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Em Um teto todo seu, Virginia Woolf escreveu que, havia séculos, as mulheres serviam como espelhos com poderes mágicos de refletir a figura do homem com o dobro do tamanho natural.
Esses espelhos, fundamentais para ações violentas, explicavam a insistência de personagens, como Mussolini, na inferioridade de mulheres, porque se elas não fossem menores, eles deixariam de crescer.
Quase cem anos depois, a alegoria do espelho ainda constitui um recurso para assegurar a supremacia masculina e, no cenário político brasileiro, aparece traduzida em discurso de ódio contra as mulheres, mas também contra toda sorte de grupos mais vulneráveis na fala do candidato à presidência Jair Messias Bolsonaro.
A opção pela violência como resposta aos problemas do país ilustra como fazer política, para o ex-capitão do Exército, significa transformá-la em campo de guerra, fabricando inimigos e liquidando-os.
No Brasil, coube às mulheres, que, junto a outras minorias, são alvos da violência propagada pelo candidato, nomear devidamente o que ele representa.
Como exemplo do discurso e da tática de Bolsonaro, há a declaração dirigida à deputada federal Maria do Rosário (PT): “é muito feia, não faz meu gênero, jamais a estupraria”.
Nomear é preciso, porque adjetivos eufêmicos como “conservador” ou “polêmico”, empregados pela mídia tradicional e por alguns setores das elites políticas brasileiras, não expressam a brutalidade de afirmar a disponibilidade dos corpos femininos.
Como exemplo do discurso e da tática de Bolsonaro, há a declaração dirigida à deputada federal Maria do Rosário (PT): “é muito feia, não faz meu gênero, jamais a estupraria”.
Essa fala se insere em um país que registrou, em 2017, um aumento do número de estupros, com média de 164 casos por dia, podendo totalizar, considerando a subnotificação, 500 mil casos por ano.
As mulheres, designadas por Bolsonaro como “fraquejadas” e desenhadas como objeto de sujeição, são, no entanto, a maioria da população, havendo 4,5 milhões de mulheres a mais do que homens, segundo o IBGE.
Ainda de acordo com o instituto, elas trabalham, em média, 7,5 horas semanais a mais do que os homens (somando as atividades remuneradas e não remuneradas) e, embora sejam mais escolarizadas, têm uma renda média nacional mais baixa: enquanto os homens ganham em torno de R$ 2.251, elas recebem R$ 1.762.
Um estudo do Fórum Econômico Mundial de 2016 aponta que seriam necessários 95 anos para o Brasil alcançar a equiparação salarial entre homens e mulheres.
Outro exemplo. Em uma rede de TV, o ex-capitão afirmou que mulheres deveriam ganhar menos, porque engravidam. Ao justificar a desigualdade salarial, Bolsonaro ataca tanto o trabalho feminino formalmente assalariado, quanto o trabalho doméstico não remunerado. Assim, o artifício de detração das mulheres passa, duplamente, pela expropriação de sua força de trabalho.
Se lembrarmos do argumento de Silvia Federici sobre o desenvolvimento do capitalismo, veremos que, como as mulheres foram as produtoras e reprodutoras da mercadoria mais essencial – a força de trabalho –, o barateamento do custo da produção do trabalho exige o uso de máxima violência e guerra contra as mulheres.
Nesse sentido, quando o candidato a vice-presidente de Bolsonaro, o general Mourão, declara que famílias comandadas por mães e avós são “fábricas de desajustados”, o tom intimidador e a desvalorização da mulher em si se intensificam.
Ao associar o trabalho doméstico não remunerado à criminalidade, ele insinua, mais uma vez, uma saída pela repressão e pela violência.
O discurso de Bolsonaro alimenta, dessa maneira, imaginários regressivos, como observou o professor de Harvard, Bruno Carvalho, e já produz efeitos públicos.
Se, com a deposição da presidenta Dilma Rousseff, o modelo público de mulher cultivado por Michel Temer parecia datar da boa esposa dos anos 1950, com a candidatura de Bolsonaro, a objetificação das mulheres alcançou um patamar mais drástico, que flerta com a desumanização fascista do outro, convertido em inimigo, ou que recua ainda mais no tempo, evocando uma medieval caça às bruxas.
Os efeitos públicos das falas de Bolsonaro conduzem seus apoiadores a uma nostalgia dos tempos em que mulheres tinham seu espaço restrito, em que não se discutia gênero nas escolas, em que não havia discussão sobre igualdade de direitos e oportunidades para cada cidadão.
Os efeitos públicos das falas de Bolsonaro conduzem seus apoiadores a uma nostalgia dos tempos em que mulheres tinham seu espaço restrito, em que não se discutia gênero nas escolas, em que não havia discussão sobre igualdade de direitos e oportunidades para cada cidadão.
Eles são nostálgicos da ditadura instaurada em 1964, quando os que resistiam ao sistema eram silenciados e torturados. Foi a fragilidade do nosso processo de redemocratização que criou as brechas para a possível eleição de um ex-capitão, que faz declarações públicas a favor do uso de armas de fogo, da tortura e da volta da ditadura.
Para dar um último exemplo, recentemente, apoiadores de Bolsonaro quebraram uma placa em homenagem à Marielle Franco, vereadora negra, lésbica, militante dos direitos humanos, moradora de favela, que foi barbaramente executada em março deste ano. Não é gratuita a violência à memória de Marielle.
O avesso do ódio e símbolo de outro mundo possível, ela vocalizava as mulheres negras, a base da pirâmide social brasileira, aquelas que mais sofrem com assédios, estupros, baixos salários e violência doméstica e que constituem a maior rejeição ao que Bolsonaro representa.
Por sua vez, o que Marielle representa é a nossa resistência à exploração e à marginalização. Inspirado nela e em outras mulheres revolucionárias, o jogo de imagens que depende de apequenar mulheres parece ter se alterado em 29 de setembro, quando manifestações suprapartidárias por elas convocadas em pelo menos 65 cidades do Brasil deram a dimensão da energia política feminina e do seu protagonismo na luta antifascista.
Mulheres e outros grupos vulneráveis, ao mesmo tempo em que são correntemente explorados e marginalizados pelo patriarcado e pelo capitalismo, constituem partes vitais do funcionamento da sociedade.
Conforme reivindica a segunda onda do feminismo, está na posição mesma de subalternidade a possibilidade de acumulação de um conhecimento próprio, capaz de transformar a exclusão em potencial revolucionário. Assim, o conhecimento se abre como forma de oposição aos diversos tipos de dominação.
A principal implicação de levar a sério essa perspectiva reside na ideia de que essa classe revolucionária – mulheres e outros grupos vulneráveis – tem as condições de modificar a sociedade. Isso ajuda a clarificar nosso papel vital na mudança de normas e tratamentos sociais injustos.
Cercas, como as produzidas pelo discurso de Bolsonaro, que precisam ser derrubadas, em atos cotidianos de resistência, para vislumbrar a possibilidade de um futuro melhor para o Brasil, em que mulheres e grupos vulneráveis sejam vistos com o tamanho e a força que realmente têm.
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