
Epidemia de notícias falsas: a América Latina está vivendo sob uma fakecracia
O uso de fake news nas campanhas eleitorais é uma das raízes da desinformação e dos graves problemas que afetam a região.

Qual é o impacto das notícias falsas, ou fake news, na qualidade e estabilidade de uma democracia? Como as fake news podem minar a confiança no sistema político? Como os atores políticos estão usando as fake news para espalhar o discurso do ódio e dividir nossa sociedade? Por que essa realidade é tão importante para as democracias latino-americanas? Respondemos essas perguntas no livro Fakecracia, recentemente publicado por um grupo de pesquisadores de comunicação política na região.
A "fakecracia" pode ser entendida como um sistema político no qual o uso de fake news é a ferramenta mais relevante de comunicação política. Para os atores políticos, este é um recurso que serve para atacar a oposição política, mas também como uma ferramenta que desvaloriza o trabalho dos jornalistas e espalha o discurso do ódio.
O objetivo do livro é entender o uso de fake news na comunicação política na Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, El Salvador, México, Peru, Uruguai e Venezuela. Por sua vez, procuramos entender a influência do uso de notícias falsas durante a campanha presidencial americana em 2016 e nas campanhas eleitorais na América Latina entre 2017 e 2019.
Através das fake news, os atores políticos escondem suas reais intenções: uma agenda política que procura atacar certos grupos específicos da população
Todas as campanhas políticas que estudamos na região têm um fator em comum: o uso de fake news. Exemplos incluem as campanhas de Nayib Bukele em El Salvador, Bolsonaro no Brasil e López Obrador no México.
Dessa forma, a fakeracia começa a minar as frágeis democracias da região. O uso de fake news torna-se uma ferramenta poderosa para encobrir os problemas reais que assolam os latino-americanos, tais como pobreza, desigualdade e insegurança.
Entretanto, o impacto negativo das fake news foi além disso. Através de seu uso, os atores políticos escondem suas reais intenções: uma agenda política que procura atacar certos segmentos específicos da população.
Por trás dessa agenda política estão as violações dos direitos humanos que ocorrem através das fake news. Os discursos de ódio, disseminados pelas fake news durante a campanha eleitoral de Bolsonaro, visaram a comunidade LGBTIQ e os defensores dos direitos humanos. A foto que ilustra este artigo é um exemplo de imagens usadas para prejudicar outros candidatos, mas com a real intenção de posicionar uma agenda de discriminação em relação à comunidade LGBTIQ e difundir o discurso do ódio.
Mas por que estas violações dos direitos humanos têm um potencial de crescimento rápido? Porque as fake news espalhadas pelas redes sociais, e através do uso de bots, se espalham com velocidade incomum.
A publicação Fakecracia mostra diferentes exemplos que ilustram como os atores políticos na América Latina usam fake news através do WhatsApp, Twitter, Facebook e Instagram. Ilustram também como os atores políticos usam as fake news para transmitir uma agenda que procura atacar defensores dos direitos humanos, jornalistas e organizações não governamentais.
O uso de fake news nas campanhas eleitorais é uma das raízes da desinformação e dos graves problemas que afetam a América Latina. As fake news são poderosas porque fazem com que os eleitores não saibam realmente em quem estão votando. Se a campanha política é guiada por fake news, nós, como sociedade, perdemos a oportunidade de comparar a oferta política baseada em um debate político programático (de ideias e não de clientelismo).
O uso da jurisprudência ligada à difamação é a única porta que pode ser encontrada para soluções legais quando notícias falsas afetam os cidadãos
O uso de fake news tem a intenção política de desinformar a respeito do contrato feito pelos atores políticos e cidadãos, que não se baseia mais na solução de problemas reais, mas na realização de conversas em redes sociais com base em "discursos" e não em fatos ou respostas a problemas. "Vou odiar cada vez mais essas pessoas (pessoas LGBTIQ, jornalistas, defensores dos direitos humanos)", poderia ser uma frase comum nas eleições latino-americanas. A promessa não é de melhorar uma política pública, a promessa é algo intangível com base no ataque a uma população específica.
O discurso do ódio baseado em fake news precisa de um ator político que funcione como um "salvador", um outsider que, seguindo um discurso político, possa defender "nós" dos "outros". Com isso, cresce a desinformação e a ignorância, levando tal candidatos à presidência onde têm o poder de aprofundar as divisões sociais na América Latina. O "salvador" é o candidato que promove fake news e desinformação contra alvos específicos.
Entretanto, apesar do uso de redes sociais, fake news e desinformação são usadas como preâmbulo para atacar os opositores políticos do governo no poder, um processo que vai além do digital, incluindo ataques físicos, perseguições legais ou promoção de discriminação social contra grupos específicos. Essas ações podem acabar em mortes por ódio, como vemos em diferentes países da América Latina e nos Estados Unidos.
Outro aspecto relevante que revisamos no livro é que a divulgação de fake news tem sido usada para substituir ou mesmo atacar jornalistas. Há muitos casos de "jornalistas falsos", que criam notícias falsas e atuam como pontos focais para os bots (usuários falsos nas redes sociais). Uma vez compartilhadas nas redes sociais, um grande número de usuários se encarrega de lotar as redes com tal conteúdo, com base em informações falsas e promovendo o discurso do ódio. Essa indústria tem um grande aliado na região: a ausência de regras claras sobre o financiamento de eleições. Os chamados "bot-centers" ou "net-centers" são comuns na região, do México à Argentina.
Este cenário é um desafio para a América Latina. Atualmente há uma ausência de regulamentação a nível local e internacional sobre fake news. O uso da jurisprudência ligada à difamação é a única porta para soluções legais quando notícias falsas afetam os cidadãos. A desinformação e a propagação do discurso do ódio podem ser consideradas violações dos direitos humanos, como a iniciativa "Verificado" das Nações Unidas, declarações da UNESCO, da Corte Interamericana de Direitos Humanos e de outras organizações atestam.
As iniciativas de verificação de fatos funcionam como um mecanismo de defesa contra a desinformação e a promoção do discurso do ódio. O trabalho conjunto entre jornalistas, organizações não governamentais e a mídia pode ser uma poderosa aliança para combater a promoção do discurso do ódio. Existem bons exemplos na América Latina, mas ainda são insuficientes diante do poder que as falsas notícias tiveram nas eleições dos últimos dois anos. Mais do que nunca, a desinformação demonstra seu poder de aprofundar as desigualdades sociais e os muros que nos dividem.
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