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Dez elementos chave para explicar o frenesim colombiano

“Ao extremo de já ninguém poder saber com certeza onde estavam os limites da realidade” – Gabriel García Márquez, Cem Anos de Solidão. Español English

Alejandro Matos
26 Outubro 2016
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Manifestação pela Paz em Bogotá, Colombia. 12 outubro 2016. AP Photo/Fernando Vergara.Todos os direitos reservados.

Explicar-se a si mesmo é uma tarefa complexa e incompleta. Por isso, tendemos a ir ao psicólogo, falar com amigos, educadores ou religiosos para consegui-lo. Explicar ao estrangeiros o que aconteceu na Colômbia nas ultimas duas semanas não é menos difícil. Assinar o fim de uma guerra civil de 52 anos (26 de setembro), que o acordo seja submetido ao plebiscito e ganhe o Não (2 de outubro) e que logo a seguir lhe seja concedido ao presidente perdedor o prémio Nobel da Paz (7 de outubro) descreve uma sociedade apanhada pelo espirito do frenesim e pelos demónios da contradição. Talvez, o mais paradoxal seja entender desde o exterior o triunfo do Não. Este artigo pretende explicar o que aconteceu e que o se segue na Colômbia.

Que aconteceu

Como sempre ganhou a abstenção. A Colômbia é um país no qual, por diversas razoes, nunca votou mais do 50% do eleitorado. Em média vota entre o 30 e o 40% dos que tem direito a fazê-lo. Desta vez, 63% não votou. Depois de 52 anos de guerra civil, uma parte importante do país observa a guerra como se esta acontecesse nalgum país distante, ficando em casa à espera de que as minorias decidissem por eles. Ao fim e ao cabo será 18% -- aqueles que votaram Não, - da população que decidirá sobre a sorte dos restantes 82%. A indolência é um dos inimigos mais perigosos da democracia porque proporciona a oportunidade a uma legião dos que Valentina Pazé denomina estúpidos tomar decisões –neste caso não as tomando – sobre os direitos fundamentais da totalidade.

Além disso produziu-se um desse conjuros mágicos de natureza macondiana. A costa Caribe, onde o apoio ao “Sim” era esmagador, sofreu as consequências do furação Matthew. Em todos estas províncias o “Sim” ganhou por mais de 60% e em todos eles a abstenção situou-se por cima do 75%. Sem furação não estaríamos a fazer estas análises. Num plebiscito que se perdeu por menos de meio ponto percentual, uns poucos votos nesta zona teriam mudado o resultado.

Santos ocupa há seis anos e meio a presidência do país. O poder desgasta e a imagem de Santos está fragilizada. O índice de aprovação da sua gestão não passa de 30%. Existia um alto risco de que uma parte dos votantes do “Não” votasse contra Santos, não contra os Acordos. E foi isto mesmo que aconteceu. No voto do “Não” juntaram-se múltiplas insatisfações. As daqueles que não estão dispostos a fazer nenhuma concessão às FARC. As dos evangélicos e ultracatólicos que pensam que a família e a Colômbia vão acabar pela aprovação dos direitos dos homossexuais. As dos que rejeitam as políticas económicas e sociais do presidente Santos, assim a sua propensão a prometer e a não cumprir. As dos que sentem a falta do ex-presidente Uribe e das suas políticas extremistas. A lista é interminável. Produziram-se numerosos atos públicos de sindicatos e associações que pediam o voto no “Não” se o governo não cumprisse com o que estava inscrito nos Acordo. Quer dizer, o plebiscito foi usado para descarregar toda uma serie de insatisfações, umas que tinham que ver com os Acordos e muitas outras que não. O voto do “Sim”, pelo contrário, estava centrado nos Acordos: uma parte importante dos votantes não apoia as políticas do presidente, mas sim o conteúdo do negociado.

As campanhas oficiais do “Sim” e do “Não” polarizaram e manipularam. Desde o governo imperou a soberba, por um lado, pensando que o “Sim” arrasaria e, por outro lado, situando os que votariam “Não” como inimigos da paz e amigos da guerra. O presidente criou medos absurdos e incómodos, como quando asseverou que se ganhasse o “Não” no dia seguinte as cidades seriam bombardeadas pelas FARC. Desde a campanha liderada por Uribe estudou-se e manipulou-se a população de forma consciente. Como afirmou recentemente o diretor de dita campanha, a sua estratégia consistiu em não explicar os argumentos contra os Acordos, mas sim em alterar a população para que fosse votar irracionalmente. Para que isto fosse possível, às classes médias e altas disseram que lhes iam subir os impostos para pagar aos guerrilheiros, e às classes baixas disseram que lhes iam tirar os subsídios para dá-los aos guerrilheiros. Em todo o país profetizou-se que se ganhava o “Sim” haveria um governo castrochavista na Colômbia, ainda que ninguém explicasse a lógica que sustentava dita profecia. E é que o medo não responde a razões lógicas. Nada de isto estava nos Acordos, mas conseguiram que se votasse contra eles. A campanha do “Não”, conseguiu, de forma inteligente nos últimos 15 dias convencer os seus seguidores que não votassem a favor da paz, senão contra os Acordos. Uma multidão de colombianos começou a afirmar que tinha lido as 297 páginas de um texto jurídica e politicamente complexo, e que não estava de acordo com múltiplos pontos, ainda que não acertasse a determinar quais e por quê. Esta mensagem apoderou psicologicamente muitos votantes que se sentiam envergonhados por ser considerados como inimigos da paz.

A religião desempenhou um papel ambivalente e perigoso num país profundamente religioso. Do lado da Igreja Católica, enquanto o Papa Francisco fazia campanha pelo “Sim” desde Roma, chegando ao ponto de manifestar dias antes do plebiscito que só votaria a Colômbia se ganhasse o “Sim”, a Conferencia Episcopal exortou aos fiéis que votassem em consciência…demonstrando uma vomitiva suavidade apocalíptica contraria aos sinais dos tempos (Apocalipses 3,16). Do lado as igrejas evangélicas a maioria decantou-se de forma direta e ativa pelo “Não”, misturando mandatos divinos e dogmas – que atentam contra os direitos humanos – e que nada tinha que ver com os Acordos. Para estes, o carácter demoníaco dos Acordos tinha sido profetizado pela Bíblia, e tinham que votar “Não”. É lamentável, mas certo: os fiéis acreditaram nos seus pastores e como ovelhas subalternas foram votar.

Os meios de comunicação, pela menos grande parte deles, puseram em risco o direito à informação. Ainda que muitos deles sustivessem uma linha editorial a favor do “Sim”, na realidade foram porta-vozes permanentes das terríveis mentiras do “Não”, sem exercer a sua obrigação de verificar as acusações. Muitos políticos a favor do “Não” habituaram-se a proferir graves acusações contra o presidente, as FARC e os Acordos sem prova-las, tendo os meios de comunicação se habituado também a reproduzi-las acriticamente, como se existisse um direito a manipular e a mentir, e a obrigação mediática de exercer a gritaria do mencionado direito. Não importava a informação, mas sim o rating que se disparava depois de cada mentira. Talvez das poucas jornalistas que se comportou de forma exemplar foi Yolanda Ruiz. Negou-se a emitir acusações infundadas por parte do “Não”, recordando aos colegas de profissão, sem muito sucesso, que o jornalismo tem como obrigação salvaguardar a veracidade e o dever de não dar voz à manipulação.

Que se segue

O triunfo do “Não” felizmente não supôs o fim da negociação, senão a continuação da mesma. Nos primeiros momentos os partidários do “Sim” demonstraram que não tinham plano B. Mas os partidários do “Não” demonstraram não ter sequer um plano A. Os primeiros não esperavam a derrota e os segundos não imaginavam uma vitória. Isto fez com que as horas posteriores à publicação dos resultados estivessem repletas de incerteza. Felizmente, tanto do lado do Presidente, como das FARC e como dos partidários de Uribe, os comunicados foram tranquilizadores, demonstrando estar à altura da gravidade da situação. A isto há que adicionar o consenso de todas as partes para que se conserve o cessar-fogo bilateral, o que supõe uma grande vitória. Para que este processo siga em frente é também necessário que se mantenha e fortaleça p apoio da cúpula das Forças Armadas e dos Estados Unidos. A dia de hoje é mais viável o primeiro que o segundo com o não desejado – mas também não improvável, - triunfo de Trump.

O caminho a seguir não existe. Temos que o construir agora entre três, não entre dois. Alguns dos possíveis caminhos seriam os seguintes:

Um seria seguir em frente com os acordos e conseguir a sua validez jurídica através do Congresso. Este caminho é politicamente o mais improvável e o mais ilegítimo uma vez que não só ignoraria o resultado do plebiscito, mas também o faria através da instituição mais detestada pela população – o seu índice de aprovação não chega a 8%.

Outro consistiria numa renegociação de alguns pontos dos acordos que não levasse muito tempo. Esta solução seria a mais desejável porque acolheria a vontade dos partidários do “Sim” e do “Não”, uma vez que ambas posições ganhariam e sentiriam reconhecida a utilidade do seu voto. Mas fica por ver se as FARC estão dispostas a renegociar. Tudo depende de lhes proponham. Também está por ver se do lado de Uribe querem uma negociação curta ou uma negociação que se alargue até às negociações presidenciais de 2018. O facto de que Uribe tenha eleito os seus três pré-candidatos presidenciais como os seus três negociadores foi interpretado como um passo nesta direção. Seria um grave erro que os Acordos dependessem de umas futuras eleições e de uma insuportável campanha de 18 meses.

Um terceiro caminho seria o de uma Assembleia Nacional Constituinte, que era a proposta das FARC desde o inicio das negociações, tendo sido rejeitada inúmeras vezes pelo governo. Mas hoje em dia parece ser o desenlace mais provável. Esta é uma saída arriscada, porque, pese a que os Acordos exigiam dezenas de reformas, a atual Constituição colombiana possui umas garantias que provavelmente não seria superada numa nova constituinte. Pelo contrário, a polarização de forças e ambições é de tal magnitude que não é improvável que a nova Constituição seja uma espécie de Frakenstein que recolha os interesses contrapostos de múltiplos grupos e sindicatos, e perca de vista o bem comum como principio fundamental. Esta posição obvia que o problema da Colômbia não é a sus Constituição, mas sim a falta de vontade política para pô-la em prática. Uma nova Constituinte corre o risco de ajustar a Constituição aos dispares, contrários e egoístas vontades politicas que a negociariam.

A justiça transicional é um processo político no qual a justiça se flexibiliza com o propósito de transitar de um estado histórico negativo a outra melhor. Os Acordos reconheciam esta situação: a justiça punitiva era minimizada em relação à justiça restaurativa, mas em troca exigia-se a todos os vitimários de todas as partes (guerrilheiros, militares, policias, políticos, empresários, latifundiários…) toda a verdade sobre os gravíssimos crimes cometidos e se isto não se cumpria cai sobre eles o peso da justiça penal. Uma sombra que se cerne sobre este novo contexto é se a verdade não será a vitima resultante do triunfo do “Não” e da renegociação. A verdade afeta as elites de todas as partes, que não estão especialmente interessados em que a sua luz ilumine a população e esclareça os factos e a sua interpretação histórica. Uma guerra civil de 52 anos no pôde permanecer e suster-se no tempo sem a combinação de forças económicas, sociais, religiosas e políticas. A estas elites, mais que o risco de impunidade – na Colômbia de facto não é um risco, mas sim uma realidade: o novo procurador geral reconheceu no dia 1 de agosto no seu discurso de tomada de posse que o índice chega ao 99% --, inquieta-os a verdade. Como dizia Nietzsche, aos seres humanos não nos envergonha cometer atos moralmente detestáveis, mas sim que os outros tenham conhecimento dos mesmos.  

Queda de um país fragmentado… e esperançado. Por um lado, um terço, o que votou, muito enfrentados. Famílias, grupos de amigos ou de trabalho, vizinhos, etc…vivem na polarização. Este plebiscito abriu feridas nos círculos mais próximos e de confiança que serão difíceis de cicatrizar. Por outro lado, é um facto que praticamente em todas as zonas que sofrem o conflito armado o “Sim” ganhou por uma maioria esmagadora. Como explicar às comunidades indígenas, negras e camponesas, assim como às vitimas, que os seus compatriotas urbanos que não sofrem a guerra decidiram que eles a devem continuar a sofrer? Esta falta de solidariedade não só é incompreensível, mas também inexplicável, já que é a teimosa repetição histórica do classismo.  Por último, um sinal de esperança. Uma multidão de jovens estudantes saiu à rua das grandes cidades no dia 6 de outubro ao grito de “Queremos Paz”, exigindo às três partes que se ponham de acordo com rapidez. Centenas de milhares de estudantes lembraram os mais velhos de que não querem continuar a viver uma guerra que não criaram, mas para cujo final estão dispostos a contribuir. Talvez seja a pressão da rua a obrigar as partes enfrentadas a procurar um Acordo Definitivo.

Existe um sentimento geral no país de que este Acordo tem que ter uma solução. Na Colômbia há um ditado que descreve aqueles que se assustam com o seu próprio êxito: “matou o tigre e assustou-se com a pele”. É nesta situação que nos encontramos, e esta surpresa está a pôr de acordo as partes e os votantes enfrentados reconheçam que há que procurar uma saída. Parece que, pela primeira vez, a partir do tremendo ridículo internacional que foi o triunfo do “Não”, o povo colombiano está disposto a ver-se livre da sua própria condena histórica, aquela com a qual termina o livro Cem anos de Solidão: “…porque as estirpes condenadas a cem anos de solidão não teriam uma segunda oportunidade sobre a terra”. 

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