
Graffiti em Bogotá, Colombia. Flickr. Some rights reserved.
O conflito colombiano é um dos enfrentamentos armados vigentes mais longevos do mundo. Por este motivo as notícias dos últimos meses, em relação aos avanços concretos para pôr um ponto final a este conflito através dum processo de paz entre o governo colombiano e as FARC tem sido o foco de muitas expectativas e felicitações por grande parte da comunidade internacional. Dentro destes avanços positivos encontra-se um anúncio, realizado no final de 2015, por ambas partes, que versa sobre um modelo de justiça que se aplicará aqueles atores que cometeram delitos graves durante a guerra.
O próprio Presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, manifestou que quando este acordo for oficial, a “Colômbia será um modelo de como alcançar a paz através da justiça”. A Delegação da União Europeia veio dizer algo similar, destacando o facto de que o acordo situa as vítimas no centro do processo de paz. Semanas depois, a comunidade internacional no seu conjunto outorgou um aval decisivo ao acordo. O Conselho de Segurança das Nações Unidas aceitou uma proposta realizada pelas partes para criar uma missão de verificação do cumprimento do acordo, sem que o processo tenha chegado formalmente a bom porto.
Outras vozes foram mais cautas ao avaluar este acordo de justiça. A Human Rights Watch (HRW), uma ONG que defende os direitos humanos a nível mundial, duvidou, por exemplo, da consonância entre o acordo com o direito internacional. Outros atores, tais como o Washington Office on Latin America (WOLA), que apesar de não partilhar a opinião da HRW, disse – e com razão – que ainda faltam cabos soltos por atar e que deve ser feito um seguimento estrito da sua implementação antes de lhe outorgar um selo de aprovação.
Há quatro elementos chave para entender melhor a transcendência e os dilemas e desafios deste acordo de justiça. A primeira é compreender o contexto do que parte. A segunda consiste em conhecer os princípios jurídicos nos que se baseia e que serão aplicados. A terceira consiste em analisar a estrutura do tribunal que conhecerá os casos. Finalmente, a quarta, consiste em compreender as formas de castigo que serão infligidas sobre aqueles condenados por dito tribunal.
Fazer justiça depois da guerra
Fazer justiça no ocaso duma simples guerra é uma tarefa difícil e a Colômbia não é uma exceção. Em primeiro lugar, as mais de cinco décadas de conflito não só causaram um número alarmante de vítimas (mais de 7 milhões), mas também a quantidade de acontecimentos e o tempo que passou desde que muitos deles tiveram lugar fazem com que a investigação seja muito dispendiosa. É por isso que o acordo é, de entrada, muito ambicioso.
Em segundo lugar, este acordo sobre justiça destaca pelo facto de ser negociado e não imposto. Isto é uma novidade no mundo, uma vez que em geral as medidas de justiça não tendem a partir do consenso entre um governo e um grupo armado não derrotado – como é o caso das FARC – que está a negociar o final do conflito e acatando um processo de justiça. A justiça, historicamente, foi quase sempre imposta pelos vencedores aos vencidos.
Em terceiro lugar, ainda que o acordo tenha sido negociado pelo governos e pelas FARC, o modelo de justiça não é exclusivo para os membros da guerrilha que tenham cometido crimes graves. Aplica-se a todas aquelas pessoas que com motivo do conflito o tenham feito. Isto inclui tanto os membros das forças de segurança colombianas e outros funcionários públicos, como particulares que tenham financiado ou auspiciado o conflito armado. Difere por tanto duma justiça de vencedores, onde somente se julgam os vencidos, gerando por tanto uma impunidade seletiva.
Em quarto lugar, uma característica que complica este processo consiste em que o mesmo não parte do zero, senão que deve articular-se com outras medidas que foram tomadas no passado na Colômbia. Por exemplo, os julgamentos penais realizados a grupos paramilitares que participaram no conflito mas se desmobilizaram há uma década. Aqui o risco era duplo. Por um lado, que o acordo com as FACR apagasse todos os esforços anteriores. Por outro lado, que para evitar ser posto na mesma posição dos seus inimigos, tivesse negociados um acordo que se interpretasse como muito inequitativo entre uns e outros, o que afetaria a legitimidade do processo, uma vez que tais diferenças são muito difíceis de manter. Sobretudo quando se quer promover a reconciliação e travar círculos de violência e vingança.
O significado da justiça
As transições negociadas sempre partiram dum velho dilema: quanta justiça se pode pretender sem que a paz desapareça, e quanta impunidade se pode permitir uma sociedade que procura a paz. Quando a paz depende da vontade dum grupo armado não derrotado, as suas pretensões estarão mais perto duma saída com pouca justiça que duma que procure o pleno esclarecimento e responsabilidade do que realmente aconteceu. É por este motivo que as experiências mais ambiciosas de julgamentos tiveram lugar quando o conflito tinha um claro vencedor. Mas, mesmo nestes casos, a experiencia demonstrou que é difícil incluir cada acontecimento, cada pessoa, cada caso. Devido ao maximalismo, muitas destas iniciativas falharam no seu propósito.
A maior preocupação da comunidade internacional perante crimes atroces fez com que países como a Colômbia não possam hoje optar por uma fórmula que foi muito usada no passado para resolver o dilema: a amnistia geral incondicionada (uma via que se considerava como uma saída fácil, mas que no longo prazo supunha muitas complicações, como o demonstra o caso da Argentina ou a África do Sul). Mas a opção contrária (estabelecer um sistema com a pretensão de julgar todos os atos e castiga-los da forma mais severa possível) também é inviável.
O acordo pretende estabelecer um meio-termo. Para começar, divide os delitos em dois tipos: os crimes internacionais e os delitos políticos e associados (fundamentalmente, a rebelião armada, os atos de guerra e os meios de financiamento da guerra, que não sejam contrários ao Direito Internacional Humanitário). Os primeiros, que são aqueles considerados como graves pela comunidade internacional (onde se enquadram os crimes de guerra e contra a humanidade) não serão amnistiados ou perdoados de forma absoluta. Os responsáveis por estes crimes devem apresentar-se perante a justiça e receber o devido castigo. Os segundos podem ser amnistiados, sempre e quando quem procure beneficiar-se da amnistia contribua de forma efetiva para a paz, para a verdade e para a reparação das vítimas.
Adicionalmente, o acordo compromete-se com uma visão de justiça mais ampla que o simples castigo. Quer dizer, fazer justiça não consiste tão só em castigar o ofensor, mas também esclarecer os factos, reconhecer o que aconteceu e dignificar ditos acontecimentos através dum julgamento, assegurando que os mesmos não se repetirão. Em consequência o acordo prevê medidas de justiça adicional e pondera as penas em base à colaboração que os ex-combatentes proporcionem para alcançar ditas medidas: quanto maior a contribuição, maior o benefício, e vice-versa.
Por exemplo, em matéria de verdade e justiça. Se um ex-combatente se compromete com as vítimas de forma plena poderá ser sancionado com uma pensa alternativa à prisão cuja duração será entre 5 e 8 anos. Em caso de que não o fizesse, e se tivesse que iniciar um julgamento formal, e a meio o ex-combatente se arrependesse e confessasse, a sua sanção poderia chegar a ser de entre 5 e 8 anos de prisão efetiva. Finalmente, aqueles que não contribuam para fazer valer os direitos das vítimas, podem incorrer em penas de até 20 anos de prisão.
O sistema e a sua estrutura
A discussão sobre a justiça não se centra só no que se vai julgar, senão o como, e sobretudo, quem o fará. Especialmente quando se negoceia com uma insurgência cuja plataforma de ação se baseia no desconhecimento do Estado e das suas instituições. A questão consiste em como promover que o sistema de justiça garanta quatro condições simultaneamente: imparcialidade, probidade, eficiência e efetividade.
A primeira opção seria que a justiça ordinária julgasse os casos. Mas esta opção no caso colombiano foi rejeitada tanto pelos membros das FARC (que vêm a justiça ordinária como a “justiça do inimigo”) como pelos membros das forças armadas (que acusaram os juízes ordinários de não entender o que acontece dentro dum conflito armado).
Uma opção alternativa seria optar por um tribunal internacional. Mas a propostas não era atrativa para o governo, especialmente quando o mesmo não quere mostrar-se como incapaz ou sem vontade de fazer justiça, o que abriria muito provavelmente a porta a uma intervenção duma instituição como o Tribunal Penal Internacional.
A opção intermédia (posta em prática no caso da Coreia, Timor-Leste e Kosovo) consistia num tribunal misto, composto maioritariamente por juízes internacionais. Não seria a primeira vez que se criavam mecanismos excecionais para conhecer sobre casos derivados dum conflito. Experiências recentes, que foram analisadas em consciência pelos negociadores colombianos incluem a Câmara de Crimes de Guerra da Bósnia e Herzegovina e a Divisão de Crimes Internacionais no Uganda.
Mas o resultado final na Colômbia não é simplesmente uma cópia destas experiências. Tratasse dum complexo sistema que, apesar de se inspirar nos acertos de outras experiências, foi confeccionado tendo em conta os desafios específicos da transição colombiana e a experiência das suas instituições.
A este sistema foi-lhe dado o título “Sistema Integral de Verdade, Justiça e Reparação”, o que desde o início deixa claro que não se trata só dum Tribunal de Justiça. É um sistema integral através do qual se pretende garantir os direitos das vítimas à verdade, à justiça, à reparação e à garantia de não repetição. Inclui tanto órgãos de natureza judicial (como o tribunal e outras salas de justiça), como órgãos de natureza extrajudicial (como uma Comissão de Verdade e uma Unidade de Procura de pessoas desaparecidas). Um robusto, ainda que que complicado sistema.
Alguns interrogantes ainda existem em quanto aos órgãos judiciais do sistema. Por exemplo, qual será o mecanismo de seleção de magistrados, quantos deles serão internacionais (o acordo prevê que haverá representação internacional que não poderá ser maioritária, mas não estabelece o número), entre outras. A tarefa não é fácil uma vez que se deve selecionar um mecanismo que seja aceitável para os combatentes, mas que, para que seja verdadeiramente independente, não pode ser selecionado por aqueles que pelo mesmo serão julgados. Isto seria inaceitável desde qualquer ponto de visto. O mais recomendável seria um mecanismo que se baseie no mérito dos candidatos e que tenha garantias de transparência através do acompanhamento da comunidade internacional e que esteja aberto ao escrutino da sociedade civil e das vítimas.
O castigo: a quadratura do circulo
Quando a atrocidade foi repetida até converter-se em massiva e repetitiva, é difícil estabelecer o significado preciso de termos tais como justiça e castigo adequado. Como enfrentar o mal absoluto, como diria Kant e o evocou há mais de duas década o jurista argentino Carlos Santiago Nino.
Esta é uma das questões que foi mais discutida a nível jurídico, começando pelas críticas da HRW que se mencionaram no princípio deste artigo. O tema é o seguinte: as normas internacionais exigem que exista proporcionalidade entre a gravidade de delito e a severidade do castigo. Por tanto, os delitos mais graves devem ser castigados de forma mais severa. Isso inclui obviamente os já mencionados crimes internacionais. Agora bem, uma fórmula negociada de justiça parece impossível de alcançar se a única opção de aqueles que negociam é submeter-se a penas severas, especialmente quando de forma geral se determina que são penas de privação de liberdade.
A questão centrasse por tanto na seguinte pregunta: é possível pensar em sanções alternativas à prisão para castigar estes crimes? Alguma organização, como a HRW, defende que não, uma vez que as penas severas são de privação efetiva de liberdade. Outros defendemos que é possível, uma vez que os tratados internacionais em nenhum momento exigem que a pena seja entendida unicamente como prisão efetiva. E, além destes, estão aqueles que defendem que as alternativas não só são adequadas em processo de pacificação, mas que também podem ser mais efetivas, tendo em conta as limitações e os problema do conceito “prisão”, uma instituição que enfrenta hoje em dia uma forte crise.
Mas as opções a nível comparado são mais bem escassas e pouco prometedoras. Por um lado, as políticas de justiça reparatória mais exitosas não foram desenvolvidas necessariamente em contextos de conflitos armado e em muitos lugares reservaram-se para crimes menores. Por outra parte, as experiências mais sistemáticas de medidas de justiça restauradora em contexto de pós-conflito deram-se em contexto de justiça tradicional muito arraigados (como no Uganda, Ruanda e Timor-Leste) e a avaliação dos seus resultados foi mista.
Neste panorama de copo meio cheio, meio vazio, o acordo colombiano tomou uma decisão audaz: combinar um sistema de julgamento mais tradicional (com um acusador formal e com um tribunal que faz justiça), mas com a possibilidade de que o castigo possa ser cumprido através duma “restrição efetiva de direitos e liberdades”.
Esta linguagem aberta possibilita que medidas alternativas à prisão possam constituir-se em castigo, mas sob uma tripla concepção dos objetivos que se devem perseguir. Assim, a medida (que poderia ser a desminagem humanitária, a construção de obras de infraestrutura pública ou serviços em benefício das vítimas, entre muitas outras coisas) deve cumprir com um primeiro propósito: que seja efetiva. Quer dizer, que produza uma limitação que seja aflitiva para quem a padece. Assim, não se elimina o requerimento da pena, que consiste em gerar um castigo e uma sanção efetiva. Em segundo lugar, a medida deve perseguir a reparação das vítimas. E, paralelamente, a medida deve perseguir que os ex-combatentes emendem o dano social que causaram de forma direta ou indireta à comunidade. Quer dizer, a medida deve ter também um carácter restaurador dos laços sociais quebrados.
É uma fórmula ambiciosa e deverá ser posta em prática para ver se é possível alcançar estes três objetivos com uma medida específica. Mas se conseguisse, os três objetivos reforçar-se-iam entre si de tal maneira que seria muito difícil defender que uma medida de prisão é muito mais respeitosa para com os direitos das vítimas e mais orientada na direção da reconciliada e da não repetição que um processo desta natureza.
Nada foi ganho e nenhum debate está fechado. O acordo geral de paz entre o governo e as FARC parece estar perto, mais ainda não foi concluído. Por tanto, o acordo sobre justiça é uma expetativa por cumprir, não uma realidade. Além disso, mesmo que o acordo se assine, o trabalho que há pela frente, para pôr em prática o que está no papel será árduo e dispendioso. Mas é uma notícia promissora depois de muito tempo de guerra e injustiça.
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