
Pedros Passos Coelhos (Ex-Primeiro Ministro) e Aníbal Cavaco Silva (Presidente da República). Gonçalo Silva/Demotix. All rights reserved
Portugal volta às urnas no dia 24 de janeiro para eleger o seu novo presidente. Contudo, a questão realmente importante não é quem será eleito como próximo presidente da república, mas se alguém deveria sê-lo. Depois de dois mandatos consecutivos, as ações (e inações) de Aníbal Cavaco Silva levaram muitos a crer que Portugal estaria melhor se adotasse um sistema de governo diferente.
A engenharia constitucional é uma tarefa incrivelmente difícil. Estabelecer um plano democrático para a democracia é de longe mais difícil que construir um edifício, por muito complexo que este seja. Fatores políticos, históricos e sociais são determinantes para construir um adequado sistema de governo e garantir a sua capacidade para suportar o peso das instituições democráticas. Um erro de cálculo ao identificar e integrar estes fatores pode ter consequências terríveis.
Portugal é um exemplo paradigmático de sucesso no que se refere a engenharia constitucional. Depois do 25 de abril, que marca a assim chamada Terceira Onda de Democratização, Portugal emergiu de uma longa ditadura. Num clima de alta polarização entre os comunistas/socialistas e os neoliberais, crescentes divisões em relação ao dilapidado império colonial, a militarização da política e a falta de partidos políticos consolidados, estabelecer uma Constituição capaz de integrar a realidade do país era uma tarefa difícil. Estes fatores políticos e sociais, juntamente com uma crescente desconfiança em relação a anteriores experiências parlamentárias, tiveram como resultado a instauração dum sistema semipresidencialista, que não só outorgou estabilidade e coesão, mas também compensou a falta de partidos políticos adequadamente estruturados.
Contudo, dita forma de governo não foi concebida como uma solução permanente. O seu propósito era outorgar coesão e legitimidade num período turbulento. Apesar disso, o sistema semipresidencialista fossilizou e acabou por tornar-se na forma exclusiva de governo tida como adequada para Portugal. Isto não seria um problema se o Presidente tivesse sido capaz de manter uma posição neutral. Não foi.
Poderes presidenciais
De acordo com a Constituição Portuguesa (1976), o presidente de Portugal tem ao seu dispor uma serie de poderes. Não só dispõe do poder para exercer um veto político que lhe outorga a capacidade para condicionar o processo legislativo, mas também poder requerer ao Tribunal Constitucional um parecer sobre a constitucionalidade dum diploma, já seja de forma preventiva ou sucessiva.
Contudo, a faculdade mais relevante do presidente consiste no seu poder para dissolver a Assembleia da República. Este poder é comumente conhecido como a “bomba atómica”. Tendo em conta o calendário eleitoral e determinados limites temporais, e uma vez ouvidos os partidos incluídos na Assembleia e o Concelho de Estado, o presidente pode exercer dito poder e marcar a data das próximas eleições legislativas.
Até à reforma Constitucional de 1982 este poder era quase ilimitado. Desde então, contudo, o presidente só pode dissolver a Assembleia da Republica para garantir o regular funcionamento das instituições democráticas. Quando o governo incumpre as suas obrigações constitucionais, tais como entregar o orçamento, ou entra em choque institucional com o presidente, então o mesmo está constitucionalmente autorizado a dissolver a Assembleia da Republica e convocar novas eleições. Apesar de que este poder foi concebido como uma medida extrema, todos os presidentes desde a reforma constitucional de 1982 (excluindo o atual) fizeram uso do mesmo.
Repensar as bases democráticas
Como foi reconhecido implicitamente pela reforma constitucional de 1982, Portugal já não precisava de uma figura presidencial forte por aquele então. A necessidade de coesão, de fortalecer a democracia e de estabilizar as instituições democráticas já tinha sido devidamente resolvida. Portugal passou de uma forma clássica de semipresidencialismo a um sistema semipresidencialista equipado com um corretivo presidencial. Pese a que os poderes do presidente foram limitados, a natureza do sistema permaneceu.
Desde então muitas coisas mudaram. Portugal é a dia de hoje uma democracia madura, onde os partidos políticos e as instituições democráticas cristalizaram. Não há vestígios da ditadura nem de polarização social. Portugal é uma democracia de sucesso, membro da União Europeia e respeita todos os tratados internacionais.
Contudo, a sistema democrático em Portugal enfrenta uma séria ameaça, uma vez que a democracia foi reconhecidamente tida como menos importante que as normas Europeias. O presidente da República, que tem entre as suas responsabilidades assegurar a independência e unidade nacional, assim como garantir o normal funcionamento das instituições, decidiu tomar partido após as últimas eleições legislativas e abandonar o seu role como mediador neutral.
Depois das eleições legislativas que tiveram lugar no dia 4 de outubro, e depois de um voto de não confiança apresentado pelo partido socialista, o governo mais curto da história de Portugal chegou ao seu fim. O Presidente, Aníbal Cavaco Silva, inicialmente negou à esquerda a sua prerrogativa parlamentar para formar um governo maioritário. Cavaco Silva argumentou que uma coligação entre o Partido Socialista, o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista supunha um risco que o país não podia correr. No final, no entanto, Cavaco Silva não teve outra alternativa que nomear António Costa, o líder do PS, como novo Primeiro Ministro.
As ações de Cavaco Silva, supõe uma clara extralimitação das obrigações constitucionais impostas ao Presidente. Não deixa de ser verdade que o povo português não votou por partidos que abertamente defendem a saída da União Europeia e da NATO. Contudo, 50.7% votou a favor do fim da austeridade.
Mais além da análise eleitoral, e dum acordo maquiavélico, o líder do PS conseguir ser eleito como primeiro ministro graças a um acordo com um partido anti-Europeu e um partido Estalinista.
O presidente pode discordar do resultado das negociações entre partidos políticos, mas não pode tomar como seus os poderes exclusivos da Assembleia. Cavaco Silva usou a sua posição como presidente para impor uma agenda ideológica sobre a vontade da Assembleia, ao propor um candidato que carecia de apoio parlamentar. Apesar dos justificados receios sobre uma possível recaída do país a nível económico, depois de ter feito frente a uma série de medidas de austeridade, não é da incumbência do presidente determinar quem dispõe da prerrogativa parlamentaria para formar um governo maioritário. As ações de Cavaco Silva deveriam servir como um aviso a navegantes: o poder discricional do presidente para dissolver a Assembleia da República poder ser usado para impor a sua vontade sobre o poder legislativo. Deve este risco ser ignorado?

Assembleia da República. Gonçalo Silva/Demotix. All rights reserved.
Parlamentarismo?
O sistema de governo Parlamentarista e o sistema Presidencialista diferem na sua estrutura. O Parlamentarismo baseia-se numa relação de mutua dependência entre o poder legislativo e o poder executivo, enquanto que o Presidencialismo se baseia numa relação de mutua interdependência. Enquanto o primeiro favorece a constituição de coligações, outorga flexibilidade política e tende a evitar impasses legislativos, o segundo tende a favorecer a personalização do poder, outorgando ao presidente uma base de apoio independente.
O sistema de governo imperante em Portugal tende ser classificado como uma forma Premier-Presidential de semipresidencialismo, entre o parlamentarismo e o presidencialismo. Apesar disso, as semelhanças com o parlamentarismo devem ser realçadas. O poder executivo, tal como no parlamentarismo, responde unicamente perante a Assembleia da Republica. Contudo, e aqui reside a diferença entre o parlamentarismo e o semipresidencialista, o presidente pode, indiretamente, forçar a saída do primeiro-ministro ao dissolver a Assembleia.
Este poder discricional outorgado ao Presidente não dever ser menosprezado. Como eventos recentes refletem, os presidentes podem, e fizeram-no no passado, pôr a sua ideologia por cima da democracia. Uma democracia madura como Portugal não pode ignorar este risco. Uma transição em direção ao parlamentarismo protegeria a Assembleia e asseguraria que a legitimação de governar permanece dentro das quatro paredes do Parlamento. Não fora delas. A transição seria ágil. Implicaria somente retirar ao presidente a prerrogativa de dissolver a Assembleia da Republica, neutralizando desta forma o seu excessivo poder executivo.
Redesenhando a Democracia
Redesenhar a democracia em Portugal é uma tarefa urgente. Tal como os seres humanos evoluem, os sistemas políticos também deveriam fazê-lo. A democracia não pode permanecer estática e ignorar as circunstâncias politicas e sociais atuais. Vimos como o presidente colocou recentemente a sus ideologia sobre as regras democráticas. A possibilidade de que um presidente não atue como um ator neutral por cima de escaramuças politicas ilustra como as desvantagens de ter um presidente superam as suas vantagens.
Limitar o poder executivo do presidente pode transformar Portugal num sistema parlamentário adulto e abrir um novo ciclo na política Portuguesa. Mais além das vantagens já explicadas do parlamentarismo, dita transição potenciaría uma cultura de diálogo e de coligação entre as diferentes forças políticas.
As eleições presidenciais que têm lugar no dia 24 de janeiro poderiam ter sido uma oportunidade para defender que Portugal precisa dum novo sistema de governo. O que o atual sistema semipresidencialista oferece já não justifica abrir a porta a abusos presidenciais. Em vez de limitar o debate a quem vai ser eleito presidente, Portugal deveria ter discutido como garantir a sua neutralidade. As democracias maduras devem ser capazes de identificar a tempo o que funciona, o que nao e o que pode ser melhorado. E agir em conformidade. Os engenheiros constitucionais já deveriam estar a trabalhar.
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