
Daniel Innerarity. Fotografia: todos os direitos reservados.
Manuel Serrano: em referencia à discussão em que participou com Pia Mancini, que análise faz do estado de saúde da democracia a nível mundial?
Daniel Innerarity: acho que a democracia está a morrer de êxito. A democracia é cada vez mais aceite como sistema de governo, havendo cada vez mais países que tem um sistema que poderíamos chamar, apesar dos seus defeitos, democrático. O problema que temos tem mais a ver com a política que com a democracia. Explico-o no meu último livro: vivemos numa democracia sem política, no que poderíamos classificar como uma época pós-política. A democracia como espaço de discussão, de mobilização, de protesto, do exercício do que eu chamo o soberano negativo até funciona bastante bem. O que funciona bastante mal é a capacidade de articular estes protestos em exercícios de soberania positiva: construção, transformação, implementação. Este seria o meu diagnóstico em geral.
Vivemos numa democracia sem política, no que poderíamos classificar como uma época pós-política.
MS: e, que análise faz do estado de saúde da democracia espanhola e do impasse que se vive neste momento? Que análise faz da crise do PSOE? É um exemplo do que acaba de descrever?
DI: é um exemplo claro do que acabo de dizer. Desde 2008 que se produziram uma longa sucessão de protestos, impugnações, movimentos sociais, compromissos para paralisar despejos… Ou seja, uma série de exercícios de soberania negativa. A sociedade civil paralisou obras públicas, privatizações de hospitais, entre muitas outras coisas… Mas não conseguimos configurar uma maioria alternativa. Fazê-lo teria exigido forjar compromissos entre agendas políticas muito diferentes – Podemos, Socialistas, Nacionalistas. O resultado está à vista: vamos ter mais do mesmo.
MS: tem futuro o Estado Nação tal como o conhecemos? Que lhe parece a incapacidade dos estados para resolver problemas? É a crise dos refugiados um sintoma da decadência do Estado Nação?
DI: sem dúvida. Perante a crise dos refugiados, tanto a União Europeia como as cidades têm tido uma posição mais atrevida, audaz e acorde com a natureza do problema que os estados. Eu, por exemplo, vivo numa cidade que elaborou um plano para acolher refugiados, que não se chegou a aplicar porque não havia refugiados, porque é o Estado que controla quantos refugiados chegam, e em que condições.
Creio que o mundo em geral, e a Europa em particular, se está a transformar mais a partir das redes, a partir das cidades, das regiões, das nações; com acordos a nível global que se vão elaborando, juntamente com uma quantidade enorme de instituições, de peritos, de lóbis. E a instância do meio, a mesma que tradicionalmente vincula a vontade do eleitorado, é a que vai sofrer mais. É também a mais retardatária, não tanto por um problema de direito administrativo, que também, mas sobretudo devido a que aqueles que formamos o eleitorado estamos mortos de medo e temos interesses a curto prazo, não sendo capazes de nos entender em relação ao bem público comum.
MS: mas, porque bloqueiam os estados a chegada dos refugiados? Devemos responsabilizar as elites políticas?
DI: bem, como sabe há um problema muito difícil de resolver. Como vimos na Alemanha, quando Merkel foi dura em relação aos países do Sul, impedindo o que ela entendia como “demasiada solidariedade”, as sondagens foram-lhe favoráveis e a sua popularidade atingiu limites insuspeitados. Contudo, quando adotou uma posição responsável em relação ao tema dos refugiados obteve resultados eleitorais desastrosos. Simplificam-se muito as coisas, não devendo a culpa muitas vezes ser atribuída às elites. Muitas vezes, estas elites fazem aquilo que fazem porque sabem que nós, cidadãos, não seríamos capazes de suportar determinadas situações.
Muitas vezes, as elites fazem aquilo que fazem porque sabem que nós, cidadãos, não seríamos capazes de suportar determinadas situações.
MS: publicou o ano passado um libro intitulado “A Política em Tempos de Indignação”, uma análise e revisão da imagem que tem a sociedade sobre a política. Existe o risco, como disse recentemente numa entrevista, que a política se torne irrelevante?
DI: a política em parte é incompreensível para as pessoas, em parte é um conjunto de pessoas que decidem sobre o acessório, e em parte é um sistema social invadido por lógicas que não são suas. Como a lógica dos meios de comunicação ou a lógica da economia financeirizada. Devido a isto, ás vezes, quando se fala de fazer boa política ou de governar bem, eu faço sempre uma pregunta prévia: estão as sociedades governadas?
Ao longo da história da humanidade as sociedades governaram-se muito poucas vezes, para muitos poucos temas e em momentos determinados. O habitual foi sempre o caos, a lei do mais forte, a pura inércia da tradição. Os seres humanos tomámos as rédeas do nosso destino em termos políticos poucas vezes, para poucas coisas e em poucos momentos da historia. Esta situação que se está a viver agora em Espanha representa isto claramente: não há governo, não há capacidade de governar. Diria que governar é mais a exceção que a regra. Dirigimo-nos, muito provavelmente, na direção de um mundo mais caótico e com governos mais irrelevantes, onde se põe em dúvida a sua legitimidade e onde a política não é o lugar onde se concentra maior saber e conhecimento -- que é exatamente o que se precisa para governar. Ou a política recupera alguma capacidade de configuração em ambientes que já não se regem pela hierarquia de comando, e consegue recuperar uma certa capacidade estratégica, ou tornar-se-á em algo irrelevante.

Teatro São Luiz, Lisboa, durante o evento "Que Democracia". Nuno Ramos. Todos os direitos reservados.
MS: mas não estamos também perante um problema de erros pessoais e de valores? Ou é um problema unicamente institucional?
DI: não creio que seja um problema de erros das pessoas. Creio que que ao analisar a política cometemos dois tipos de erros de abordagem: por um lado, pensar que é uma questão na qual as pessoas são muito importantes. Por outro lado, adotar uma abordagem normativa: pensar que são muito importantes os valores. Não digo que os valores e os indivíduos não sejam importantes; mas mais importantes são os sistemas, as estruturas, as instituições e os procedimentos de governo. E, portanto, é nisto que nos devemos concentrar, e não tanto que aqueles que ocupam os cargos sejam pessoas bem-formadas – que também –, mas sim que as regras, os procedimentos, e as estruturas estejam à altura dos desafios que temos à nossa frente.
Por outra parte devemos entender que a maior parte dos problemas que temos que resolver requerem uma mobilização de conhecimento. Problemas como o aquecimento global, a regulamentação financeira, o combate à nova desigualdade e o uso das tecnologias devem ser abordados com os valores corretos, não desprezando o alto nível de conhecimento necessário para fazer frente aos mesmos. Estes são, na minha opinião, os dois erros que estão a debilitar muito a política.
MS: então, que análise faz do auge dos populismos e do que o The Economist classifica como Post-Truth politics?
DI: bem, eu sou da opinião que na política regem uns critérios em relação à verdade muito diferentes daqueles que se aplicam noutras esferas da vida. Logo, quando se dá como certo o contrário, no fundo está-se a transmitir uma ideia errada da política, como se a mesma tivesse que ver com objetividades fácticas. A política é sobre as palavras, as mobilizações, o sentido, os estados de ânimo – e a todos estes elementos lhes temos que dar a sua devida importância. Evidentemente, no caso de Donald Trump, há um desprezo ao fáctico de tal ordem que é difícil de ignorar. Mas não me parece isto tão relevante como o facto de que não estejamos a governar os afetos, as questões de inteligibilidade. A verdade dos políticos é a verdade que mobiliza, que torna compreensíveis as coisas. A verdade relativa aos factos, por outra parte, é um aspeto muito pequeno da verdade na política.
A verdade dos políticos é a verdade que mobiliza, que torna compreensíveis as coisas.
MS: voltando a Espanha, que análise faz da situação política na Catalunha? Estamos a abordar o problema de forma correta?
DI: creio que houve um circulo vicioso de ações e reações que nos levaram a situação na qual não saem as contas para uma independência unilateral, mas onde também não saem as contas àqueles que consideram que isto não passa de uma mera efervescência. Estamos, a meu ver, perante um problema sério, que se poderia ter abordado de forma que uma maioria amplia da população se visse reconhecida na solução. Mas, neste momento, resolver esta situação exige um reconhecimento profundo da subjetividade da Catalunha.
Esta entrevista foi realizada no dia 7 de outubro, em Lisboa, durante o evento “Que Democracia?” organizado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos.
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