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Argentina: Crônica de uma derrota não anunciada

O governo de Alberto Fernández e Cristina Kirchner sofreu uma pesada derrota eleitoral nas eleições primárias

Lara Goyburu
21 Setembro 2021, 12.01
El kirchnerismo sufrió una dura derrota electoral en las elecciones primarias
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Natacha Pisarenko/Pool via REUTERS/Alamy Stock Photo

As eleições argentinas de 12 de setembro foram as Eleições Primárias Abertas, Simultâneas e Obrigatórias (PASO), nas quais todos os cidadãos são chamados a escolher a composição das listas de forças políticas que aspiram a apresentar candidatos para concorrer nas eleições gerais, neste caso as eleições legislativas de 14 de novembro. Estas eleições, como já foi suficientemente demonstrado pela ciência política local, contribuem para ordenar e concentrar a oferta eleitoral, permitindo a competição interna naqueles espaços que a tenham, bem como obrigando todas as forças que aspiram a apresentar candidatos nas eleições gerais a ultrapassar 1,5% dos cadernos eleitorais para poder fazê-lo. Mas para aqueles que votam, e para aqueles que se candidatam, é uma espécie de primeiro turno. Portanto os resultados são como os de uma eleição comum. E, neste caso, o que se pode ler é uma inesperada e retumbante derrota do peronismo no poder, nas mãos da centro-direita que tem como líder o ex-presidente Mauricio Macri e tem o atual chefe de governo da cidade de Buenos Aires, Horacio Rodríguez Larreta, como candidato presidencial para 2023.

Se estas tivessem sido as eleições gerais, o bloco de oposição de “Juntos por el Cambio” alcançaria a primeira minoria na Câmara dos Deputados, e a “Frente de Todos” (peronismo) perderia sua maioria no Senado. Tendo em vista a próxima apresentação do Orçamento 2022, que o Poder Executivo nacional deverá apresentar ao Congresso nos próximos dias, e as negociações em andamento com o Fundo Monetário Internacional (FMI), estes resultados seriam uma catástrofe.

Mas estas são as eleições PASO, e entre agora e novembro – quando houver as eleições em que será efetivamente formado o Congresso Nacional que acompanhará a administração presidencial pelos próximos dois anos – o governo nacional tem a oportunidade de, se não for de reverter o resultado, que parece muito difícil, de melhorar seu desempenho a fim de diminuir o duro golpe que recebeu. Por enquanto, os resultados foram um banho de água fria que o partido governante não esperava. A oposição de centro-direita ganhou a província estratégica de Buenos Aires, o território da vice-presidente Cristina Fernández de Kirchner, apesar do fato de que todo o peronismo estava unido, e a maioria das províncias, mesmo aquelas com hegemonia peronista.

O voto econômico

A situação econômica na Argentina não está melhorando. No entanto, o governo fez um esforço para mostrar dados que mostrassem uma recuperação da economia, que aos seus graves problemas arrastados do passado somou os efeitos da pandemia.

As taxas de pobreza e indigência, mesmo com as políticas de transferência de dinheiro de 2020, estão atualmente em torno de 42% e 10,5%, respectivamente

Com um governo nacional que se esforçou ao máximo para fazer avançar a campanha de vacinação nos últimos meses, vacinando 40% da população com duas doses, o governo foi relaxando as medidas restritivas que caracterizaram os primeiros 15 meses da pandemia, e a atividade econômica em junho mostrou uma recuperação mensal de 2,5%. Entretanto, há algum tempo, vários setores, tanto de dentro como de fora, vêm alertando o governo nacional para a necessidade de tomar nota (e agir em conformidade) da não recuperação ou mesmo do agravamento das variáveis econômicas que afetam a vida diária das pessoas, do fracasso desta recuperação das macro-variáveis para se traduzir na vida diária, especialmente dos setores mais baixos da população. Tudo isso pode ser visto na queda dos salários reais.

As taxas de pobreza e indigência, mesmo com as políticas de transferência de dinheiro de 2020, estão atualmente em torno de 42% e 10,5%, respectivamente. Estas taxas são especialmente dramáticas se nos focarmos na população entre 0 e 17 anos de idade. Segundo o “Observatorio de la Deuda Social” da Universidade Católica Argentina (UCA), para esta parcela da população, a pobreza é de 62,5% e a indigência de 15,8%. Neste contexto, o trabalho registrado não consegue acompanhar o ritmo da recuperação dos níveis de atividade, e a pressão sobre os salários exercida pela inflação é cada vez mais alta. Ao mesmo tempo, o acesso à moradia deixou de ser uma possibilidade viável não apenas para os setores mais baixos da população, mas também para a classe média trabalhadora. Este é precisamente o voto que aponta a balança para cada lado da "fenda" que divide a sociedade argentina. Isto hoje, diante de um mercado imobiliário avaliado em dólares na Argentina, a falta de acesso ao crédito e políticas públicas oficiais insuficientes para satisfazer a demanda por moradia, se manifesta em toda a sua crueza.

É claro que não se trata de problemas novos; a pandemia tem destacado problemas estruturais que nenhum dos governos recentes, nem progressistas nem conservadores, tem sido capaz de resolver. A demanda por trabalho registrado, salários suficientes, acesso à moradia, e propostas claras sobre como, quanto e para quem, com recursos retirados de onde, foram questões que pairaram sobre a campanha, com a oposição apontando dedos e sem que o governo desse respostas concretas além das propostas para o futuro que não satisfaziam, de acordo com as urnas, as exigências do presente. O progresso nas agendas do século 21, ligado ao acesso a direitos e projetos políticos para a promoção de indústrias que atraem moeda estrangeira, mas não geram empregos a curto prazo ou para grandes parcelas da população, deparou-se com uma Argentina heterogênea que ainda traz problemas arrastados do século 20.

Enquanto a política de vacinação está avançando, a oposição tem sido mais rápida que o governo a usar a pandemia como um dispositivo retórico, e também aproveitou os erros auto-infligidos pelo governo nacional, tais como o chamado "vacinador vip", o aniversário da primeira-dama no meio do confinamento e outros erros cometidos no ano passado pelo governo de Alberto Fernández.

Participação, coalizões e terceiras forças

De acordo com dados da Câmara Nacional Eleitoral, a participação dos eleitores seria de cerca de 68%, e embora seja verdade que esta é a menor participação desde a implementação das PASO, não é uma porcentagem pequena em um cenário de pandemia e descontentamento social. Aqui não há crise de representação.

A experiência da alt-right “criolla” (branca), personificada na candidatura de Javier Milei pela “La Libertad Avanza”, obteve 14% dos votos na cidade de Buenos Aires

Além deste fato, que pode ser lido como positivo, cerca de 70% dos votos nacionais estavam concentrados nas duas grandes coalizões que hoje dominam o cenário político nacional: “Juntos por el Cambio” (que inclui, entre outras forças, o macrismo e a “Unión Cívica Radical”) e a “Frente de Todos” (uma coalizão pan-peronista). Este cenário de duas coalizões já é uma realidade na Argentina para o eleitor médio, e as PASO incentivam sua sobrevivência, o que implica maiores incentivos para que os atores políticos não rompam com seus aliados.

Entretanto, esta leitura seria míope se não levasse em conta dois fenômenos que, embora territorializados, são marcantes na cena local. A experiência da alt-right “criolla” (branca), personificada na candidatura de Javier Milei pela “La Libertad Avanza”, obteve 14% dos votos na Cidade Autônoma de Buenos Aires. Com um discurso libertário de direita, este economista excêntrico atraiu o voto dos jovens e capturou o descontentamento de parcelas da população metropolitana ligadas à pressão estatal sobre a atividade privada, e até canalizou as frustrações de posições dos setores mais baixos da população que sentem que a ajuda estatal não compensa a realidade em que vivem, e conseguiu construir um ethos local que se traduziu em votos. Foi, no entanto, um fenômeno limitado à cidade de Buenos Aires.

Por sua vez, a “Frente de Izquierda y los Trabajadores” (FIT, Trotskista), praticamente o único partido de esquerda fora da “Frente de Todos”, melhorou seus números eleitorais. Nos dois grandes distritos, a cidade e a província de Buenos Aires, obteve 6,23% e 5,1% dos votos respectivamente e tornou-se a terceira força na província de Jujuy (no norte da Argentina, na fronteira com a Bolívia) com 23% dos votos.

Para evitar um declínio dos votos da direita em 2019, “Juntos por el Cambio” abraçou uma grande parte da direita metropolitana na candidatura de López Murphy, e outros candidatos com discursos mais radicais, que hoje jogam dentro da coalizão.

Finalmente, o grande vencedor de que poucos falam é o partido centenário que foi dado como mortos várias vezes, mas que continua ressuscitando. Os resultados locais da “Unión Cívica Radical” – parte da “Juntos por el Cambio” – mostram que o partido que liderou a transição democrática com Raúl Alfonsín e nos últimos anos mudou para a centro-direita foi, é, e continuará a ser, um parceiro necessário para qualquer coalizão que procure desafiar o peronismo nacional pelo poder. A candidatura do neurologista Facundo Manes na província de Buenos Aires obteve resultados, especialmente no interior da província, que mostram claramente que, embora o partido não tenha sido capaz de promover uma liderança nacional unificadora por décadas, ele possui estruturas locais vitais que são úteis na época de eleições.

O que está por vir

Faltam exatamente dois meses para as eleições parlamentares de novembro. O governo nacional não tem muito tempo ou margem de manobra para se recuperar desta derrota. Num contexto de negociações com o Fundo Monetário Internacional (FMI) onde a estabilização das macro-variáveis está se tornando imperativa, a possibilidade de melhorar as micro-variáveis através de transferências monetárias tem limites muito estreitos.

com a derrota, as lutas internas entre "albertistas" e "cristinistas" reemergiram

Os desafios são muitos para o governo, e com a derrota, as lutas internas entre "albertistas" e "cristinistas" reemergiram, o que resultou em declarações públicas do vice-presidente sobre "funcionários que não funcionam", disputas dentro do partido governante sobre políticas de segurança, e setores do Kirchnerismo desencorajados com um governo que eles consideram muito "centrista".

Hoje, mudar as autoridades econômicas – que fazem parte do "albertismo" – é complicado pelo fato de que estão em andamento negociações com agências de empréstimo internacionais que são fundamentais para a recuperação econômica.

O que pode acontecer nos próximos dias é uma tarefa para os adivinhos, não para os cientistas políticos, que, no final das contas, também não previram tal derrota para o partido no poder.

Para “Juntos por el Cambio”, por outro lado, o desafio está em reter os votos obtidos, evitando o crescimento de uma direita externa que não preveja intenções de diálogo futuro, e conseguindo capturar a maior porcentagem dos 30% do eleitorado que não compareceu às urnas nestas eleições das PASO.

Finalmente, para a Argentina, e além dos resultados recentes e os de 14 de novembro, resta colocar sobre a mesa uma discussão que é esquiva, mas necessária: a estabilização das macro e micro-variáveis da economia sem custos sociais mais altos do que os existentes atualmente leva muito mais tempo do que os dois anos que as regras atuais impõem entre as eleições, sujeitando o sistema político nacional a um estresse que se apresenta como um impedimento aos acordos setoriais de longo prazo necessários para responder aos problemas estruturais que a pandemia destapou com toda a sua crueza.

*Traduzido por Lourenço Melo


Este artigo foi originalmente publicado por Nueva Sociedad em espanhol. Veja o original aqui.

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