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138 usinas hidrelétricas ameaçam o sul da Amazônia

Povos indígenas e ribeirinhos do sul da Amazônia brasileira se mobilizam para evitar a invasão de mais de 138 represas na bacia do rio Juruena, o que agravaria as taxas de desmatamento da região. Español English

Luna Gámez
21 Junho 2019, 12.01
Uma lancha navega sobre o rio Arinos, em outubro de 2018.

"Minha vida é a defesa desse lugar", diz Eduardo Morimã, indígena da etnia Apiaka, que mora na comunidade Mayrob, no município de Juara, norte do estado de Mato Grosso. Localizada no coração deste país, está em um dos principais olhos do furacão do desmatamento da floresta amazônica como resultado da pecuária intensiva e das monoculturas de soja, milho e algodão que desenham um cinturão agrícola no sul da Amazônia. Além dos impactos na flora e fauna dos rios envolvidos, bem como nas populações deslocadas, a construção de um projeto de centenas de usinas hidrelétricas agravaria as taxas de desmatamento na região.

"Eu vivo viajando, só paro em casa cerca de cinco dias por mês. Felizmente, meus filhos são criados", acrescenta Morimã, que é totalmente dedicado à defesa do meio ambiente. Morimã acorda todos os dias em um lugar diferente, mas sempre com o objetivo de informar as cidades vizinhas sobre a instalação da Usina Hidrelétrica Castanheira, no rio Arinos, no município de Juara. Esse rio banha a parte inferior da bacia do rio Juruena, que deságua no rio Tapajós até alcançar a poderosa Amazônia.

A Usina de Castanheira é classificada como grande produtora hidrelétrica (UHE), ou seja, pode dispensar mais de 30 megawatts. Faz parte do projeto de 138 pequenas, médias e grandes usinas de geração de energia que várias empresas pretendem construir na bacia amazônica do rio Juruena, uma região com imenso potencial hídrico que ainda permanece relativamente livre de barragens. Na bacia existem atualmente 32 usinas hidrelétricas em operação e 10 em construção.

Os povos desejam ser consultados

"O que está sendo planejado para a região da bacia do Juruena é transformar os rios em fontes de produção de eletricidade. A grande disputa é: recursos naturais ou econômicos?", acrescenta Jefferson Nascimento, coordenador do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). "Castanheira seria a porta de entrada para alterar completamente o território e transformá-lo em um mega complexo hidrelétrico", segundo a análise do MAB, que trabalha para monitorar os impactos de diferentes tipos de barragens desde a década de 1970, quando a usina hidrelétrica foi construída. Itaipu, uma das maiores do mundo.

Nascimento acredita que a proposta do atual governo central poderia aumentar a violação dos direitos humanos derivados da ausência de identificação de certos riscos. O atual presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, já declarou durante sua campanha eleitoral que se dependesse dele, ele não delimitaria mais uma polegada de terras indígenas e que essas terras, assim como as reservas naturais, não podem impedir o desenvolvimento de um país rico em recursos naturais. Por sua parte, Ricardo Salles, Ministro do Meio Ambiente, expressou no início de seu mandato que os processos de licenciamento ambiental poderiam ser simplificados para que projetos como a construção de usinas hidrelétricas não demorassem tanto para sair do papel.

Na bacia amazônica do rio Juruena, existem atualmente 25 usinas hidrelétricas em operação ou em construção

"Os povos têm que ser informados e consultados. Nessa consulta, eles têm o direito de dizer não à usina hidrelétrica", diz Nascimento, que explica como, em inúmeras ocasiões, alguns projetos de empreendedorismo na Amazônia violaram a prestação de consulta livre, prévia e informada às pessoas afetadas, conforme estipulado na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre povos indígenas e tribais. Um requisito que, além disso, está incluído na Constituição Brasileira.

Diante do desejo de consulta expresso pelas populações afetadas direta e indiretamente, a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), responsável pelo projeto, responde que não está entre suas obrigações. "A Convenção 169 destina-se apenas aos povos indígenas e tribais", explica Lieggio. "Não há processo de consulta, já realizamos reuniões com os indígenas (...). Em 2016, eles nos deram autorização para coletar informações primárias sobre suas terras ”, acrescenta o superintendente adjunto da EPE, que explica que a Fundação Nacional do Índio (Funai) é que deve expressar se, de acordo com os estudos de componentes indígenas realizados pela Empresa, o investimento é viável ou não do ponto de vista dos impactos nas comunidades ancestrais.

Procurar por mecanismos de desenvolvimento sem dilapidar recursos

"As populações locais não receberiam nada dessa energia. Eles ficariam sozinhos com os danos", afirma Nascimento, que denuncia a inviabilidade econômica de um investimento milionário. "Devemos procurar outro mecanismo de desenvolvimento que não seja baseado na extração predatória de recursos. Estamos sob um processo de neocolonialismo, os donos da maioria dessas empresas hidrelétricas são franceses, portugueses, espanhóis, chineses ou grupos empresariais americanos ”, explica. A Usina de Castanheira poderia gerar, de acordo com a projeção da EPE, uma potência de 140 megawatts, dos quais 98 seriam utilizados e lançados no Sistema Interligado Nacional do Brasil. Essa quantidade de energia elétrica não representa nem 1% do total consumido no estado de Mato Grosso, menos ainda se for considerado que o Brasil já tem um excedente de energia de quase 14.000 megawatts de energia gerada, segundo dados de 2017 da empresa ENGIE Brasil Energia SA.

Guilherme Fialho, analista de pesquisa de energia da EPE, argumenta que o aumento de energia permite dar maior estabilidade ao sistema de energia central e reduzir o risco de apagões. "Mesmo que não seja suficiente, o país está crescendo e vamos precisar de expansão energética", acrescenta Fialho. "Para atender esse crescimento esperado do consumo, é preciso instalar muitas novas usinas de geração de energia no país", enfatiza o estudo ambiental dessa barragem. Em outro relatório participativo, a EPE também argumenta que um dos desafios de Castanheira é "compatibilizar a expansão do agronegócio com a preservação ambiental". "O agronegócio é uma realidade bastante presente no estado do Mato Grosso (...). Não há como não mencionar a importância desse setor no PIB nacional", acrescenta a Empresa no documento.

No plano decenal de expansão de energia até 2027 elaborado pela EPE, prevê-se um crescimento moderado da economia brasileira para a próxima década. " A extração será o setor de maior crescimento da indústria (...). A indústria extrativa brasileira goza de excelente competitividade em função de suas reservas minerais em grande volume e de qualidade superior", explica o plano decenal, que destaca o potencial de extração de ferro e petróleo. Glauce Lieggio, da EPE, especificou que é impossível saber a quantidade de energia que vai para cada setor e que algumas áreas, como a mineração, têm suas próprias usinas.

"Oferecer um excedente de energia poderia ser um convite para grandes investidores se instalarem nesses lugares", diz Victor Amaral Costa, diretor de Direitos Sociais e Cidadania da FUNAI, que destaca a possibilidade de considerar outras fontes de energia, como a energia solar. Ele acrescenta que a maioria das empresas responsáveis pela construção dessas usinas hidrelétricas pertence a grandes grupos econômicos. "É uma mistura do privado com o público fora de série. Isso acontece em todo o Brasil, mas aqui é realmente uma capitania hereditária do Brasil moderno ", descreve.

Se o projeto hidrelétrico de Castanheira fosse sair do papel, devastaria algumas comunidades em três municípios ribeirinhos

O Brasil tem uma potência de mais de 160 milhões de quilowatts. Segundo os últimos dados da ANEEL (acessado em 25 de maio de 2019), há um total de 1.345 usinas hidrelétricas, incluindo grandes, médias e pequenas, responsáveis por 64% do total de energia gerada no país. Além dos recursos hídricos, as usinas termelétricas produzem 24,5% do total, energia eólica 9,1%, energia termonuclear 1,2% do total e energia solar fotovoltaica 1,3%.

"Os prejuízos seriam irreparáveis, não há dinheiro para pagar"

No caso da obra da hidrelétrica de Castanheira sair do papel, "o reservatório da usina ocupará uma área de 9.470 hectares (94,7 km²), atingindo terras do município de Juara e de Novo Horizonte do Norte", como afirma o Relatório de Impacto Ambiental da Usina Hidrelétrica Castanheira realizado pelo Consórcio Habtec Mott MacDonald - NovaTerra para a EPE. O 99% da área atingida estaria localizada no município de Juara. "O município de Porto dos Gaúchos é mais distante e as obras não podem afetar a área urbana ou a área rural (...). Nós identificamos todos os proprietários afetados em uma lista", explica Elisângela Medeiros de Almeida, superintendente de Estudos Econômicos, Energéticos e Ambientais da EPE, que possui um site informativo sobre o projeto Castanheira.

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Uma indígena Rikbaktsa limpando uma panela nas margens do rio Arinos, norte de Mato Grosso.

As comunidades afetadas receberam mais informações sobre o projeto em 28 de fevereiro, quando foi realizada a primeira audiência pública, organizada pelo Ministério Público Federal e pelo Ministério Público do Estado do Mato Grosso. A EPE não foi convocada para a reunião e declarou desconhecer o motivo. A empresa informa que as audiências públicas do processo de licenciamento ambiental serão anunciadas pela Secretaria de Estado do Meio Ambiente de Mato Grosso, embora não tenham data prevista até o momento.

O rio Arinos, onde a usina deverá ser construída, já está sofrendo com os impactos das monoculturas de soja e cana-de-açúcar próximas, como está incluído no estudo de impactos ambientais em usinas hidrelétricas na bacia do Juruena, realizado pela própria empresa. A região já perdeu uma parte considerável de seus habitats naturais como resultado da expansão da fronteira agrícola e da extração de madeira e minérios. No entanto, continua a ser um dos rios com maior diversidade e quantidade de peixes entre todas as 146 espécies identificadas nesta bacia hidrográfica pelos pesquisadores do relatório, que admitem que os resultados podem ser subdimensionados. Foram classificados também 800 espécies de fauna silvestre, segundo o documento.

Bolsonaro afirmou durante sua campanha eleitoral que as terras indígenas, assim como as reservas naturais, não podem impedir o desenvolvimento do país

"A Castanheira não interfere diretamente nem nas unidades de conservação ambiental nem nas terras indígenas, então o cenário de construção dessa usina é menos conflituoso", afirmou Almeida em entrevista. Embora as terras dos Apiaka, Rikbaktsa, Kaiabi, Munduruku, Tapayuna e outros grupos indígenas que hoje permanecem isolados não fossem afetadas pelo alagamento do reservatório, a construção da usina a apenas 120 quilômetros da nascente do rio alteraria os fluxos migratórios de peixes.

As comunidades vizinhas dependem desses recursos tanto para sua subsistência alimentícia como para seus rituais sagrados. "Os prejuízos seriam irreparáveis, não tem dinheiro que pague", reconhece o líder do povo Apiaka e lista com desolação os impactos de outros projetos hidrelétricos que ele próprio visitou em outras regiões do Brasil, como Belo Monte ou Teles Pires. "Em 2000 eu estava em uma comunidade perto do rio Teles Pires e se via uma abundância de peixes, agora você tem que procurar outros rios a duas ou três horas de barco para pescar. O que está perto da nossa comunidade é tão pequeno que, se construírem a barragem, pode até secar", acrescenta.

Questionada sobre a preocupação dos povos indígenas, a EPE alegou que sua estratégia não é simplesmente compensar com dinheiro. "Tentamos manter a disponibilidade desse recurso", diz Glauce Lieggio, vice-superintendente dessa agência. A EPE diz que está considerando algumas medidas para "mitigar os impactos sobre esse importante recurso". Entre eles, um sistema de transferência de espécies "para garantir uma população de peixes a longo prazo", como explica Mariana Especie, uma analista de pesquisa da Empresa.

O estudo também afirma: "A UHE Castanheria estaria localizada em uma região considerada a mais importante zona sísmica do Brasil, denominada Zona Sismogênica de Porto dos Gaúchos (ZSPG)". Acidentes nesses tipos de instalações são comuns. No ano passado, três pequenas centrais hidrelétricas no rio Arinos foram quebradas, fazendo com que as populações ribeirinhas fossem despejadas. "São projetos avassaladores que podem acabar com nossa cultura, com a natureza, com a vida em geral", diz Morimã, que explica que, graças a uma mobilização em 1989, conseguiram parar uma represa que estava quase pronta e a apenas cinco quilômetros de distância do Salto do Sagrado, um dos locais mais emblemáticos para as comunidades indígenas Apiaka que moram nas proximidades. "É uma linda cachoeira, todo fim de semana os índios vão caçar, pescar. Nós não queremos ver isso destruído". Morimã pensa que sua comunidade adoeceria, e não poderia viver sem a natureza.

Amaral, da Funai, explica que as compensações que as empresas oferecem às populações afetadas não resolvem suas reais necessidades e considera que é "uma troca muito injusta". Questionado sobre a usina de Castanheira, Amaral responde que esse é o único projeto que não interfere diretamente em qualquer terra indígena, mas que cortaria um corredor de biodiversidade e afetaria o fluxo ecológico do qual essas comunidades dependem. "O que está em jogo neste momento é o desbloqueio das demais usinas hidrelétricas que estão sendo planejadas para a região. Castanheira é um termômetro para preparar o restante das negociações", acrescenta este representante do órgão governamental da FUNAI, que enfatiza que haveria certos impactos incomensuráveis para os povos ancestrais que vivem de maneira totalmente isolada na região.

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Essa reportagem recebeu apoio do Pulitzer Center on Crisis Reporting e foi originalmente publicado no El País, Planeta Futuro.

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