
Ser mulher congolesa no Brasil
Nove mulheres revelam os motivos que as levaram até o Brasil e quais foram suas experiências no país. Nem todas as histórias de migração são iguais.

Histórias importam. Elas são importantes para nós, enquanto indivíduos. Como a poetisa e estudiosa literária Barbara Hardy escreveu: “nós sonhamos, lembramos, antecipamos, esperamos, desesperamos, acreditamos, duvidamos, planejamos, revisamos, criticamos, construímos, fofocamos, aprendemos, odiamos e amamos pela narrativa. Para vivermos, de fato, inventamos histórias sobre nós mesmos e os outros, sobre o passado e o futuro pessoal e também social”. Elas também são importantes social e politicamente, porque as histórias não são apenas atos da mente. Eles também trabalham para moldar a cognição e gerar as mentalidades que informam diferentes tipos de políticas públicas, ações sociais e intervenções.
Histórias contadas sobre migrantes, requerentes de asilo e refugiados, seja por pesquisadores acadêmicos, bem como por formuladores de políticas, políticos, cineastas, ativistas e jornalistas, são um exemplo disso. Narrativas que estereotipam os migrantes e refugiados como trapaceiros e criminosos têm consequências sérias, às vezes letais. Atores que buscam defender os direitos dos migrantes e/ou reformar ou abolir os controles estatais sobre a mobilidade humana, por outro lado, contestam narrativas negativas sobre migrantes e refugiados contando histórias muito diferentes. Essas versões alternativas, contudo, muitas vezes retratam "o migrante" como uma vítima a ser lamentada, em vez de um vilão a ser punido, ou como um subalterno heroico que teria muito a ensinar sobre a solidariedade humana, resistência e resiliência.
Mas mesmo os pesquisadores que desejam evitar essas inversões e substituições simplistas de narrativas sobre o ‘migrante’, não contam necessariamente as histórias que seus sujeitos de pesquisa gostariam de contar sobre suas próprias vidas. E na luta por qual narrativa será privilegiada, as histórias que os próprios indivíduos contam costumam ser eclipsadas ou ignoradas.
Migrantes e refugiados africanos no Brasil
Esta série apresenta histórias de vida escritas por nove mulheres congolesas que vivem no Brasil. Alguns podem imaginar que o Brasil é um país acolhedor para essas mulheres. O mito do Brasil como uma sociedade cultural e racialmente híbrida e harmoniosa, uma "democracia racial", que foi tão importante para a construção da nação e da identidade nacional ao longo dos séculos 19 e 20, ainda tem força. Isso ajudou a criar uma percepção do Brasil como uma ‘nação arco-íris’ que prontamente acolhe migrantes de todas as regiões do globo. Essa visão otimista é apoiada pela atual Lei de Migração do Brasil de 2017 (13.445 / 2017), a qual alterou a política de migração para um foco nos direitos humanos, fraternidade, não discriminação e solidariedade. Como resultado, os pedidos de asilo têm uma chance muito maior de sucesso no Brasil do que na Europa.
No entanto, por trás da ênfase positiva no ‘hibridismo racial’, presente na mitologia nacional Brasileira, a ambição (nem sempre declarada) de "embranquecer" a população para criar uma "raça brasileira" na qual a ancestralidade africana e indígena seria menos visível sempre esteve em jogo. Como sabemos, no século 19 e no início do século 20, tal ambição influenciou as políticas de imigração brasileiras que privilegiavam a chegada de migrantes brancos europeus ao mesmo tempo em que desencorajava ou proibia a entrada de migrantes negros africanos.
Todas as mulheres nesta série tiveram suas vidas tocadas, de uma forma ou de outra, pela violência, sexismo, racismo, xenofobia, por práticas de fronteiras e sistemas de imigração, e por forças de exploração e marginalização.
Ao mesmo tempo, após a abolição da escravatura, em 1888, os africanos e seus descendentes que já viviam no Brasil foram marginalizados social, econômica e politicamente. Bairros com alta concentração de pessoas libertas da escravidão foram chamados pelas autoridades de 'quilombos urbanos' e caracterizados como locais moralmente impuros, sujos e perigosos onde 'pessoas de cor' praticavam sua religião 'incivilizada' e outros hábitos rotulados como 'africanismos'. Esses bairros foram constantemente investigados, controlados e reprimidos pela polícia como parte do projeto de ‘civilização’ moral/racial das autoridades brasileiras.
No século 21, apesar da revogação de políticas de imigração expressamente racistas e dos aspectos mais inclusivos e baseados em direitos da nova lei de imigração de 2017, o racismo persiste e afeta fortemente a vida de migrantes e refugiados africanos no Brasil (o que representa, atualmente, aproximadamente 35.000 pessoas). Migrantes do Norte Global, especialmente aqueles racializados como brancos, são bem-vindos, tratados preferencialmente e muitas vezes retratados positivamente na mídia devido às suas ‘contribuições culturais e econômicas’ para o Brasil. Africanos, haitianos e bolivianos, por outro lado, são descritos por jornalistas e políticos como um "problema"; representariam uma "crise social". Como será visto nas contribuições para esta série, essas pessoas enfrentam discriminação em todas as esferas de suas vidas no Brasil, e os bairros em que habitam hoje são descritos de forma parecida como foram os "quilombos urbanos" do passado.
Contexto por trás deste projeto
Parte do nosso projeto de pesquisa financiado pelo Conselho Europeu de Pesquisa, ‘Modern Marronage? A Busca e Prática da Liberdade no Mundo Contemporâneo’, envolve uma colaboração com a Missão Paz, uma instituição filantrópica que apoia e acolhe migrantes e refugiados em São Paulo, a maior cidade do Brasil. A equipe da Missão Paz nos apresentou às autoras contribuintes desta série, que já estavam trabalhando juntas na ideia de um projeto de narrativas para abordar as experiências das mulheres congolesas no Brasil. O projeto inicial tinha como ideia combater o discurso dominante na mídia, assim como as narrativas políticas sobre os povos da África subsaariana que vivem no Brasil; narrativas que apagam suas particularidades humanas e as caracterizam simplesmente como 'migrantes', 'refugiadas', 'africanas', 'vítimas' ou 'criminosas'. Assim, elas buscavam aproveitar o que uma das colaboradoras chamou aqui de ‘espaço de fala’ que o Brasil oferece para contar suas próprias histórias.
Pensando nisso, perguntamos às mulheres se gostariam de contar curtos relatos de vida, tendo como tema ‘liberdade’, para serem publicados pela openDemocracy. Elas aceitaram a proposta e a equipe da Missão Paz trabalhou com elas para gravar, transcrever, editar e traduzir suas narrativas. Esta coleção é o resultado deste trabalho conjunto.
Contando histórias contra um contexto e narrativas desumanizadoras
As mulheres que contam suas histórias aqui têm muito em comum: são todas mulheres africanas, congolesas, racializadas como negras. Todas realizaram jornadas para chegar no Brasil e atualmente residem no país. Todas tiveram suas vidas tocadas, de uma forma ou de outra, pela violência, sexismo, racismo, xenofobia, por práticas de fronteiras e sistemas de imigração projetados para restringir a liberdade de movimento de certos grupos, e por forças de exploração e marginalização. São pessoas que jornalistas, ativistas de direitos humanos e acadêmicos (incluindo-nos) poderiam retratar como ‘migrantes’, ‘refugiados’, ‘vítimas’ ou ‘heróis’ em narrativas sobre desigualdades sociais e políticas. Mas o que realmente transparece dos textos são suas individualidades.
Deixadas para narrar suas próprias vidas, nossas colaboradoras tornam suas diferenças visíveis. Há diversidade nas experiências que escolhem contar e nas narrativas que usam para dar sentido a si mesmas, aos outros, e a seus passados, presentes e futuros. Suas individualidades e diversidades não deveriam ser surpreendentes. O que mais poderíamos esperar de nove humanos diferentes? Mas os "migrantes" são tantas vezes imaginados e representados como seres homogêneos, definidos acima de tudo por sua ‘condição migratória’, que o alcance e a singularidade dessas histórias vão contra a corrente. Ao contá-las publicamente, nossas colaboradoras continuam seus esforços ativos, às vezes coletivos, para resistir à todas as formas de violência contra elas, incluindo a violência de estereótipos desumanizantes e narrativas unidimensionais.
Esta série foi apoiada financeiramente por Humanity United.
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