
Como o movimento de homeschooling no Brasil apoiou a tentativa de golpe
Defensores da educação domiciliar usaram redes sociais para incentivar tentativas da extrema direita de anular vitória de Lula

Membros de organizações brasileiras que defendem a educação domiciliar (homeschooling) apoiaram a tentativa de golpe em Brasília, no dia 8 de janeiro, que tentou derrubar o recém-eleito presidente do país, Luiz Inácio Lula da Silva, conforme descobriu openDemocracy.
Alguns deles se envolveram ou fomentaram nas redes discussões antidemocráticas após a eleição de outubro do ano passado, além de difundir desinformação e endossar o coro a favor de um golpe militar. Outros apoiaram ataques online contra juízes do Supremo Tribunal Federal (STF). Alguns participaram diretamente dos ataques aos Três Poderes na capital do país. Várias postagens nas redes sociais foram removidas e algumas contas foram desativadas ou tornadas privadas depois que openDemocracy entrou em contato com esses indivíduos.
Logo após a eleição, na qual o ex-presidente Jair Bolsonaro foi derrotado por Lula por pouco mais de dois milhões de votos, os apoiadores de Bolsonaro alegaram que a vitória do petista foi uma fraude perpetrada pelo STF e seu chefe, Alexandre de Moraes, supostamente para impor uma ditadura comunista. A solução dos bolsonaristas foi tentar invalidar o resultado democrático e restabelecer Bolsonaro como presidente, inclusive por meio de uma intervenção militar, caso necessário.
As autoridades brasileiras não encontraram nenhuma evidência de qualquer fraude eleitoral.
As manifestações pró-Bolsonaro começaram em vários estados em novembro e se tornaram mais violentas em dezembro. Em 8 de janeiro, uma semana após a posse de Lula como presidente, manifestantes invadiram os três principais prédios do governo na capital federal.
O movimento de educação domiciliar surgiu da maior população evangélica no Brasil, que há muito tempo apoia Bolsonaro e tem ligações com organizações nacionalistas cristãs dos EUA. A maioria dos evangélicos (68%) acredita na alegação de fraude eleitoral, segundo pesquisa divulgada em 10 de janeiro. Mais de 64% também manifestaram apoio a um golpe militar, enquanto 50% consideraram justificado o ataque ao Congresso.
openDemocracy analisou dezenas de postagens nas redes sociais (incluindo no Facebook, Instagram, Twitter e YouTube) de figuras-chave no movimento do homeschooling no Brasil. Todas as publicações mencionadas abaixo (exceto aquelas com link) não estão mais disponíveis para visualização.
Gaba Costa e Simeduc
Gaba Costa é uma importante defensora da educação domiciliar no Brasil. Sua empresa Simeduc (Simpósio Online de Educação Domiciliar) vende no Brasil o programa ultraconservador de educação domiciliar cristão norte-americano ‘Conversas Clássicas’. Ela também é membro do conselho do Global Home Education Exchange, um grupo de conservadores internacionais apoiado pela organização norte-americana Home School Legal Defense Association, que tem grande influência no movimento brasileiro.
Postagens na conta pessoal de Costa no Instagram e nas contas de sua empresa no Instagram e no Facebook incentivaram os protestos e compartilharam falsas alegações de fraude eleitoral, além de apoio à intervenção militar. Depois que openDemocracy contatou Costa no dia 20 de janeiro, para que ela comentasse os fatos, ela tornou suas contas privadas e removeu as publicações no Facebook.
No dia 8 de janeiro, quando milhares de manifestantes pró-Bolsonaro invadiram e vandalizaram o Congresso, o STF e o Palácio do Planalto, a conta do Simeduc no Instagram postou um vídeo do local do tumulto, com mais de 3.000 curtidas. Um seguidor reagiu: “Orgulho de você por representar a mim e a mais de 50% do povo brasileiro”. A postagem foi removida em 18 de janeiro.
Um vídeo da posse de Lula, pontuado por manchetes fictícias com acusações de corrupção contra ele e o Partido dos Trabalhadores (PT), apareceu na mesma conta, também em 8 de janeiro. “É inaceitável assistir a tudo isso do sofá”, dizia o post. Entre mais de 2.000 reações favoráveis de seguidores, apenas alguns condenaram os tumultos e a destruição vistos em Brasília.

Print de um post do Simeduc no Instagram, em 6 de novembro de 2022, com um avatar de Gaba Costa com coração partido
Postagens na mesma conta do ano passado, antes e depois da eleição, revelam as tendências pró-Bolsonaro de Costa. Em 6 de novembro, ao lado de um curto vídeo de um manifestante de Bolsonaro rezando, um avatar de Costa com o coração partido diz: “Dizem que somos criminosos”.
Em 7 de novembro, lia-se em outra publicação: “Não aceitamos um governo criminoso. Lula fora!” O Instagram rotulou a postagem – e várias outras nas redes sociais de Costa – com um aviso de informações eleitorais falsas.
Nós não recuperaremos esta nação sem uma guerra civil. É triste! Mas precisamos nos preparar para o pior
Mensagens semelhantes foram postadas na página do Simeduc no Facebook, onde Costa também manifestou posições pró-Bolsonaro. A página traz fotos dela com o então presidente em Brasília.
Em 24 de novembro, um post dizia: “Não vejo nenhuma chance de uma resolução pacífica… Se você quer paz, prepare-se para a guerra… Eu não esperava uma guerra real… Mas estamos ficando sem recursos…Nós não recuperaremos esta nação sem uma guerra civil. É triste! Mas precisamos nos preparar para o pior.”
Dois dias depois, ela posou para uma foto em uma instalação militar no Rio de Janeiro, repetindo: “Se você quer paz, prepare-se para a guerra”.
No dia seguinte aos tumultos em Brasília, outro post no Facebook dizia: “Se o STF continuar agindo violentamente contra a Constituição e o povo brasileiro, mais cenas dantescas serão vistas em todo o Brasil”.
Costa e outros defensores da educação domiciliar também usaram a hashtag #BrazilWasStolen. Uma análise do Digital Forensic Research Lab, que rastreia a desinformação online, concluiu que a hashtag fazia parte de uma “campanha coordenada” que recebeu mais de 1,5 milhão de menções no Twitter entre 30 de outubro e 9 de novembro.
Costa também escreveu que havia compartilhado no Telegram um vídeo do YouTube de 7 de novembro do blogueiro de extrema-direita Allan dos Santos, no qual ele propõe uma rebelião armada contra o “estado ilegítimo brasileiro… assim como De Gaulle fez na França para revogar os nazistas”. Em 2020, Santos fugiu do Brasil para os Estados Unidos, para evitar ser preso por supostamente liderar redes criminosas de desinformação.
Numa declaração escrita enviada ao openDemocracy, Simeduc disse: "Famílias educadoras desaprovam por completo atos de depredação do patrimônio público, que é parte da nossa cultura e do nosso trabalho como educadores. A defesa do direito à educação domiciliar sempre foi pautada no respeito a uma república democrática conjuntamente com os poderes do Executivo, Legislativo e Judiciário, que sempre estiveram abertos ao diálogo e ao convívio pacífico com todos os envolvidos nesta causa, desde as famílias até as suas entidades representativas."
Simone Quaresma
A controversa autora evangélica Simone Quaresma é outro rosto familiar nos círculos brasileiros de educação domiciliar, onde suas palestras, livros e artigos são amplamente compartilhados. Um de seus livros, que foi proibido em 2000 por defender o castigo corporal, foi vendido pela Kairós Consultoria Educacional e também pelo Simeduc.
Em um vídeo em seu canal no YouTube, postado no dia seguinte à eleição no Brasil, ela disse que a esquerda “quer destruir o povo de Deus e a família”.
Em sua conta no Twitter, no dia 6 de novembro, ela publicou a foto de uma família segurando cartazes com a mensagem: “Em Deus nós acreditamos. Nas Forças Armadas nós confiamos.” Quaresma comentou: “Esta família esteve ontem no centro do Rio, convocando os militares para defender o Brasil. Não os conheço, mas tenho orgulho dos brasileiros que ensinam valores aos filhos!”.

Simone Quaresma retuitou um vídeo do influenciador de extrema direita bolsonarista Paulo Souza
Ela também postou várias fotos de si mesma participando de protestos contra a suposta fraude eleitoral e também retweetou vídeos e outros conteúdos pedindo uma escalada de manifestações em Brasília a fim de construir um cenário propício para um golpe de Bolsonaro e dos militares. Isso incluiu um vídeo no qual o influenciador de extrema-direita bolsonarista Paulo Souza propôs mais manifestações em prol de um golpe liderado pelo ex-presidente.
Alexandre Magno Moreira
Alexandre Magno Moreira foi diretor jurídico de 2010 a 2018 da Associação Nacional de Educação Domiciliar (ANED), o grupo brasileiro mais atuante na promoção do homeschooling e na pressão pela legalização da prática por parte de órgãos federais, estaduais e municipais.
Moreira, que continua como assessor jurídico da ANED, também atuou como secretário nacional adjunto de direitos humanos de Bolsonaro em 2019 e 2020. Ele é autor de um curso online para pais que praticam a educação domiciliar, no qual orienta como espancar crianças, uma prática contrária à Lei, conforme revelado no ano passado em uma investigação do openDemocracy e da Agência Pública.
Ao contrário de outras pessoas citadas nesta reportagem, Moreira não comentou explicitamente a tentativa de golpe nem os ataques ao STF. No dia 14 de novembro, no entanto, ele retuitou imagens do juiz Alexandre de Moraes sendo insultado em uma rua de Nova York e comentou: “Alexandre de Moraes tornou-se imperador do Brasil. Com poderes absolutos, manda prender ou censurar quem o critica. Ele inventou o crime de lesa-majestade [traição ao rei] no Brasil.”
Preocupações com o homeschooling
O movimento homeschooling é pequeno no Brasil – apenas 70 mil crianças são educadas em casa, segundo dados não oficiais da ANED, enquanto são mais de 46,7 milhões de alunos matriculados no ensino fundamental e médio –, mas ganhou força durante o governo Bolsonaro, quando o presidente e vários de seus ministros prometeram que a legalização da educação domiciliar seria uma prioridade.
Os apoiadores conseguiram aprovar, no ano passado, um projeto de lei para legalizar e regular a educação domiciliar na Câmara dos Deputados, mas a medida ainda deve passar pelo Senado.
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A potencial promoção de castigos corporais em crianças submetidas ao homeschooling, que é proibida e considerada crime no Brasil desde 2014, foi levantada em investigação da openDemocracy no ano passado. Cerca de 81% dos casos de violência contra crianças no país acontecem dentro de casa, segundo o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania.
ANED, Simeduc e outros oito grupos e empresas de educação domiciliar endossaram e fizeram campanha pela reeleição de Bolsonaro por meio de uma série de painéis online, que incluíam tópicos como “Por que Bolsonaro é a única escolha” e “A agenda progressista e a liberdade educacional sob ameaça em América latina”'.
Um palestrante afirmou que os materiais de educação sexual incluíam “a promoção do incesto... ensinamentos sobre demonologia”, todos os quais constituem “um fardo maligno e violento para as crianças”.
Em declaração escrita ao openDemocracy, o presidente da ANED, Ricardo Dias, disse que nenhum dos membros da organização participou dos ataques antidemocráticos de 8 de janeiro. A ANED “repudia veementemente todo e qualquer ato de violência contra pessoas, instituições e autoridades públicas de quaisquer poderes da união”, diz o comunicado.
Alexandre Magno Moreira, Gaba Costa e Simone Quaresma não responderam aos nossos pedidos de resposta. Eles não estão entre as 1.406 pessoas que foram presas ou investigadas por participação nos ataques em Brasília. Até o momento, as autoridades brasileiras não confirmaram se o Simeduc está entre as organizações investigadas por promover tais ataques.
*Tradução Joana Oliveira
Actualização 2 de Março de 2023: Este artigo foi alterado para incluir a declaração do Simeduc
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