas. Por outro lado, quase 3.000 línguas são consideradas ameaçadas, o que significa que quase metade da atual diversidade linguística do planeta está ameaçada.
Existe uma estreita correlação entre diversidade linguística e biodiversidade
A área linguisticamente mais diversa do planeta é a ilha de Nova Guiné, dividida entre o Estado independente de Papua Nova Guiné e Papua Ocidental, que está sob ocupação indonésia. Mil línguas são faladas em uma área de 786.000 km². Compare isso com a Europa, onde cerca de cem idiomas são falados em uma área de mais de dez milhões de km².
Existe uma estreita correlação entre diversidade linguística e biodiversidade; onde há mais espécies de plantas e animais é onde mais línguas são faladas. As línguas estão intimamente relacionadas com o ambiente em que são faladas, de modo que nessas áreas existe um conhecimento rico, detalhado e técnico da sua flora, fauna e habitat.
Quando os cientistas "descobrem" uma nova espécie, pode apostar o seu último centavo que os nativos daquela área já têm um nome para tal espécie e um profundo conhecimento sobre ela. Essas línguas são enciclopédias ecológicas e, como na maioria das vezes não são escritas, quando essa sabedoria e compreensão únicas deixam de ser faladas, elas se perdem para sempre. A diversidade biológica e a diversidade linguística andam de mãos dadas; se uma está ameaçado, a outra também.

Cerca de metade das línguas do mundo não tem forma escrita, mas isso não significa que elas não tenham cultura. Línguas não escritas são ricas em tradições orais; Histórias, canções, poesias e rituais são transmitidos de uma geração para outra e permanecem notavelmente consistentes e confiáveis ao longo do tempo. Os cientistas estão encontrando cada vez mais evidência de eventos que ocorreram há milhares de anos que são documentados e preservados graças à tradição oral indígena, transmitida e preservada de forma impressionante ao longo de centenas de gerações.
Nenhum ser humano na Terra fala uma língua "primitiva", porque tal coisa simplesmente não existe. Todas as línguas têm regras complexas e únicas de pronúncia, vocabulário e gramática que todos os seus falantes conhecem e entendem intuitivamente.
Em realidade, as línguas indígenas tendem a ser em geral as mais complexas, especializadas e idiossincráticas, especialmente aquelas faladas em áreas remotas por algumas centenas de pessoas. As grandes linguagens do mundo, como o inglês, o espanhol ou o chinês mandarim, são relativamente mais simples e, juntas, seguem padrões mais previsíveis. Por causa dessa singularidade, as linguagens mais ameaçadas são logicamente as que mais nos ensinam sobre a incrível amplitude e variedade da percepção e experiência humanas.
Algumas línguas indígenas mostram que a expressão humana não se limita à palavra falada. As mais famosas são talvez as línguas de tambor africanas, que permitem que mensagens sejam transmitidas entre comunidades a uma velocidade de mais de 160 quilômetros por hora.
Há também cerca de 70 línguas indígenas que podem ser assobiadas. Não é o mesmo que assobiar a melodia de uma música; são palavras e frases assobiadas com a mesma flexibilidade que a fala normal. Isso permite que as pessoas se comuniquem efetivamente em terreno montanhoso, no mar ou em uma floresta densa. É muito útil para caçar, porque soa como o trinado de um pássaro e, portanto, não assusta a presa.

A língua que você fala determina a forma como você se relaciona com o mundo, mas não limita sua capacidade de pensar e entender. Enquanto nós alinharíamos uma sequência de acontecimentos ou imagens da esquerda para a direita, começando à esquerda e terminando à direita, falantes de uma língua indígena australiana ordenam eventos de leste a oeste, em relação ao caminho do sol ao longo do dia. Isso significa que a ordem em que eles colocariam, por exemplo, uma sequência de fotos que mostre uma pessoa envelhecendo mudaria dependendo da posição em que eles estivessem em um determinado momento.
Qualquer que seja a língua falada, pessoas são pessoas. Palavras como "mãe" e "pai" são notavelmente semelhantes em quase todas as línguas, incluindo algumas variantes como "tata", "dada" e "nana". Isso prova que existe alguma relação histórica profunda entre todas as línguas?
Não. O que realmente mostra é que a boca de todos os bebês tem a mesma estrutura. Sons como "ma", "pa", "da", "ta" e "ga" são os mais fáceis de pronunciar, então eles são os primeiros que os bebês aprendem. Como muitos pais preferem que seu filho ou filha se refiram a eles de forma afetuosa, logo "mamãe" e "papai" tornem-se parte do vocabulário.
As línguas são prova de que todos os seres humanos são basicamente parecidos, mas ao mesmo tempo diversos, inovadores e únicos de uma maneira fascinante. Não apenas revelam a deslumbrante variedade da cultura e da experiência humanas, mas também nos fornecem, melhor do que qualquer outro fenômeno, a noção do que significa ser humano, assim como os limites e as possibilidades de nossas mentes.
Coisas que poderíamos supor ser comuns a todos os seres humanos, tais como que o passado está por trás e o futuro à nossa frente, que depois do 1 vem o 2 e que azul e verde são cores diferentes, não é sempre o caso; outras línguas fazem isso de forma diferente. Há até evidências de que a língua que você fala realmente muda a estrutura do seu cérebro.
Estima-se que 97% das línguas humanas que existiram historicamente já tenham sido extintas. Isso representa um enorme vazio em nosso conhecimento e nossa compreensão de nós mesmos como seres humanos. Quando uma única língua morre, uma peça fundamental do quebra-cabeça humano desaparece para sempre.

A causa básica da morte de uma língua ocorre quando as crianças param de falar a língua de seus pais. Isso pode acontecer por vários motivos, mas um fator-chave é quando as crianças têm vergonha de falar a língua de sua família. A Survival promove uma campanha contra a “reprogramação” de crianças indígenas nas “Escolas-Fábrica” (internatos) em todo o mundo, onde a língua e a cultura dominantes são impostas às crianças indígenas.
Escolas desse tipo existiram na história da Austrália, Canadá e Estados Unidos, onde eram chamadas de "residential schools". Além de acelerar a extinção de centenas de línguas indígenas, o trauma infligido a vítimas e comunidades é transmitido de uma geração para outra e ainda causa sofrimento hoje.

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