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O caso Simone André Diniz: racismo, impunidade e invisibilidade do risco do emprego doméstico em tempos de pandemia

Em 1997, Simone Diniz foi recusada uma vaga de empregada doméstica por ser negra. Seu caso aponta como o racismo estrutural é perpetuado através da invisibilidade social e negação de direitos, aspectos que vêm se expressando com mais força na crise sanitária.

Beatriz Galli Sinvaldo José Firmo
27 Julho 2020, 3.37
'Um jantar brasileiro', Jean-Baptiste Debret, 1827
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Wikimedia Commons. Public domain

As desigualdades baseadas em gênero e raça tem profundas raízes na construção da história do Brasil. Durante a escravatura, as mulheres pretas tinham um papel primordial no modo de produção que explorava a mão de obra compulsória e com a abolição, entram para o mercado informal. Na grande maioria das vezes são arrimo de família, exercendo funções como lavadeira, cozinheira, arrumadeira, quituteira entre outras atividades, dentro de modelos de contratação informais, sem reconhecimento de direitos laborais nem condições dignas de trabalho.

Nesse cenário pós abolição e racismo estrutural, e desprotegidas de acesso a políticas públicas voltadas para a igualdade de oportunidades de acesso à educação, formação e ingresso ao mercado laboral, as mulheres pretas vão constituindo-se em sustentáculos na labuta cotidiana da vida. No final da década de 1990, com mais de 100 anos da Lei Áurea, o trabalho informal ainda é uma constante na vida da população preta, sobretudo das mulheres, sendo a maioria das empregadas domésticas.

De acordo com o retrato das desigualdades de gênero e raça, em 1996, somente 18,7% empregadas domésticas pretas possuíam carteira de trabalho assinada, apesar de representarem a maioria das trabalhadoras no ramo. Foi nessa época que, em 2 de março de 1997, que Simone Diniz, mulher preta de 19 anos, que buscava uma oportunidade de trabalho, encontrou no anúncio dos classificados da Folha de São Paulo, vaga para empregada doméstica. No entanto, um problema se estabeleceu, a oportunidade exigia que a candidata fosse de “preferência branca” (sic).

Simone entrou em contato com a empregadora candidatando-se a vaga e, após ser perguntada sobre sua cor de pele foi informada que não preenchia os critérios necessários. “Eu disse que me interessava pela vaga e ao saber que sou negra ela me dispensou, alegando que a cor da pele era critério importante na seleção das candidatas ao emprego”.

O caso Simone é exemplar da lógica racista, sexista e classista que rege as relações de emprego doméstico no Brasil

O caso foi denunciado à Delegacia de Investigações de Crimes Raciais, onde foi instaurado Inquérito Policial. Apesar das provas irrefutáveis, o Ministério Público do Estado de São Paulo requereu o arquivamento do inquérito sob o argumento que o caso não configurava crime de racismo. Argumentação acolhida pelo Poder Judiciário. O caso continua sem resposta por parte da Justiça brasileira.

O Brasil, como estado parte da Convenção Americana de Direitos Humanos, tem o compromisso de respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição. Após nove anos de tramitação, em outubro de 2006, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA) publicou o Relatório Final do caso Simone André Diniz. Nesse relatório a CIDH reconhece a responsabilidade internacional do Estado brasileiro por não punir crime de racismo sofrido por Simone André Diniz, sendo considerado violados os artigos 8, 24 e 25 da Convenção Americana de Direitos Humanos. O Brasil é o primeiro país do continente americano a receber uma condenação desta categoria.

O caso Simone André Diniz representa um padrão recorrente de invisibilidade do racismo nas relações cotidianas, e omissão do Estado brasileiro. A Comissão já julgou que toda vítima de violação de direitos humanos deve ter garantida uma investigação diligente e imparcial e, em havendo indícios de autoria do delito, deve ser iniciada a ação pertinente para que o juiz competente, no marco de um processo justo, determine ou não, a ocorrência do crime. Tal procedimento deve acontecer com todo delito levado ao conhecimento da autoridade pública. Por que foi diferente no caso de Simone?

O caso é emblemático por apontar as diferentes formas com que o racismo estrutural e institucional é perpetuado e mantido através da invisibilidade social e negação de direitos as empregadas domésticas, aspectos que vem se expressando com mais força nesses tempos da pandemia. Em muitos estados o emprego doméstico foi considerado por lei como sendo serviço essencial obrigando as empregadas domésticas, na sua maioria mulheres pretas, a trabalhar para não perderem seus empregos, correndo o risco de serem contaminadas, morrerem ou contaminar os membros de sua família. O caso Simone é exemplar da lógica racista, sexista e classista que rege as relações de emprego doméstico no Brasil e a impunidade que prevalece na maioria desses casos quando existem flagrantes violações de direitos humanos.

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