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Que tipo de mudança na Argentina?

Uma renhida campanha eleitoral e uma segunda volta sem precedentes indicam que um momento histórico está a ter lugar na política Argentina. English. Español.

Federico Finchelstein Fabian Bosoer
5 Novembro 2015
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Apoaintes de Cristina Kirchner. Demotix. All rights reserved

A Argentina acaba de atravessar um momento politico importante em direção a uma nova era. As eleições presidenciais do dia 25 de outubro de 2015 representam a rejeição da vertente peronista de Cristina Kirchner, que dominou o país desde 2003, significando provavelmente o fim da sua preeminência politica. Mas, supõe isto o fim do populismo na Argentina?

Por toda a América Latina e especialmente na Venezuela, o populismo como forma de anti-liberalismo autoritário está a diluir-se. Uma grande maioria dos votantes argentinos rejeitou-o quando Daniel Scioli (o candidato escolhido pela presidenta) foi incapaz de ganhar a presidência na primeira volta. Isto significa que por primeira vez na história do país, os argentinos deverão votar numa segunda volta que terá lugar no dia 22 de novembro. A transcendência de ir a uma segunda volta é imensa. Os votantes querem uma mudança em relação ao populismo do passado. Alguns peronistas parecem ter perdido os seus votos “cativos” e agora falam de “entender a mensagem que enviaram as urnas” e o bipartidarismo. Os argentinos têm agora a oportunidade de melhorar de forma substancial a qualidade da sua democracia.

Este não é um assunto de menor importância num pais que sob Juan y Eva Perón, reinventou o populismo moderno depois de 1945 como uma versão autoritária corporativista da democracia, para mais tarde acabar por sofrer uma das ditaduras mais horripilantes do continente (1976-83). A democracia que emergiu daquela ditatura esteve marcada por um estilo populista que, desde então definiu a cultura política argentina, e especialmente no que se refere à política do partido peronista no poder.

As votações presidenciais foram uma eleição entre dois universos políticos diferentes: o populismo tradicional argentino frente a uma participação mais ativa dos cidadãos nas decisões políticas. Apesar de ser o candidato do partido, Scioli não se identificou com o populismo, e menos ainda o fez o seu opositor, Mauricio Macri, presidente da câmara de Buenos Aires, de centro-direita. Assim, o novo presidente terá agora uma oportunidade real de transcender a recente experiência populista. E uma vez que a Europa presenciou também a ascensão do populismo, estas são umas eleições que vão mais além da própria Argentina. Se os Argentinos decidirem tomar una nova direção, os efeitos serão sentidos em toda a América Latina, e mais além.

Só a possibilidade de que isto aconteça representa uma ruptura enorme em relação ao passado recente da Argentina, onde, desde que sucedera ao seu marido em 2007, Cristina foi a rainha soberana. Inclusivamente no mesmo dia das eleições, ainda que impossibilitada de candidatar-se à reeleição devido ao limite de mandatos estabelecidos na Constituição, Cristina continuou a ter uma enorme influência.

Mas os inesperados resultados das eleições mudaram tudo. Por primeira vez em muitos anos a sociedade civil –ao sublinhar a necessidade de uma mudança mais substantiva e democrática – tem estado um passo à frente dos políticos. Depois de mais de uma década no poder, a hegemonia da dinastia Kirchner parece chegar ao fim. A segunda volta já provocou que os candidatos abandonem o objetivo de garantir maiorías absolutas e fundamentem as suas campanhas no marketing.

Rapidamente, depois de uma votação na qual o partido no governo perdeu também a província de Buenos Aires, a circunscrição mais importante (a sua importância política e econômica equiparar-se-ia a uma combinação dos estados da Califórnia, Texas, Alabama e Nova York), os argentinos estão a avaliar os novos reajustes do poder. A situação na Argentina assemelha-se agora ao momento pre-Kirchenista de 2003, quando as opções políticas se situavam entre o populismo e uma democracia representativa de um tipo mais horizontal que confrontacional.

Nas eleições de 2003, Nestor Kirchner apresentou-se a si mesmo como o candidato da mudança frente ao neoliberalismo do anterior presidente peronista, Carlos Menem. Naquele então, e com Scioli de candidato a vice-presidente, Kirchner defendeu um país “mais normal, mais sério”. Mas uma vez no poder, Nestor acabou por elevar o estilo populista anti-institucional de Menem até níveis nunca antes vistos. Passados 12 anos, a Argentina enfrentasse uma vez mais à eleição entre uma democracia populista e uma democracia representativa.

Uma grande oportunidade

Nas ruas de Buenos Aires e nas de outras cidades, todos se dão conta de que estão a chegar grandes mudanças. Mas há menos consenso sobre se esta mudança consistirá simplesmente numa nova coleção de normas e de caras que acedem ao poder ou bem uma será uma verdadeira “revolução” na forma de fazer política. O primeiro significaria que o legado populista de Cristina Kirchner se impõe; o segundo que o modo de governar polarizador, anti-institucional e “caudilhista” de Kirchner se irá embora com ela.

Os dois candidatos, Scioli y Macri, argumentam que atuarão de forma mais colegiada e mais respeituosa, tanto em relação ao diálogo como em relação aos limites institucionais. Existem semelhanças tanto nas suas políticas económicas como na necessidade de ter melhores relações com os sócios tradicionais da Argentina em Washington, Brasília e Bruxelas; e parece claro que haverá algumas mudanças na política exterior e nas negociações com os credores internacionais. Mas para a Argentina a questão chave é saber se o estilo populista “personalista” acabará por manter-se ou não.

Macri, filho de um multimilionário, e ele mesmo um empresário de meia idade, chegou à política depois de um mandato exitoso à frente de um dos maiores clubes de futebol do país. A sua campanha promoveu a sua personalidade amável e o seu optimismo,  não colocando o acento sobre as suas ideias e o seu programa. Agora procura atrair a esquerda não-peronista e a direita peronista (aproximadamente 21% dos votos do candidato de oposição peronista, Sergio Massa, cuja transferência de apoios para outros candidatos restantes será crucial na segunda volta). Mas, defenderá Macri uma coligação multipartidária e uma administração presidencial menos centrada numa só pessoa?

Em caso de vitória, Macri ver-se-á na necessidade de levar a cabo um diálogo real com uma Câmara de Representantes onde o seu partido se encontra em minoria. Mas aqui também poderia, ou bem acentuar o não-partidarismo ou alternativamente continuar com o presidencialismo de Kirchner, que desprezou e até chegou ao ponto de acossar os outros poderes. Um exemplo é a pressão que o anterior governo exerceu sobre o poder judicial para que paralisara a investigação sobre as graves acusações do procurador Alberto Nisman, que morreu em misteriosas circunstancias depois de ter feito acusações muito sérias contra a Presidenta. Para Scioli será especialmente difícil ignorar o poder da presidência para manejar a oposição interna dentro do partido peronista e será ainda mais difícil manejar os desejos da sua predecessora. Alguns dos discípulos de Cristina já criticaram Scioli, acusando-o de ser o responsável dos maus resultados eleitorais e de carecer de um compromisso pleno para com o legado dos Kirchner.

Inclusive nos dias anteriores às eleições, Kirchner tratou de estabelecer alguns dos parâmetros do seu legado. Disse a Putin por videoconferência que a posição geopolítica da Argentina continuaria a ser a mesma: relações amigáveis com a Rússia, predileção pela China e pela Venezuela, e uma posição favorável em relação ao controverso pacto com o Irão. Noutros países, este comportamento pré-eleitoral por parte um presidente de saída seria um escândalo, mas na Argentina é somente um novo exemplo da fusão entre a personalidade populista da líder e os interesses do país a largo prazo. Historicamente, os peronistas vêm poucas diferenças entre as instituições do estado, o movimento e o líder. Fiel às suas raízes peronistas, a presidenta nunca se viu a si mesma como representante da cidadania, mas sim como uma líder para a qual as vitórias eleitorais significavam uma delegação de poder das pessoas na sua figura

Seja qual for o vencedor das eleições presidenciais, não contará em nenhum caso com maioria absoluta para poder pôr em prática o estilo “da minha forma ou não há forma” que Kirchner usou para fazer política. Isto representa uma grande oportunidade para a democracia argentina. Em breve, a era de Kirchner ter-se-á terminado, mas, sobreviverá a ideia de democracia populista?

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