
Radio Mandu'arä, no este rural do Paraguai. Foto: Toby hill. All rights reserved.
Durante 14 anos Juan Aveiro emitiu desde a Radio Mandu’arã para um grupo de comunidades dum lugar remoto do este do Paraguai. Aveiro e a sua equipa de jornalistas voluntários trabalham desde um improvisado estúdio pintado de cor-de-rosa. Numa das paredes pode ler-se um mural que mostra os camponeses com os punhos em alto e atrás uma frase: “paz e justiça!”
Como muitas outas rádios comunitárias do Paraguai, o conteúdo de Mandu’arã refletia os altos e baixos na vida cotidiana dos camponeses locais.
Em novembro de 2015, oito polícias e seis funcionários levaram a cabo uma rusga no estúdio da Mandu’arã. “Levaram tudo”, afirma Aveiro.
Segundo Francisco Benitez da CODEHUPY (Coordenadora de Direitos Humanos do Paraguai), a experiência da radio Mandu’arã forma parte dum padrão de repressão que se repete um pouco por todo o país.
“O governo está a levar a cabo um processo repressivo cujo único objetivo é erradicar as vozes de protesto alternativas”, afirma.
O governo do Paraguai é liderado pelo Presidente Horácio Cartes, que chegou ao poder em 2013 como líder do Partido Colorado. Carlos Goncalvez, diretor do grupo de pressão mediático DemInfo, explica o motivo pelo qual as rádios comunitárias se encontram no ponto de mira.
“Trata-se da participação no processo democrático”, afirma. “As rádios comunitárias dão voz aos cidadãos rurais marginalizados. Para melhorar a sua situação, informa-os dos seus direitos, da política e dos movimentos populares ativos na região. ”
Goncalvez acredita que este último role foi o que motivou as rusgas.
“O governo quer silenciar as organizações que lutam pela população rural pobre. ”

Concerto comemorativo celebrado pelas vitimas do general Stroessner em Asunción. Toby Hill. All rights reserved.
A distribuição de terra mais desigual de toda a América Latina
Esta luta centrasse na propriedade da terra. De acordo com os censos de 2008, um 1.6% da população paraguaia controla 80% da terra cultivável. Ao mesmo tempo, umas 300.000 famílias camponesas não têm acesso à terra. A consequência direta desta situação consiste em que um terço da população rural vive em condições de pobreza extrema.
Esta desigualdade é a herança dos longos anos de ditadura que sofreu o país. Durante os 35 anos que esteve no poder, o general Stroessner torturou os seus oponentes em banheiras, lançou-os desde aviões, e envolveu-os em arame farpado antes de lançar os seus corpos ao Rio Paraguai.
Como parte das redes clientelistas através das quais mantinha o poder, Stroessner dividiu as terras entre as elites políticas e militares do país. 10 milhões de hectares (25% de toda a terra do Paraguai) foram oferecidas ou vendidas a preços irrisórios.
Ainda que a democracia tenha substituído a ditadura de Alfredo Stroessner em 1989, a expansão do comercio agrário internacional apagou as ulteriores tentativas de reclamar a terra.
Tal como no resto do sul americano, a grande culpada é a soja. As gigantes multinacionais produtoras de grão como a Cargill, ADM y Bunge arrasaram com a parte este do Paraguai. Na última década, tanto a terra cultivada como as exportações do produto duplicaram. Neste momento o Paraguai é o quarto maior exportador de soja do mundo e o seu maior mercado é a União Europeia.
Aproximadamente metade desta terra estava ocupada anteriormente por pequenos agricultores e famílias indígenas. À volta de 900.000 pessoas emigraram desde zonas rurais até a cidade.
Luís Cubilla, economista da associação de comerciante de soja CAPCO, argumenta que a soja “traz enormes fluxos de riqueza ao campo”. O êxodo de pequenos produtores, diz também, é parte duma “migração global do campo à cidade”.
Arantxa Guerena, autora dum estudo da OXFAM sobre a soja no Paraguai, oferece-nos uma análise alternativa: “as pessoas tratam de deixar para trás situações de extrema pobreza na cidade”, diz. “É um processo de expulsão. As pequenas comunidades rurais estão rodeadas de plantações de soja. Os produtos químicos destroem as suas colheitas e prejudicam a saúde dos residentes. ”
O cultivo de soja está altamente mecanizado; uma plantação normal só precisa dum trabalhador por cada 480 hectares. A indústria paga imposta mínimos uma vez que, pouco depois de chegar ao poder, Horácio Cartes vetou uma proposta que propunha taxar as exportações de soja num 10%.
Existe uma clara falta de apoio aos pequenos e médios agricultores por parte do Estado.
“Deixam-nos desamparados”, diz Guerena. “É uma decisão política guiada pelas pressões da indústria agraria que quer controlar as terras. ”
Esta pressão funciona através das mesmas relações que unem os proprietários com os poderes executivos e judiciais em toda a América Latina. Este tipo de relações está particularmente arraigado no Paraguai. Stroessner forjou uma estreita relação com o Partido Colorado do presidente Cartes; muitos dos seus membros beneficiaram-se da sua generosidade em relação aos terrenos públicos.

Cristino Benítez, residente de Arsenio Vázquez. Toby Hill. All rights reserved.
A resistência
Apesar das pressões para emigrar alguns paraguaios das zonas rurais estão determinados a ficar e a lutar para conseguir as suas próprias terras. Ocupar o vazio deixado pelo Estado é exatamente a tarefa à que se dedica o sindicato de trabalhadores agrícolas, a Federação Nacional de Camponeses (FNC). Este sindicato usa ações diretas para conseguir os seus objetivos.
Uma das comunidades que nasceram neste processo foi Arsênio Vásquez, um aldeamento situado no departamento de Caaguazu. Umas 80 famílias vivem numa série de pequenas aldeias dispersas em 100 hectares de terra vermelha e campos de cultivo verdes. Antes de 2004 tudo isto pertencia a um único proprietário.
Cristino Benitez, residente da comunidade, cultiva yuca, milho, amendoins, e quando o tempo assim o permite, batatas e algodão.
“Entrámos de noite e montámos as tendas”, diz, descrevendo como conseguiram as terras. “Três dias depois veio a polícia. Partiram os braços de alguns residentes, atacaram-nos com cavalos, dispararam balas de borracha e encheram o ar de gás lacrimogêneo. ”
Enquanto eles estavam ocupados a defender as terras, a FNC coordenou protestas e bloqueios um pouco por todo o Paraguai. Depois de três semanas de tensão, o governo rendeu-se. O proprietário dum solar vizinho dispôs-se a vende-lo e o Estado comprou-o para os novos habitantes.
Comovido pela brutalidade da experiência, Benitez retomou a paixão que tinha abandonado quando era adolescente. Compõe canções na língua indígena guarani, documentando a luta política, a brutalidade da policiai e as dificuldades da vida dos camponeses.
“Estou demasiado cansado para lutar”, disse, enquanto tomava mbeju ao pequeno-almoço, uma densa tarte feita de yuca e milho. “A minha luta está nas minhas canções”.
Um massacre misterioso
De acordo com secretário geral da FNC, Marcial Gomez, o aldeamento de Arsenio Vázquez é parte dos 270.000 hectares que o movimento camponês conseguiu recuperar desde 1989. Pagou-se um elevado preço: mais de 130 líderes camponeses foram assassinados e milhares de agricultores foram presos.
O confronto mais violento teve lugar em 2012 e teve como consequência a destituição dum presidente. Fernando Lugo tinha sido eleito em 2008, sendo líder da coligação de esquerdas Frente Guasu. Parecia um ponto de inflexão para a democracia paraguaia: o primeiro governo não Colorado em 61 anos de história.
O governo de Lugo estendeu os benefícios sociais e prometeu dedicar-se a programas de reforma agrária. Fomentaram as negociações da polícia com os ocupantes de terras em vez de recorrer à violência.
Entretanto, desencadeava-se uma disputa sobre uma extensão de terras na fronteira da região do Curuguaty. As terras tinham sido doadas ao exército Paraguaio em 1967 e foram classificadas para serem redistribuídas em 2004, mas a empresa Campo Morombí, cujo proprietário era o antigo presidente colorado Blas Riquelme, também reclamou a propriedade. Um interminável procedimento legal fez rugir os motores, com decisões foram dum lado a outro do sistema judicial paraguaio. Agricultores sem terrenos ocupavam rapidamente as terras e Morombí usava as autoridades para desaloja-los.
Este ritmo de ocupações e desalojamento terminou abruptamente no dia 15 de junho de 2012. 324 policias juntamente com uma unidade especial de operações, encurralaram os sessenta ocupantes. Os mesmos negaram-se a retirar-se. Chegou-se a um impasse, com a polícia ameaçando os camponeses com armas automáticas. Alguns camponeses apontaram também aos policias com as suas espingardas.
O que se seguiu é polémico. Mas uma vez que a poeira assentou, 11 camponeses e 6 policias estavam mortos.
A oposição a Lugo atuou imediatamente. Uma semana depois da matança, o Senado votou para impugna-lo. Os países vizinhos condenaram o processo e classificaram-no como um golpe constitucional, suspendendo o Paraguai do bloco comercial Mercosul.
No Palácio da Justiça de Asunción, 14 agricultores continuam hoje acusados pelos eventos daquele dia. Enfrentam-se a condenas de até 30 anos. Ninguém foi acusado pelas mortes dos ocupantes.
Habitantes do lugar e grupos de direitos humanos apontam as contradições que existem na versão oficial dos eventos. A acusação não ofereceu probas da conexão entre as armas que sustinham os agricultores e aquelas que mataram os polícias; de facto, opuseram-se às petições de autopsia por parte da defesa. Um especialista forense testemunhou que os primeiros disparos sobre os policias alcançaram-nos nas costas, enquanto que os mesmos estavam de frente para os ocupantes.
Esta contradição deixa um amplo espaço para intepretações alternativas. Muitos estão convencidos que se tratou dum complot para destituir Lugo.
“Estava tudo preparado”, afirma Santiago Goleame, que apresenta um programa matutino na Rádio Popular em Curuguaty. “Os mercenários que contratou Riquelme dispararam sobre a polícia para iniciar o tiroteio”.
Aponta ao ulterior assassinato de Vidal Vega, um líder camponês que ia ser testemunha no julgamento: “Vega conhecia o lugar, conhecia os mercenários de Riquelme e sabia o que estavam a fazer”.
O governo classifica estas explicações como teorias da conspiração. Para a elite paraguaia, Lugo brincou durante muito tempo com o fogo, fomentado a radicalização dos agricultores do pais. Tal como Aldo Zucolillo, proprietário do maior diário do Paraguai, que disse naquele então: que os agricultores estivessem armados com espingardas e disparassem sobre a polícia não aconteceu repentinamente”.
A Amnistia Internacional pôs em dúvida a imparcialidade do julgamento e exigiu uma investigação independente do massacre. Citam testemunhos de detenções arbitrárias, tortura e execuções extrajudiciais. Mas a única investigação realizada até à data foi dada por terminada logo depois da destituição de Lugo.
De regresso ao futuro
Seja o que for que aconteceu realmente em Curuguaty, teve como resultado um retorno ao passado. Num ano, os Colorados, o partido do general Stroessner, voltaram ao poder.
Um dos primeiros atos do novo governo foi a implementação dum estado permanente de emergência no norte do Paraguai. A lógica por detrás disto radica na eliminação duma guerrilha armada, o EPP (Exercito do Povo Paraguaio), que matou 25 pessoas na região nos últimos dois anos. As Forças de Tarefas Conjuntas (FTC) é uma unidade especial, criada especialmente para realizar este trabalho.
Mas a incapacidade para conter o grupo – que se estima conter unicamente 50 membros – levanta suspeitas sobre as verdadeiras prioridades do governo.
“Converteu-se num instrumento do Estado para reprimir qualquer processo de organização dos camponeses”, disse Benítez da CODEHUPY. “Usaram tortura, maus tratos e violência”. Aponta que o estado de emergência se aplica às três regiões – San Pedro, Concepción e Amambay – onde tem lugar as lutas mais violentas pelo direito à terra.
O Mecanismo Nacional para a Prevenção da Tortura do Paraguai expressou a sua preocupação sobre os abusos registados nas comunicações dos agricultores. Por outra parte, Pablo Cáceres, vicário geral da Concepción, condena nos seus sermões “os horríveis crimes cometidos contra agricultores inocentes”.
Para Marcial Gómez, da FNC, a violência é uma resposta que se podia prever contra o progresso que impulsou o seu movimento sob o regime de Lugo.
“Estão a espalhar o terror nas nossas comunidades”, diz. “Quando Lugo estava no poder, discutia-se no parlamento a necessidade duma reforma agrária e também se debatia mesma no âmbito político geral. Agora, Cartes quer matar esta discussão.”
Nas rádios que retransmitem para os aldeamentos dos camponeses paraguaios, esta discussão permanece tao importante como sempre. Entretanto, Cartes acaparou secções dos principais meios de comunicação paraguaios. Em 2015, o seu grupo empresarial devorou os jornais nacionais La Nación, Crónica e Popular; o serviço digital de notícias Hoy; e as estações de radio Monte Carlo FM; 970 FM e Laser Stream. O principal competidor de Cartes é Aldo Zuccollini, que rapidamente acusou Lugo pelo massacre de Curuguaty.
Por outra parte, a Radio Mandu’arã contínua fora de antena:
“Para os pobres que vivem por aqui, a nossa rádio proporcionava-lhes a única informação que tinham”, diz Aveiro, apoiando-se no mural fora do seu estúdio vazio. “Aos meios de comunicação comerciais não lhes interessam os pobres, nem os seus problemas ou lutas. E agora apagaram-nos”.
Uma versão mais curta deste artigo apareceu em inglês no The Guardian.
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