democraciaAbierta: Opinion

ONU precisa de democratização federalista impulsionada pelo Sul Global

Na sua forma atual, o órgão é incapaz de cumprir as promessas que possibilitaram o fim da Guerra Fria e do neocolonialismo

Arturo Desimone
20 Janeiro 2022, 12.01
Poster de 1947 do surgimento das Nações Unidas
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agefotostock/Alamy Stock Photo

O jargão contemporâneo das Relações Internacionais nos familiarizou, entre outras pérolas, com o termo "geopolítica". Mas o que isso significa? Parece bom: geo implica terra, ou sua esfera mineral, duro como uma rocha; seguido por política. Cunhado em 1902 por um cientista social escandinavo, o termo pegou. Apesar de sua referência à rocha, “geopolítica" carece de peso, porque não carrega as implicações diplomáticas de "relações internacionais" ou diplomacia, compromisso e negociação; talvez seja essa uma das razões pelas quais o líder russo, Vladimir Putin, prefere esse termo.

Como palavra técnica, implica que as ações podem ser determinadas por e a partir da comunidade de especialistas, superando assim a opinião popular e as forças democráticas. É claro que a infinidade de desafios que os verdadeiros internacionalistas enfrentam hoje não podem ser resolvidos com palavras, nem com a criação de mais um comitê.

A ONU, na sua forma atual, é incapaz de cumprir as promessas feitas entre os atores internacionais que possibilitaram o fim da Guerra Fria (a perseverança da OTAN não é o menor desses anacronismos) e o fim do colonialismo tradicional após as revoltas anticoloniais forças que se seguiram à Segunda Guerra Mundial.

A sensação de abandono e exclusão da tomada de decisão internacional vivida por muitas das ex-colônias antagônicas do mundo influenciou seus esforços para criar fóruns internacionais alternativos. Entre eles está a União de Nações Sul-Americanas, ou UNASUL. Ratificada no Uruguai em 2011, a cúpula reuniu a maioria dos governos de esquerda latino-americanos que, na época, eram liderados pelo venezuelano Hugo Chávez.

Outras iniciativas buscaram unir os países do BRICS, como o já esquecido plano de criar um banco dos BRICS como alternativa às empresas internacionais de moeda. A União Africana foi forjada em 2001, em Addis Abeba. Os atritos com o Norte Global e exclusão pelos grandes atores do fórum da ONU ajudaram a desencadear esses criativos esforços políticos e cimentaram a crise de credibilidade da ONU.

Esses experimentos demonstram como os sindicatos e os cidadãos dos países mais vulneráveis ​​à intervenção humanitária podem desempenhar um papel de liderança na assessoria de um projeto de reforma da ONU. A plataforma latino-americana, que reunia os países dissidentes do Sul Global, encarnava uma crítica à ONU resultante dos atritos da era passada (e excessivamente otimista) de Chávez com o Norte global. A UNASUL foi soterrada com a reversão da chamada "onda rosa" na América Latina.

Em 2017, um consórcio de governos de direita recém-ressuscitados enterrou efetivamente a UNASUL para dar início ao Grupo de Lima, liderado pelo governo do brasileiro Jair Bolsonaro e do colombiano Iván Duque, com a curiosa e onerosa adesão do governo canadense de Justin Trudeau.

Espera-se que a recente ascensão de Pedro Castillo em Lima e as guinadas históricas à esquerda em outras partes do continente convidem a um renascimento: desta vez de uma UNASUL 2 mais autocrítica, que deixa de lado ilusões partidárias e invectivas vazias, enquanto enfrenta a turbulência que aflige o povo venezuelano e nicaraguense.

Um problema no coração da ONU se manifesta nas relações excessivamente diplomáticas entre oligarquias e funcionários de países membros

O Ocidente raramente honrou os acordos internacionais feitos no final da Segunda Guerra Mundial, no final da Guerra Fria e durante as horas finais do colonialismo. Em vez disso, o Ocidente optou por atualizar sua linguagem. Por exemplo, "terceiro mundo" tornou-se o "mundo em desenvolvimento" e agora "Sul Global" está em voga, enquanto "terceiro mundo" é desaprovado pelos mesmos esquerdistas cujos antepassados associaram ao radicalismo da revolução anticolonial.

Mas a verdadeira mudança deve ser profunda, no verdadeiro sentido da palavra "radical", que significa "chegar à raiz das coisas", no cerne da questão.

Fator conforto

Há um problema no coração do sistema da ONU que se manifesta nas relações excessivamente diplomáticas entre oligarquias e funcionários de países membros. A estrutura existente permite que funcionários locais obtenham cargos de prestígio vinculados à ONU, simplesmente por pertencerem aos círculos de poder.

Exemplos não faltam, com é o atual governo colombiano de Duque, que supostamente mantém listas negras de intelectuais indesejados ou não alinhados, em contraste com listas brancas de especialistas favorecidos, "amigos" que elogiam as posições linha-duras do ex-presidente Álvaro Uribe, enquanto minam violentamente o histórico processo de paz naquele país.

Demonstrando que poucas ou nenhuma das grandes crises que enfrentamos hoje podem ser resolvidas apenas no nível de um único Estado-nação, os acordos de paz da Colômbia envolveram uma série de atores e mediadores internacionais para auxiliar as difíceis negociações entre as FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) e o governo conservador de Juan Manuel Santos, ganhador do Prêmio Nobel. Todos compareceram à negociação em Cuba, com representantes venezuelanos dentre a mediação norueguesa. Da mesma forma, hoje o México sedia conversas entre o partido no poder e a oposição venezuelana.

Nenhum ator político parece se opor mais abertamente ao engajamento pacífico em nível internacional ou pan-americano do que o governo Duque, que desde sua posse tem visto assassinatos seletivos realizados contra líderes sociais e militantes aposentados das FARC, violando assim todas as promessas e acordos diplomáticos que lançou as bases para o desarmamento, do que já era então um dos mais longos conflitos armados do mundo.

Apesar de serem democracias, nenhum observador sério encontraria evidências de que o governo colombiano, ou mesmo o salvadorenho Nayib Bukele, está disposto a selecionar intermediários diplomáticos honestos e críticos. E, no entanto, a atual estrutura interna da ONU garante que os príncipes elejam seus representantes na ONU. A ONU poderia ter oferecido um fórum adicional para evitar a atual reversão dos acordos de paz?

Os movimentos internacionalistas atuais devem fazer campanha pela democratização da ONU e pela responsabilidade local

A Colômbia raramente é obrigada a fazer o mesmo que sua vizinha e inimiga Venezuela, o que, é claro, também determina que seus representantes da ONU pertençam ao círculo interno de partidários leais. No entanto, isso por si só não justifica o salto para o que infelizmente se tornou o consenso do universo liberal: presumir que governos ocidentais estrangeiros contrários a um governo como o de Caracas tenham o direito de autenticar Juan Guaidó como presidente à sombra de um governo paralelo venezuelano.

Afinal, a longa série de intervenções humanitárias recentes que desorganizaram regiões inteiras do mundo – o Oriente Médio e a África, em particular – prejudicaram a credibilidade do poder e da missão fundadora da ONU. Os movimentos internacionalistas atuais devem fazer campanha pela democratização da ONU e pela responsabilidade local, para que os cidadãos possam evitar rixas locais, cartéis e intromissões estrangeiras, ao nomear uma representação popular da ONU. Claro, a insatisfação não se limita ao Sul.

Como permitir que os menos corruptíveis e os mais visionários representem seus países em um fórum que foi originalmente concebido como um projeto utópico e idealista: um parlamento mundial? As Nações Unidas, originalmente nomeadas em homenagem aos vencedores aliados da Segunda Guerra Mundial, expandiram seus membros para incluir países menos poderosos na esperança de acabar com as guerras de extermínio e o princípio de Tucídides de que “os fortes fazem o que podem e os fracos sofrem o que devem".

Os primeiros crentes idealistas na ágora da ONU tentaram atender às advertências dadas à humanidade pelo resultado das guerras mundiais. No entanto, apesar das comemorações retóricas que nos exortam a lembrar o passado, as reverberações e os padrões de ação que caracterizaram essas guerras catastróficas continuam vivos na era neoconservadora.

Às razões e motivos acima devem ser acrescentadas as memórias óbvias de Ruanda, de Srebrenica e as respostas profundamente imperfeitas da ONU a ambas as crises. Uma hierarquia rígida, que prioriza os países que abrigam as principais sedes da ONU na cadeia global de comando, sustentou essas tragédias sangrentas. Um modelo organizacional mais popular poderia ter ajudado. Plataformas para povos apátridas são necessárias para resolver as múltiplas e crescentes crises de refugiados, ao mesmo tempo em que impedem que regimes terroristas e antiterroristas alimentem ainda mais seu crescimento.

Uma campanha de reforma da ONU teria que considerar como desafiar o que tem sido cinicamente, mas com razão, chamado de "lei de ferro da oligarquia" que afeta as relações entre as organizações e sua comitiva. No passado, essa realidade foi aceita ou descartada agressivamente pelas potências coloniais imperiais, que supunham que um conjunto inteiramente diferente de leis naturais governava o comportamento humano nas então colônias. (Basta ler "Plain Tales of the Hills", de Rudyard Kipling, que narra as desventuras de burocratas ingleses na Índia, para ter uma ideia.)

Um apelo por uma retórica e linguagem mais ativistas, empregando os mesmos escalões de insiders, é insuficiente

Um simples apelo por uma diplomacia da ONU mais ativista arriscaria levar ao território familiar de um "colonialismo esclarecido" modernizado, como praticado por indústrias humanitárias e apoiadores ocidentais da mudança de regime. Um apelo por uma retórica e linguagem mais ativistas, empregando os mesmos escalões de insiders, é insuficiente, até mesmo perigoso quando combinado com o vácuo, e facilmente amplificaria a influência de intelectuais do tipo que o sociólogo Barrington Moore identificou em 1968: membros da intelectualidade técnica que buscam "a solução predatória da reforma simbólica em casa e do imperialismo contra-revolucionário no exterior".

Apesar das prescrições do secretário-geral da ONU, António Guterres, sobre como o empoderamento das mulheres através do uso de linguagem neutra em termos de gênero diminuiria a corrupção, a atual estrutura da ONU não impede que seus funcionários (de qualquer categoria) resistam à tentação de enriquecer, entrincheirando-se ainda mais com as oligarquias nacionais que promovem a ditadura e a pós-democracia em todo o mundo.

A permeabilidade a interesses nefastos não pode ser resolvida com uma nova redação ou seguindo modas. Os agentes das velhas forças corruptoras podem facilmente dominar as soluções tecnológicas rápidas da terminologia.

Apreciar as ferramentas que temos para usá-las

O desafio de manter uma instituição da ONU verdadeiramente internacionalista requer uma preservação insistente e memorável da tradição internacionalista da ONU: suas raízes históricas no auge do esforço de guerra dos Aliados e sua independência dos interesses locais. Alguns países com corajosos progressistas eleitos ao poder talvez pudessem iluminar o caminho, contratando um emissário ou embaixador da ONU de fora das comunidades de especialistas habituais.

A ONU oferece um mecanismo valioso e único: é o único órgão multilateral que oferece espaço de diálogo e representação para todas as nações. Por isso devemos preservá-la.

Hoje, a ONU é geralmente percebida como um elefante geriátrico fraco, incapaz de evoluir, atacado por muitas flechas e à espero do próximo fuzil trumpiano. A renovação urgente, o investimento e a democratização são urgentemente necessários.

Raison d'état, no jargão das Relações Internacionais, significa "a justificação da política externa de uma nação com base em que os próprios interesses da nação são primordiais", por exemplo, o "excepcionalismo americano", ou as variações francesas e britânicas destes, que recentemente chamou a atenção do mundo nas perigosas escaramuças entre a França e os EUA sobre os submarinos nucleares vendidos para a Austrália. Essas tensões começaram antes do impasse australiano, é claro, como quando a França e os Estados Unidos, sob Donald Trump, disputaram influência militar no Mali.

Hoje, a raison d'état e os métodos intergovernamentais de agrupamento ou confronto, ignorando os fóruns internacionais, tornam-se feridas cada vez mais visíveis no sistema da ONU. O unilateralismo do "America First" começou muito antes de Trump abandonar as ilusões formais de aquiescência dos EUA. Trump conseguiu, no entanto, inspirar imitadores a condenar a ONU e o multilateralismo – como Bolsonaro, que encarna a nostalgia da direita brasileira por um império brasileiro fechado em si mesmo.

Atualmente, a ONU abriga um multilateralismo desordenado, promovido por potências hegemônicas regionais, que de fato bloqueiam o caminho para seu objetivo original.

Uma força democratizadora torna-se preeminentemente vital e necessária, para reconstruir o "contrapoder" diante da paralisia e da busca volátil de conflitos dos poderes antagônicos. Tal movimento de reforma democrática poderia impulsionar as instituições mundiais – a ONU, em primeiro lugar – em direção a uma transformação de acordo com as necessidades e possibilidades de nossos tempos.

Uma Assembleia Parlamentar das Nações Unidas poderia ser um primeiro passo ao ideal radical inspirado em um Parlamento Mundial

Uma representação mais democrática de diferentes nações nos fóruns mundiais permitiria que ativistas cívicos, minorias, povos apátridas e movimentos de oposição tivessem maior ressonância e expressassem suas necessidades e aspirações históricas.

A ideia de uma Assembleia Parlamentar das Nações Unidas (APNU) poderia ser um primeiro passo ao ideal radical inspirado em um Parlamento Mundial, reunindo os povos do mundo, em vez de governos estritamente (como é o caso do Assembleia Geral da ONU), precisamente como aconteceu com a assembleia parlamentar europeia que mais tarde se tornou o Parlamento Europeu, com representantes eleitos diretamente pelos cidadãos, em vez de por delegações dos parlamentos nacionais (um primeiro passo relevante).

A democracia representativa não pode satisfazer por si mesma. Precisamos de plataformas democráticas em nível planetário e em nível nacional e regional, para manter o controle cidadão sobre instituições influentes no período entre uma eleição e outra. Reuniões recentes de ativistas transnacionais também levantaram a ideia de uma Iniciativa para a Cidadania Global no modelo da Iniciativa de Cidadania Europeia (ainda a ser reformada para maior eficácia), um possível instrumento futuro para os cidadãos do mundo exercerem sua influência sobre o tomada de decisão da ONU.

O último a sair da festa

Por fim, resta o que pode representar o maior desafio para os reformistas: a reforma do Conselho de Segurança, o órgão "supremo" do sistema ONU, no qual está incorporado o verdadeiro equilíbrio de poderes, que para um número crescente de nações parece relíquia de um passado antigo. Um sinal claro de seu caráter relicário é a presença do Reino Unido no Conselho de Segurança.

A presença da Grã-Bretanha remonta à ordem internacional de 1948, durante o eclipse do império britânico. Mais de 70 anos depois, o Conselho de Segurança das Nações Unidas não deveria ser outra boia salva-vidas institucional para a vaidade e a nostalgia imperial.

Tal "atualização" seria um pequeno passo para abolir o poder de veto das superpotências, mas muito significativo, de acordo com a receita de sucesso de Martin Luther King, de subir a escada de Jacob degrau por degrau rumo à liberdade.

Honrar os predecessores através da ação

Movimentos como o Progressive International poderiam apoiar os apelos vindos de ONGs críticas para reformar a estrutura burocrática da ONU e seu "sistema oligárquico" de remuneração e compartilhamento de tarefas. Esses problemas transformaram os funcionários da ONU em uma espécie de aristocracia supranacional moderna, um jet-set que não presta contas ao povo. Essa pode ser uma das principais batalhas de um novo internacionalismo quando sair da quarentena global.

Estamos diante do imperativo ético de recuperar o espírito federalista de visionários como Altiero Spinelli, fundador do Movimento Federalista Mundial, e seus antecessores, entre eles os socialistas que se opuseram aos conservadores do cartel na criação da União Européia, após a Segunda Guerra Mundial, período em que a ONU formou sua ala diplomática. Essa mesma instituição apoiou sem reservas as lutas de líderes anticoloniais da independência, como Amílcar Cabral, no final da década de 1960, que tinham objetivos muito distantes de nossos valores atuais.

Recuperar a tradição federalista mundial significa reconstruir uma federação para desativar a possibilidade de guerra para além dos pequenos confins dos Estados da Europa Ocidental e Central, sem dúvida a única área em que as hostilidades foram verdadeiramente pacificadas por nossos projetos, incluindo a UE e a ONU. Agora é a hora de finalmente abordar a causa da reforma com vistas a uma ordem internacional nascente. Pode não haver outro momento.

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