
COVID-19: última chance de reavaliar nossos valores


O novo vírus está pressionando os governos a tomar medidas sem precedentes, que chegam ao ponto de decretar o confinamento total da população e a paralização de todas as atividades que não são essenciais para enfrentar a batalha diante de uma crise de saúde sem precedentes nos tempos modernos.
De fato, vivemos um tempo inédito e desconcertante, que está mudando – como apenas as guerras mundiais do século 20 conseguiram – a história do mundo em que vivemos. E pode fazê-lo para o bem ou para o mal.
Se queremos sobreviver com esperança, esta pode ser nossa última chance de repensar seriamente o sistema insustentável que estabelecemos.
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The Covid-19 public inquiry is a historic chance to find out what really happened.
Da onde vem?
A chamada "grande aceleração" que aconteceu a partir do fim da Segunda Guerra Mundial foi seguida por uma parada repentina, e não uma grande desaceleração, havia sido previsto na crise de 2008. E é o fim dessa terrível guerra que marcou o início do que passou a ser chamado de era do Antropoceno, em que vivemos há 75 anos.
Quando a revolução tecnológica da informação e comunicação capturou definitivamente as rédeas do “progresso” nos anos 2000, alguns começaram a criticar a globalização desenfreada. Surgiram então propostas de desglobalização: uma redução ou pelo menos uma economia lenta diante das consequências do crescimento como único objetivo, da exploração ilimitada dos recursos naturais e do aumento acelerado e disruptivo da desigualdade, com consequências devastadoras para o planeta e seus habitantes.
Desde então, as vozes críticas são muitas. A crescente consciência de que um mundo em contínua aceleração está nos levando a uma grande crise deu força a importantes movimentos sociais, que aspiram a uma mudança no modelo econômico e social que põe as pessoas e o planeta no centro.
Mas governos de todas as vertentes aderiram ao modelo existente e foram incapazes de reformar o sistema para torná-lo muito mais justo e menos predatório e destrutivo de um ecossistema que já está em uma crise profunda e irreversível, por mais que em grandes conferências internacionais tenham proposto o contrário.
Mesmo após a crise financeira de 2008, quando foram realizadas grandes reuniões do G-7 e G20, defendendo teatralmente uma mudança de modelo que evitasse a repetição de um desastre econômico dessas dimensões, os governos rapidamente voltaram aos "business as usual".
Os pedidos de uma grande "re-fundação" do capitalismo estavam trancados em uma gaveta escura. Acreditaram ter resolvido o problema com algumas reformas para tornar o sistema bancário e financeiro mais robusto, e foram impostos limites ao endividamento..
Mesmo após a crise financeira de 2008, quando foram realizadas grandes reuniões do G-7 e G20 defendendo teatralmente uma mudança de modelo, os governos rapidamente voltaram aos "business as usual"
Mas ninguém se atreveu a tocar no esquema com base no crescimento ilimitado e no lucro imediato, alimentado pela economia financeira e pela especulação de mercado no curto prazo. Os últimos dias nos mostraram que os mercados de ações mundiais, reportando baixas históricas, estão dispostos se afundar inescrupulosamente usando a pandemia como motivo e sem outro objetivo além de continuar a fazer dinheiro sem importar mais nada.
Até quatro dias atrás, Donald Trump se gabava de como os mercados de Wall Street estavam mais fortes do que nunca e de como a economia americana era a melhor de todos os tempos. Tudo graças à sua política de confronto comercial com a China e seu protecionismo renovado, retirada do multilateralismo e reduções generalizadas de impostos, especialmente para empresas e bilionários, cujos lobistas em Washington vêm tomando champanhe no café da manhã desde novembro de 2016. Todos estavam esfregando as mãos à espera de uma reeleição gloriosa.
Em sua perplexidade com o fator inesperado da pandemia, Trump chegou ao ponto de afirmar em 28 de fevereiro que o alerta de coronavírus era apenas mais um teatro dos democratas (their new hoax). Uma farsa para desacreditá-lo. Até que o vírus impôs sua realidade obstinada e forçou sua administração, como quase todos os governos afetados, a adotar medidas severas de contenção.
Disrupção e esperança
Não sabemos até que ponto o sistema sofrerá e se essa crise será profunda o suficiente para causar mudanças substanciais.
No momento, a preocupação com as consequências da paralização da atividade econômica está causando uma mudança de foco, e parece que a injeção de liquidez é o primeiro medicamento de emergência. Isso implica um relaxamento dos limites da dívida pública que foram apertados pela crise de 2008 e justificaram políticas de austeridade, incluindo grandes cortes na saúde pública, com consequências devastadoras para os setores mais vulneráveis da população.
Os níveis pré-existentes de desigualdade serão um fator-chave na mensuração das consequências sociais das quedas acentuadas esperadas no PIB. Além disso, nas regiões em que a economia informal predomina, como na América Latina, muitas pessoas ficam sem renda se as ruas estão vazias, como parecem estar.
De qualquer forma, "disrupção" é o nome do jogo agora. E dá muito o que pensar. A reorganização econômica e social causada por essa nova situação deve representar uma importante oportunidade para repensar vários aspectos de nossa vida cotidiana e os valores que norteiam nossas aspirações individuais e coletivas.
O confinamento, que dezenas de milhões de cidadãos já estão vivendo na Europa, pode ser usado para refletir e repensar nossos planos, hoje adaptados a uma leitura rápida e superficial de uma realidade que muda a toda velocidade, em função do trabalho, das notícias, eventos sociais, culturais e esportivos, e dependendo dos nossos horários de lazer com base no consumo de mercadorias e no boom do turismo. Viajar, viajar, viajar, esse é o sonho que nutre nosso espírito. Viajar para tirar fotos em que saímos bem e para nos auto-contemplar.
Talvez seja um bom momento para recapturar velhas ideias que surgiram na segunda metade do século passado, quando tudo o que está acontecendo agora era apenas uma distopia improvável.
Tomemos a hipótese de Gaia, desenvolvida pelo químico britânico James Lovelock ao lado do microbiologista Lynn Margulis na década de 1970, de que o planeta está se auto-regulando através da interação entre os seres vivos e o ambiente inorgânico na Terra. O objetivo de Gaia é manter um equilíbrio no ecossistema que permita que ela permaneça viva.
Apesar de sua credibilidade científica discutível, Gaia é uma metáfora filosófica muito útil. O que a hipótese de Gaia poderia estar nos dizendo é que a atual pandemia nada mais é do que um mecanismo de defesa para a vida na Terra, um tipo de anticorpo contra um fator especialmente agressivo e tóxico para o ecossistema, a espécie humana em explosão permanente. demográfica.
O vírus seria, nessa ousada hipótese (uma vez que houve outras epidemias em que nossa presença no planeta era muito menor), uma maneira de parar abruptamente a enorme pressão que nossa espécie exerce sobre o clima e os desastres naturais, cada vez mais frequentes.
O vírus interrompe as emissões de combustíveis fósseis através de uma queda repentina no tráfego em todos os níveis (terra, mar, ar), o que melhora imediatamente a qualidade do ar que respiramos nas cidades, de uma maneira que nenhum tratado internacional conseguiu fazer. A queda no consumo devido ao confinamento também diminui a demanda por muitos produtos supérfluos e muitas viagens desnecessárias.
O vírus também tem a virtude de nos tornar iguais, mesmo que momentaneamente. Ricos e pobres, poderosos e humildes: todos podemos estar igualmente infectados. O populismo e o nacionalismo, que crescem de forma não vista desde os anos 30 do século passado, mostram seus limites claros: não há fronteiras para o vírus, que não distingue raças ou religiões, e exige solidariedade entre todos, e políticas públicas de natureza social, começando pelo acesso universal à saúde.
O Estado, que tem sido alvo de ataques sistemáticos do neoliberalismo que sempre quer reduzi-lo à sua expressão mínima, também faz todo o sentido novamente, pois é o único que pode nos garantir proteção contra as consequências da pandemia, hoje e especialmente no futuro.
O confinamento nos obriga a refletir sobre o tempo, algo que já desconhecemos em nossa rotina diária desenfreada na busca de dinheiro, para garantir que possamos continuar correndo no dia seguinte. De repente, graças ao vírus, vivemos muitas horas diariamente com nossos parceiros e crianças, e percebemos que neste mundo hiperconectado, na verdade, temos pouca comunicação com nosso entorno imediato.
O novo coronavírus nos mostra que é possível trabalhar em casa e quão inútil e oneroso são os deslocamentos diários, que somam mais de duas horas perdidas na maioria de nossas metrópoles. E também descobrimos que há um mundo analógico esquecido, o dos livros que se acumulam nas prateleiras, e também a arte da conversa descontraída.
Por fim, ao nos forçar a manter uma “distância social”, o vírus nos faz valorizar o senso de proximidade com nossos concidadãos e a importância de abraços e beijos que agora nos são proibidos.
O confinamento nos obriga a refletir sobre o tempo, algo que já desconhecemos em nossa rotina diária desenfreada na busca de dinheiro, para garantir que possamos continuar correndo no dia seguinte
Hoje, quando só podemos postar a parede do nosso quarto ou o sofá da sala, todo o nosso narcisismo, elevado ao infinito pelas redes sociais, onde as selfies governam, expôs sua futilidade.
Esse novo coronavírus traz consigo o momento de pensar humildemente sobre a nossa fragilidade e, ao mesmo tempo, a importância fundamental da solidariedade e da corresponsabilidade.
Estávamos acabando com o planeta e agora o planeta quer acabar conosco? É uma maneira muito simples e não científica de pensar sobre o que está acontecendo, mas uma coisa é certa: para ganhar algo com essa pandemia, precisamos repensar profundamente o modelo que nos trouxe até aqui.
Nossa espécie deve aproveitar esse vírus para repensar seus valores e se sintonizar com o ecossistema da nossa mãe Gaia. Mas se insistirmos em voltar ao "business as usual" quando a gripe passar, talvez não tenhamos outra chance.
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