
Photo: Nick Youngson. Todos os direitos reservados. CC BY-SA 3.0
A sociedade digital impactou todos os processos políticos. Hoje já não nos parece estranho descobrir novas aplicações e metodologias que pretendem melhorar o sistema democrático desde diferentes perspectivas. O momento é propicio. As exigências cidadãs, derivadas duma crise de representação e legitimidade de instituições e partidos, provocaram que Governos de todos os tipos tentem abrir novas vias pelas que veicular esta vontade da cidadania, mas também que sejam os próprios cidadãos os que desenhem e construam as suas ferramentas para melhorar a governação. Este é o processo que se conhece como apoderamento cidadão a partir da digitalização.
Este apoderamento é explicado por dois elementos. O primeiro, a crise política que assinalámos e que se deve a uma soma de factores: os danos colaterais da crise económica global, o aumento da desigualdade dentro dos países por efeitos derivados da globalização, e o desgaste de materiais nas estruturas das democracias ocidentais que, em muitos casos, não foram capazes de actualizar-se à realidade social e tecnológica, nem de desenhar ferramentas de controlo para lidar com episódios de corrupção ou de cooptação de poder por parte dos partidos políticos tradicionais.
O segundo elemento determinante foi o desenvolvimento da sociedade rede. Muitas vezes, quando se fala da disrupção provocada por este novo modelo, descreve-se o papel das tecnologias da informação e da comunicação (TIC), os novos hábitos de comportamento, e, em geral, as alterações estruturais que marcam um antes e um depois e que afectam todos os sectores de forma transversal. Mas também se tende a esquecer outro aspecto mais simples, mas igualmente importante: o acesso à tecnologia simplificou-se de tal forma que as barreiras para criar projectos caíram em todos os âmbitos. Este elemento é a chave que se esconde detrás de muitas das iniciativas cidadãs para aprofundar a participação nos assuntos públicos.
Este é o contexto no qual aparecem as aplicações de verificação ideológica. Tratam-se de ferramentas que se activam nos processos eleitorais de cada vez mais países, ajudando a cidadania a conhecer melhor os programas eleitorais que propõem os pátios, situando-os no eixo ideológico e, de acordo com estudos recentes, aumentando os níveis de participação daqueles as que as utilizam. O seu funcionamento é simples. Através de questionários breves e simples sobre o posicionamento político do usuário/a, ajuda-se a situar este/a no espectro político, dando-lhe informação sobre a sua situação em relação aos programas dos partidos. Por isso, muitas vezes, estes instrumentos são definidos como aplicações de orientação e voto ou VAA, pelas suas siglas em inglês (Voting Advice Applications).
Como podemos ver, as VAA incluem-se perfeitamente ao cenário que descrevíamos: iniciativas de origem cidadã, baseadas em tecnologia acessível, cujo objectivo é melhorar o processo democrático e que, além disso, tende a apoiar-se em redes sociais para melhorar a sua difusão e conhecimento entre a cidadania, num processo que em muitos casos ocorre de forma alheia a actores tradicionais como instituições ou meios de comunicação.
A realidade é que a ideia de melhorar o nível de informação da cidadania perante umas eleições é uma velha aspiração. A ciência política demonstrou há já mais meio século que os votantes não só não estão bem informados antes de ir votar, mas que inclusive as suas ideias podem não ser coerentes com o seu voto. Boa parte da literatura académica a respeito identificou o problema na impossibilidade de qualquer pessoa para seguir todos os debates políticos assim como os posicionamentos dos partidos. A fórmula para paliar esta limitação está nos sesgos cognitivos de cada um, que no final acabam por converter-se no mecanismo através do qual decidimos o nosso voto.
Isto explica em parte o êxito das aplicações de orientação de voto, uma vez que reduzem os custos de informação das e dos cidadãos ante umas eleições. Ao somente responder a um questionário o usuário já pode saber qual é o partido que mais se aproxima às suas posições. Além disso, recebe informação ao detalhe sobre cada tema, com a que pode sabem em que coincide e em que não com cada partido. Com toda esta informação, tomar uma decisão é muito mais simples e rápido e faz-se sob a premissa de dispor de informação fiável. Tanto é assim, que a investigação que se realizou a respeito aponta que os eleitores tendem a seguir as recomendações de voto das aplicações sempre e quando estas estão em linha com as suas ideias política.
Outro aspecto importante da aparição das VAA é até que ponto nos ajudam a entender melhor o comportamento eleitoral da cidadania. Como apontámos, sabemos que os usuários que as utilizam participam mais que a média, mas que também tem um impacto diferente entre cidadãos com níveis diferentes de educação, e que são os que tem um nível baixo os que se beneficiam mais das mesmas, uma vez que depois de utilizá-la mostram um maior interesse pelo processo eleitoral e uma maior predisposição para participar no mesmo. Se esta evidência se confirmar com mais estudos seria uma descoberta relevante, uma vez que os índices de participação política estão intimamente relacionados com o nível socioeconómico e educativo.
Também apontámos que os cidadãos tendem a ser coerentes quando estão perante as urnas com os resultados que obtiveram nas aplicações. Neste sentido, vale a pena destacar que somente 8% decide mudar a sua direcção de voto quando os resultados que obtém não são os que esperava. Noutras palavras, as VAA são muito eficazes para afiançar o voto dos eleitores, mas não tanto para alterar a sua decisão ainda que as mesmas os situem mais perto doutras opções politicas.
A efectividade e o crescimento destas ferramentas também provocaram que diferentes investigadores se interessem por conhecer melhor os algoritmos que decidem os resultados e inclusive tratem de validá-los externamente. Este não é um tema menor. Em 2010 uma investigação demonstrou que os partidos na Lituânia podiam manipular os resultados destas publicações em seu beneficio.
Em qualquer caso, parece evidente que as aplicações de voto abriram os horizontes da investigação no ramo da politologia. De facto, a disponibilidade de quantidades ingentes de dados é tao atractiva, que já em 2012 algumas vozes avisavam sobre a necessidade de observar de perto o fenómeno desde o ramo académico. Por isso, cada vez são mais frequentes as análises de casos concretos como, por exemplo, na Suíça, Turquia, Bélgica, Hungria ou as eleições europeias de 2014, ou de investigações que entram em detalhe para analisar aspectos como o comportamento do usuário enquanto navega pela aplicação ou o controlo da sua privacidade durante todo o processo.
Como vimos, tudo parece indicar que as aplicações de orientação e voto estão a abrir um novo canal de informação que melhora a participação politica em muitos aspectos. Contudo, o sistema não está exempto de críticas. Alguns autores apontam que o seu nome, “orientadores de voto”, sugere que a decisão de votar se possa tomar unicamente em função às posições políticas dos partidos. Tratar-se-ia nesse caso duma visão redutora já que, ao classificar todos por igual, não teriam em conta as opções de cada partido de chegar ao poder e converter as suas propostas em leis. Etiquetam-se todos os partidos da mesma forma, sem ter em contra o seu tamanho, a liderança, a sua implantação territorial, a sua experiência de governos ou a possível formação de coligações.
Este problema pode-se resolver de duas formas. Uma primeira opção seria incorporar todos estes factores nos algoritmos, de forma que o sistema não só valore a coincidência entre os posicionamentos políticos, mas também a informação especifica de cada formação. Não seria uma solução perfeita, uma vez que existira um sesgo evidente, mas sem dúvida os resultados seriam mais realistas. A segunda via consistiria em mudar o relato global destas aplicações, explicitando o seu propósito informativo e as suas limitações, de forma que não se espere das mesmas outra coisa que na seja um contexto e informação complementária.
Em qualquer caso, este problema é uma limitação que surgiu devido à generalização destas aplicações e à sua crescente importância nos processos eleitorais. As VAA passaram de ser uma anedota a consolidar-se em 10 anos. Neste período converteram-se numa fonte de informação para cada vez mais votantes, num motor da participação eleitoral e em provedores de dados de qualidade sobre o comportamento eleitoral da cidadania. Não é arriscado pensar que o seu protagonismo crescerá com a especialização e com a melhoria dos formatos, assim como com a universalização do acesso às redes por parte de todas as capas da sociedade. Tendo em conta os resultados que se observaram até agora, em termos de participação e de uso, é desejável que isto aconteça quanto antes.
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