ourEconomy: Opinion

Precisamos de um novo Bretton Woods – um realmente inclusivo desta vez

O sistema econômico global está colapsando. Precisamos substitui-lo para enfrentar as desigualdades dos últimos 80 anos

Richard Kozul-Wright Kevin P. Gallagher
9 Agosto 2022, 12.01
A secretária do Tesouro dos EUA, Janet Yellen, propôs um programa de seis pontos para reformar o sistema econômico global. Mas não vai longe o suficiente
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Chris Kleponis/Abaca Press/Alamy Stock Photo

Em 1944, com a Segunda Guerra Mundial ainda em andamento, o presidente dos EUA, Franklin D. Roosevelt, apelou por um novo futuro para a economia global e sua governança. Assim, representantes das potências aliadas se reuniram em Bretton Woods, no estado norte-americano de New Hampshire, para formular esse novo sistema econômico global – que incluiu o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial.

“Não podemos nos dar ao luxo de ter [prosperidade] espalhada aqui ou ali entre os afortunados ou desfrutada às custas de outros”, disse Henry Morgenthau, secretário do Tesouro dos EUA na época.

Morgenthau, que presidiu a Conferência de Bretton Woods, explicou mais tarde que encarregar as instituições internacionais de ajudar a desenvolver os recursos do mundo para o benefício de todos exigiria: extender apoio financeiro aos países em dificuldades econômicas; reforçar a soberania econômica por meio do acesso confiável às finanças públicas internacionais; e disciplinar o abuso de poder econômico por parte de grandes atores, tanto Estados quanto corporações.

Esses objetivos foram alcançados apenas parcialmente durante as três décadas após 1945. Mas, nos últimos 40 anos, foram completamente abandonados, prejudicando a capacidade do sistema multilateral de enfrentar os desafios globais de hoje.

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Diante do contexto da guerra na Ucrânia e das consequências da pandemia de Covid-19, a secretária do Tesouro dos EUA, Janet Yellen, propôs um ousado programa de reforma para atender à “multitude de desafios globais não atendidos”. Seu programa, que visa diretamente modernizar as instituições multilaterais, fortalecer a cooperação internacional e reconstruir a confiança na governança global, inspira-se em Roosevelt.

Há pontos positivos na agenda de Yellen, que reconhece que o sistema atual vem fracassando. Por exemplo, o Tesouro dos EUA recentemente emitiu um alerta ao Banco Mundial para que assuma uma liderança muito mais expressiva nos esforços contra as mudanças climáticas. E Yellen continua a pressionar para fechar as brechas fiscais corporativas globais.

Mas sua abordagem precisa ser ainda mais ambiciosa e inclusiva.

Carta de Havana: oportunidade perdida

Ao focar em trabalhar com“países com os quais sabemos que podemos contar”, como Yellen afirmou, preocupa que sua abordagem vise simplesmente uma renovação do multilateralismo.

Fornecer bens públicos globais – como estabilidade financeira e climática – requer soluções globais. Uma abordagem excludente não apenas arrisca um multilateralismo segmentado inadequado para enfrentar nossos desafios globais, mas subestima o quanto a atual ordem econômica internacional se desviou da abordagem nutrida em Bretton Woods.

Então, como agora, a governança do comércio internacional continua sendo um grande obstáculo para alcançar um multilateralismo mais inclusivo. Após a Segunda Guerra Mundial, o esforço para reparar e ampliar o sistema de comércio internacional recebeu sua expressão mais forte na Carta de Havana de 1948, que pretendia estabelecer uma “Organização Internacional de Comércio” para complementar os arranjos financeiros acordados em Bretton Woods.

A carta – que era ampla em seu escopo e ousada em sua ambição – estabeleceu um plano para uma “economia mundial mais equilibrada e em expansão” por meio do aumento dos gastos domésticos, aumento do comércio internacional e fluxos de capital de longo prazo.

O acordo reconheceu que o uso pleno e a distribuição equitativa dos recursos mundiais teriam de ser administrados por meio de uma forte ação pública, tanto em nível nacional como internacional, para garantir acesso favorável ao mercado para as exportações dos países em desenvolvimento, preços estáveis ​​das commodities, apoio ao desenvolvimento industrial e direitos trabalhistas fortalecidos.

Apesar de os EUA serem signatários da Carta de Havana (junto com 52 outros países, a maioria do Sul Global), forças políticas domésticas se uniram para sabotá-la — com sucesso, uma vez que foi abandonada durante o governo Truman.

Em vez disso, manteve-se um subcapítulo da carta – o GATT (Acordo Geral de Tarifas e Comércio, por sua sigla em inglês) – como a estrutura para gerenciar o comércio internacional. Embora preservando a abordagem pragmática da carta, o GATT se restringiu a reduções de tarifas (principalmente entre países desenvolvidos) e abandonou quaisquer esforços para lidar com os preconceitos e assimetrias nos mercados internacionais que impedem o desenvolvimento dos países mais pobres.

Embora muita coisa tenha mudado no cenário internacional desde 1948, os crescentes desequilíbrios no poder de mercado das últimas décadas aprofundaram as desigualdades que os países em desenvolvimento enfrentam no sistema comercial.

Esses desequilíbrios foram postos em vitrine durante as recentes negociações da Organização Mundial do Comércio (OMC) em Genebra, onde observamos o fim do relaxamento de regras comerciais – como isenções de propriedade intelectual para vacinas – para ajudar países em desenvolvimento a lidar de forma mais eficaz com a pandemia atual (e futura) em prol de um exercício de autopreservação institucional, como descreveu o redator comercial sênior do Financial Times.

Princípios compartilhados e mecanismos eficazes

Então, o que os formuladores de políticas de hoje podem aprender com a Carta de Havana?

Simplificando, a governança global eficaz em apoio a objetivos comuns não pode se restringir a uma “ordem internacional baseada em regras”. Alcançar esses objetivos requer um conjunto de princípios compartilhados e mecanismos eficazes que podem ajudar a mobilizar recursos e coordenar políticas entre países com capacidades estatais e do setor privado muito diferentes.

Três princípios inter-relacionados que emolduraram as discussões em torno da governança global na década de 1940 – que também destacamos em nosso novo livro “The Case for a New Bretton Woods”– oferecem um roteiro para transformar nosso sistema econômico global para enfrentar o atual conjunto de crises.

Primeiro, tanto quanto a eficiência, a transformação econômica – que inclui a adição de mais setores produtivos, empregos mais bem remunerados e atualizações tecnológicas – deve fornecer a métrica para julgar a saúde das relações econômicas internacionais, incluindo o comércio.

As regras comerciais que restringem indevidamente o espaço fiscal e político ou o direito dos governos de regular áreas como segurança alimentar, saúde e resposta climática (que se tornaram comuns nos últimos 30 anos) precisam ser revertidas.

Arranjos para gerenciar subsídios, em vez de abandoná-los, serão necessários para apoiar resultados resilientes e sustentáveis. Estes incluem medidas de apoio financeiro para a política industrial, como subvenções governamentais diretas e medidas de redução de impostos.

A ampliação do conjunto de isenções (particularmente no que diz respeito às regras de propriedade intelectual) e salvaguardas (como permitir aumentos de tarifas para países que enfrentam dificuldades no balanço de pagamentos) também pode ajudar a garantir flexibilidade no uso de instrumentos políticos legítimos para transformação sem promover seu abuso.

Em segundo lugar, o poder corporativo, tanto quanto a política governamental, é uma grande distorção no sistema comercial. Para reduzir a monopolização do mercado e a busca de renda corporativa, as estruturas regulatórias domésticas – como o controle dos fluxos financeiros com controles de capital mais rígidos – precisam ser restauradas.

Serão necessárias medidas de apoio internacional para fortalecer as regras antitruste, estabilizar os mercados de commodities, combater os fluxos financeiros ilícitos, facilitar o acesso à tecnologia e impedir que as empresas internacionais interfiram nos objetivos econômicos domésticos – como rescindir os acordos de resolução de disputas em acordos comerciais bilaterais e regionais conhecidos como Mecanismo Arbitral de Solução de Controvérsias Investidor Estrangeiro-Estado.

O poder corporativo, tanto quanto a política governamental, é uma grande distorção no sistema comercial

Terceiro, são necessários apoio financeiro direcionado e coordenação deliberada de políticas para evitar que uma maior abertura perpetue poder e prosperidade para alguns, e exclusão e declínio para outros.

A Rodada Doha de negociações da OMC, lançada em 2001 com o objetivo explícito de dobrar as regras do comércio em favor dos países em desenvolvimento, deve ser concluída antes de passar para as questões relacionadas às mudanças climáticas ou à economia digital. Isso ajudaria a restaurar a confiança nos processos multilaterais.

Mas para que o comércio internacional se torne parte de uma estratégia integrada de entrega às pessoas e ao planeta, novos modelos de representação também serão necessários.

Somente por meio de uma combinação de políticas domésticas dedicadas e cooperação internacional fortalecida podemos esperar reverter as profundas desigualdades da hiperglobalização e cumprir as metas de desenvolvimento sustentável da ONU. Morgenthau, por exemplo, entenderia que o multilateralismo para poucos privilegiados não é o caminho a seguir.

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