
A inteligência social pode salvar a América Latina de seus governos em tempos de Covid-19?
A inovação democrática digital como resposta à Covid-19 revela a necessidade de os Estados confiarem na sociedade civil para solucionar problemas novos e complexos.

A pandemia da Covid-19 desencadeou uma série de problemas imprevistos. A maioria dos governos em todo o mundo não estava preparada, vendo-se instados a elaborar respostas em um período de tempo muito curto e sob condições altamente incertas. Em países com baixa capacidade estatal e alta desigualdade social, os desafios têm sido ainda maiores. As respostas governamentais se viram limitadas pela falta de recursos, infraestrutura e conhecimento, além do fardo de ter que lidar imediatamente com lacunas sociais de longa data que rapidamente mostraram que nem todos são iguais diante do vírus.
Na América Latina, onde a capacidade estatal é caracteristicamente baixa e a desigualdade alta, o coronavírus encontrou condições ideais para a proliferação. Em alguns países, a emergência sanitária também foi agravada pela crise econômica, pela agitação social e pela instabilidade política. Cinco dos dez paíseds mais atingidos pela pandemia até agora estão localizados na América Latina, e cerca de um terço de todas as mortes globais por causa do vírus ocorreram na região.
Nenhuma resposta poderia ter sido suficientemente rápida para resolver problemas de séculos, como exclusão política e desigualdade social, ou suficientemente eficaz para contornar a deficiência dos mecanismos institucionais de accountability. Mas se a liderança política real não tivesse estado ausente e os governos tivessem tomado as medidas adequadas – o que definitivamente não foi o caso em vários países – muito poderia ter sido feito para evitar que a pandemia se tornasse um pandemônio.
Limitações do Estado e inteligência social
Em tais cenários, parece relevante reconhecer os limites do Estado para lidar com desafios complexos e imprevisíveis e, portanto, a necessidade de recorrer à sociedade civil. A capacidade estatal não pode ser construída da noite para o dia, mas a inteligência social é um recurso ilimitado e disponível permanentemente. Nos últimos anos, a tecnologia digital multiplicou o que há muito se chama inteligência social (Dewey) e agora é mais frequentemente conhecida como inteligência coletiva (Lévy), a sabedoria das multidões (Surowiecki), ou razão democrática (Landemore).
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A pandemia de Covid-19 apresenta uma oportunidade para testar o potencial da inteligência social como combustível para processos de colaboração criativa que podem ajudar os governos a se reinventarem
Em conjunto, estes conceitos apontam para a mais poderosa ferramenta disponível para os governos que enfrentam problemas difíceis e desafios sem precedentes: o provimento e compartilhamento de conhecimento, informações, habilidades, recursos e dados dos cidadãos com o fim de resolver problemas sociais e políticos.
A pandemia de Covid-19 apresenta uma oportunidade para testar o potencial da inteligência social como combustível para processos de colaboração criativa que podem ajudar os governos a se reinventarem e se prepararem para os desafios que permanecerão muito depois de controlado o vírus. Por colaboração criativa entendo uma série de formas de comunicação, ação e conexão entre os próprios cidadãos, entre os cidadãos e as organizações da sociedade civil (OSC), e entre estes dois últimos e seus governos, tudo com o objetivo comum de abordar problemas que afetam a todos e aos quais o Estado, por várias razões, não pode (satisfatoriamente) responder sozinho.
Embora vários países latino-americanos tenham sido pegos pela crise da Covid-19 com governos incapazes ou não dispostos a contê-la ou a reduzir seus danos, a sociedade civil avançou um número substancial de inovações democráticas digitais nos últimos meses. Estas compreendem instituições, processos e mecanismos que contam com a participação digital de cidadãs e cidadãos como um meio para resolver problemas sociais e políticos – e, mais recentemente, também problemas de natureza humanitária.
Crowdsourcing
O potencial das inovações democráticas para resolver problemas consiste em identificar necessidades e demandas que requerem uma decisão ou ação política, além de permitir que a cidadania participe da formulação, implementação e avaliação de tais decisões e ações. As tecnologias digitais permitem que as inovações democráticas funcionem como catalisadores da inteligência social, transformando cidadãs e cidadãos em solucionadores de problemas e possibilitando que contribuam com conhecimento, informação, dados e habilidades para solucionar desafios que afetam a todos e que, de fato, deveriam ser tratados pelos governos.
O que geralmente é chamado de crowdsourcing compreende a mais bem sucedida combinação de inteligência social e tecnologia digital conhecida até o momento. Ao buscar conhecimento proveniente de cidadãs e cidadãos, os governos podem reunir grandes quantidades de informações de fontes que, de outra forma, provavelmente não lograriam acessar. O crowdsourcing facilita principalmente a coleta de ideias, conhecimentos e dados. Ele permite que um número ilimitado de cidadãs e cidadãos participe e contribua em todas as etapas do ciclo político. Os mecanismos digitais de provimento de conhecimento são ferramentas eficazes para identificar problemas, desenhar suas possíveis soluções e coletar insumos necessários para a implementação bem sucedida destas últimas. O crowdsourcing permite, assim, o uso da inteligência social para resolver problemas políticos e sociais e melhorar as políticas e ações governamentais, especialmente quando o Estado está sobrecarregado, como acontece em situações de emergência e tempos de incerteza.
Inovações democráticas digitais
Entre 16 de março e 1º de julho deste ano, pelo menos 400 inovações democráticas digitais foram criadas em 18 países da América Latina com o objetivo específico de lidar com a crise da Covid-19 e mitigar seu impacto, de acordo com dados recentes do projeto LATINNO. Estas inovações consistem essencialmente em mecanismos e processos digitais que facultam que a cidadania contribua para o enfrentamento dos problemas sociais, políticos e humanitários relacionados à pandemia. Cidadãs e cidadãos contribuem para três níveis de respostas, que envolvem informação, conexão ou ação. Cerca de um quarto dessas inovações democráticas digitais dependem claramente da combinação de inteligência social e crowdsourcing digital.
A maioria dessas inovações digitais foi desenvolvida por organizações da sociedade civil. Cerca de 75% delas não têm qualquer envolvimento governamental, algo que chama atenção em uma região na qual a participação cidadã foi frequentemente institucionalizada pelo Estado. A sociedade civil tomou à frente em diversos países, particularmente onde as respostas governamentais estavam ausentes (Brasil e Nicarágua), lentas (México), insuficientes devido à falta de recursos econômicos (Argentina) ou de infraestrutura (Peru), ou simplesmente ineficientes (Chile).
Quando o Estado age em conjunto com a sociedade civil e recorre a ela para resolver problemas concretos, a democracia é a principal vencedora
Com base nesses dados de 18 países latino-americanos, pode-se observar que as inovações democráticas digitais abordam os desafios colocados pelo surto da Covid-19 de cinco modos: primeiro, gerando informações verificadas e dados confiáveis; segundo, geolocalizando problemas, necessidades e demandas; terceiro, mobilizando recursos, habilidades e conhecimentos para abordar esses problemas, necessidades e demandas; quarto, conectando demanda (indivíduos e organizações necessitadas) e oferta (indivíduos e organizações dispostos a fornecer o que for necessário); e quinto e finalmente, implementando e monitorando ações e políticas públicas. Em alguns países, há um sexto uso que atravessa os outros cinco: assistência a grupos vulneráveis como idosos, mulheres, crianças e jovens, povos indígenas e afrodescendentes.
Os cinco principais usos das inovações democráticas digitais destinadas a lidar com problemas resultantes da pandemia se tornam mais claros à medida que se observa como a inteligência social, com base em ferramentas digitais, opera em quatro dimensões, ou momentos, cada qual centrado nas seguintes atividades:
Identificação de problemas:
- Identificação e geolocalização das necessidades, carências, deficiências e demandas
- Identificação de limitações na prestação de serviços públicos e no desempenho institucional
- Identificação de grupos, comunidades e bairros com necessidades maiores ou especiais
Geração de conhecimento:
- Geração, coleta e agregação de dados provenientes de cidadãs e cidadãos
- Crowdsourcing de conhecimento, informações, ideias, recursos e habilidades
- Verificação de fatos e dados e divulgação de informações verificadas
Desenho de soluções:
- Projeto colaborativo de soluções alternativas da sociedade civil
- Integração das contribuições da cidadania e das OSC às respostas do governo
Implementação das respostas:
- Implementação colaborativa das respostas
- Envolvimento direto da cidadania na prestação de serviços ou na geração de suprimentos
Embora observadas empiricamente durante a crise da Covid-19 na América Latina, estas quatro dimensões, ou momentos, de inteligência social são expansíveis a qualquer situação na qual cidadãos e OSCs intervêm para compensar deficiências do Estado, lidando com desafios que não podem ser resolvidos de forma adequada e satisfatória apenas por seus governos. Quando aplicadas à crise sanitária, as atividades listadas acima vem sendo traduzidas em objetivos bastante específicos que visam abordar diferentes problemas relacionados à propagação do vírus na região, como resumidos e exemplificados na tabela abaixo.

Em sua origem no pragmatismo filosófico, o conceito de inteligência está fortemente relacionado com os de ação e criatividade. A inteligência social é composta de ações criativas da cidadania e de suas organizações. Quando o Estado age em conjunto com a sociedade civil e recorre a ela para resolver problemas concretos, a democracia é a principal vencedora. Em uma democracia, exercer o poder é "agir em concerto" (Arendt). A crise da Covid-19 tem mostrado que alguns desafios sociais e políticos só podem ser enfrentados se um agir em concerto com os outros, e que a democracia só se recuperará do vírus se sua cura envolver tanto os cidadãos, a sociedade civil e os governos.
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