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Jornalismo em tempos de crise

Rebecca Abecassis defende que em tempos de crise como os que vivemos, os jornalistas têm que ser mais claros no seu trabalho e ir mais além da noticia. Entrevista. English Español

Manuel Nunes Ramires Serrano Rebecca Abecassis
19 Outubro 2016
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Uma bandeira da União Europeia em frente do Big Ben. Daniel Leal-Olivas PA Wire/PA Images. Todos os direitos reservados.

Manuel Serrano: muitas pessoas acusam a União de falta de transparência e de não prestar contas aos cidadãos europeus. Acredita que existe um deficit democrático na União Europeia?

Rebecca Abecassis: eu não diria que haja um deficit democrático, o que eu penso é que existe má comunicação. E nós, jornalistas, temos muita culpa, porque não explicamos bem como funcionam as instituições europeias. Se formos a ver com muito detalhe, as instituições europeias até funcionam bastante bem, e há muita transparência. Claro que há episódios de menos transparência, como recentemente foi o caso da ex-comissária Neelie Kroes, entre outros, mas em geral as instituições funcionam bastante bem. Agora, é verdade que há muita burocracia e que, muitas vezes, as coisas não funcionam como deveriam, tornando-se a máquina tão pesada que o resultado final às vezes é pouco claro, ficando o cidadão europeu com a impressão que as coisas não estão a funcionar.

Esta é a minha análise global. Há, portanto, um grande trabalho a fazer do ponto de vista da comunicação das instituições europeias, não só pelos jornalistas, mas também pelos próprios funcionários e pelos políticos europeus, que por vezes o fazem de forma muito pouco clara.

MS: recentemente assistimos a como, no debate sobre a permanência ou não do Reino Unido na União Europeia, os jornais britânicos, entre eles o Daily Mail, contribuíram para a polarização do eleitorado, desvirtuando não só jornalismo e a verdade, como também o referendo como mecanismo de participação. Concorda com esta análise?

RA: exatamente. E isto leva-nos a uma reflexão sobre o papel do jornalista hoje. Tomamos posição ou não tomamos? Este é um ponto extremamente relevante. Eu penso que no caso do Brexit os próprios jornais, os próprios jornalistas, e muitos políticos conservadores e de extrema direita, não acreditavam que isto pudesse acontecer. Mas a realidade é que aconteceu, pudendo as consequências ser muito maiores e muito piores que aquelas que eles algum dia poderiam ter imaginado.  

Isto leva-nos a uma reflexão sobre o papel do jornalista hoje. Tomamos posição ou não tomamos?

MS: que opinião tem deste tipo de políticos, como David Cameron ou Boris Johnson, que aparentemente não se preocupam com o futuro das suas sociedades e com as consequências das suas decisões políticas?

RA: só lhe posso dizer que isto leva ao descrédito dos políticos europeus. Tanto o David Cameron como o Boris Johnson, devido a várias atitudes que tiveram, não mostram que haja uma consistência ou uma verdadeira convicção política. Penso que o caso do Boris Johnson é muito mais grave que o caso do David Cameron, que deu um tiro no pé. Ele pelo menos assumiu as consequências e demitiu-se.

MS: mas as causas para o descrédito da União Europeia não ficam por aqui. Por exemplo, em relação à crise dos refugiados, não há uma política comum, ou, se a mesma existe, não é implementada. Aparentemente, a crise da União não se fica pela incapacidade política, incluindo também uma manifesta incapacidade para tomar decisões ou aplicar as medidas já aprovadas. Estamos perante uma crise multidimensional da União Europeia?

RA: eu acho que a própria Comissão Europeia não sabe bem como resolver a situação. Que margem de manobra tem a Comissão para impor sanções à Polónia ou à Hungria, ou para obrigar estes países a receber uma quota determinada de refugiados? No final do dia, eles sentem que não podem fazer isso porque haveria uma enorme crise europeia, e aí assim, poderíamos estar a caminhar para a desintegração. Agora, é óbvio que é extremamente injusto que os suecos aceitem receber 160.000 refugiados em seis meses, que os alemães se mostrem disponíveis para receber 1 milhão e que os húngaros rejeitem receber 1300. Claro que isto é uma disparidade enorme e não faz sentido absolutamente nenhum. Como diz a Federica Mogherini, se todos partilharmos os refugiados, nem sequer os notamos, uma vez que eles se integrariam perfeitamente nas nossas sociedades. Agora, com certeza que há uma crise das instituições europeias porque não conseguem resolver um problema que é fundamental.

É extremamente injusto que os suecos aceitem receber 160.000 refugiados em seis meses, que os alemães se mostrem disponíveis para receber 1 milhão e que os húngaros rejeitem receber 1300.

MS: mas por outra parte, também nos enfrentamos a outro enorme desafio: o populismo. Desde Orban na Hungria, a Marine Le Pen em França, passando por Geert Wilders na Holanda, o populismo é um problema a nível europeu. Este fenómeno aproveita-se de outras crises, como a dos refugiados ou o terrorismo, para confundir os cidadãos europeus, para manipular as intenções de voto e para criar uma distinção entre “nós” e “eles”. Acha que os meios de comunicação têm um dever ético de, em função das suas capacidades, obrigar estes políticos a prestar contas à sociedade?

RA: claro. A nossa função é exatamente apresentar os factos para mostrar que estes políticos – ou qualquer político – estão a dizer uma grande mentira. Agora, hoje em dia temos uma responsabilidade acrescida, devido à crise dos refugiados e ao acréscimo do terrorismo. Isto veio mexer com os aspetos sociais da Europa, tendo por um lado as pessoas medo e por outro um profundo desconhecimento de quem são estes refugiados e se os devemos ou não acolher. Portanto, ambos temas têm que ser aprofundados e devidamente explicados. Em Portugal, por exemplo, vivem poucos muçulmanos, em comparação com outros países da União Europeia como a França ou a Bélgica, pelo que seria importantíssimo que todos os dias falássemos da história dum muçulmano numa reportagem; que explicássemos que um muçulmano é igual a um católico ou a um judeu.

Esta é uma nova faceta da profissão de jornalista. As crises que vivemos obrigam-nos a estar atentos a coisas que normalmente não estaríamos. Temos que explicar melhor as coisas, temos que ser mais claros no nosso trabalho e não ir só atrás da notícia. Temos que ir muito mais longe.

Esta é uma nova faceta da profissão de jornalista. As crises que vivemos obrigam-nos a estar atentos a coisas que normalmente não estaríamos.

MS: uma última pergunta. Em relação ao processo de seleção do Secretário Geral das Nações Unidas, qual é a sua opinião sobre a eleição de António Guterres? Parece-lhe o candidato ideal para um lugar que foi descrito como o “trabalho mais difícil do mundo”?

RA: eu acho que é o homem certo, no sítio certo, na altura certa. A experiência que ele teve como Alto-Comissário para os Refugiados, lidando dia a dia com esta realidade, certamente preparou-o para lidar com um dos assuntos mais importantes que há para resolver a nível internacional nos próximos anos. Por outro lado, a título pessoal, acho que é uma honra e um privilégio para Portugal ter um homem como António Guterres como Secretário Geral das Nações Unidas. Espero, também, que a sua eleição desperte em Portugal um maior interesse pelo trabalho das Nações Unidas. 

Esta entrevista foi realizada no dia 7 de outubro, em Lisboa, durante o evento “Que Democracia?” organizado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos

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