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Meio século depois, a justiça chega para o povo Krenak

Tribunal condenou o governo federal, o de Minas Gerais e a Funai por violações de direitos humanos durante a ditadura militar

Shanna Hanbury
20 Outubro 2021, 12.01
Indígena Krenak durante manifestação em Brasilia, 24 de abril de 2019
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Adriano Machado/REUTERS/Alamy Stock Photos

Meio século depois que o ancião Jacó Krenak e dezenas de outros indígenas foram presos e levados à força a campos de concentração administrados pela ditadura militar brasileira, um tribunal federal ordenou que o governo peça desculpas e indenize o povo Krenak.

Em 13 de setembro, a juíza Anna Cristina Rocha Gonçalves condenou o Governo Federal, o governo do estado de Minas Gerais e a Fundação Nacional do Índio (Funai) pelos crimes cometidos contra o povo Krenak no sudeste de Minas Gerais durante a ditadura militar (1964 a 1985). Ela ordenou que o Governo Federal organize uma cerimônia de desculpas públicas com cobertura nacional.

“A justiça, embora lenta, está sendo feita”, disse o líder indígena Geovani Krenak, neto de Jacó Krenak, à Mongabay. “O espírito de nossos guerreiros assassinados, como meu avô, [agradece] essa decisão.”

Grupo de pessoas com cartaz dizendo: 'Povo Krenak de MG: somos tronco de uma árvore, somos fortes pra valer!'
Indígenas Krenak durante manifestação em Brasilia, 24 de abril de 2019
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Acervo pessoal de Geovani Krenak

Falar na língua Krenak, beber álcool, manter relações sexuais, ficar ocioso (“vadiagem”), desrespeitar o toque de recolher, deixar o local sem permissão prévia e resistir à ocupação de suas terras por fazendeiros eram atitudes proibidas pelos militares da época, de acordo com relatórios e depoimentos de testemunhas. Confinamento arbitrário, tortura e espancamento eram punições comuns. Muitos Krenaks morreram nos campos, embora os números exatos ainda sejam desconhecidos.

A decisão, tomada em 13 de setembro, também ordenou que a Funai conclua o processo de demarcação da Terra Indígena Sete Salões, além de uma série de medidas para reabilitar a língua e a cultura Krenak.

Pelo menos 8.350 indígenas foram mortos durante a ditadura militar, e muitos mais perderam suas terras ou foram torturados

A Advocacia Geral da União (AGU), que representa o governo federal e a Funai no caso, confirmou que recebeu a decisão, mas recusou-se a comentar. “Qualquer eventual manifestação ocorrerá no âmbito do caso”, escreveu o gabinete da AGU à Mongabay em um e-mail. A Advocacia Geral do Estado de Minas Gerais não respondeu aos pedidos de comentário da reportagem.

Pelo menos 8.350 indígenas foram mortos durante a ditadura militar, e muitos mais perderam suas terras ou foram torturados, de acordo com o relatório da Comissão Nacional da Verdade de 2014.

Minas Gerais foi palco de algumas das medidas mais cruéis. Em 1969, o militar Manoel dos Santos Pinheiro criou os campos de concentração indígenas conhecidos como Reformatório Krenak e Fazenda Guarani, que abrigaram um total de 121 indivíduos de 17 etnias diferentes nos municípios de Resplendor e Carmésia, de acordo com dados de uma pesquisa acadêmica compilados pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), ligado à Igreja Católica.

Grupo posando para foto
Famílias Krenak na Fazenda Guarani no começo dos anos 70 depois de serem retiradas à força de suas terras
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Ligia Simonian, 1987/Conselho Indigenista Missionário (Cimi)

Os indígenas considerados rebeldes pelo regime militar eram enviados sem julgamento a esses dois campos de concentração, de acordo com provas constantes de um processo apresentado pelo Ministério Público Federal em 2015. “Os indígenas não eram submetidos a julgamento. Eles não tinham direito de praticar sua cultura e rituais, nem mesmo de falar sua própria língua”, diz o promotor federal Edmundo Antônio Dias, um dos coautores do processo.

O regime militar também criou a Guarda Rural Indígena, um grupo de indígenas treinados por oficiais militares para punir e torturar outros indígenas, o que causou uma ruptura nos modos de auto-organização e resistência entre as comunidades indígenas, dizem os promotores. Durante a cerimônia de graduação da primeira turma da Guarda Rural Indígena, um homem preso pelas mãos e pés num cabo de madeira – método de tortura chamado pau-de-arara – foi apresentado aos oficiais, que foram capturados em filme pelo antropólogo Jesco Von Puttmaker em 1970.

Num testemunho que fez parte do processo, Douglas Krenak, outro dos netos de Jacó Krenak, contou as violações que seu avô sofreu nas mãos do regime: “Ele chegou em casa e dois militares o aguardavam. Pediram que ele ajoelhasse e assoprasse, dizendo que estava embriagado. Ele então teve as mãos amarradas com uma corda presa à sela de um cavalo e foi arrastado pela aldeia até a prisão, onde foi detido.”

Mais tarde, numa tentativa de transferir as terras Krenak a fazendeiros locais, famílias inteiras foram retiradas à força de seu território e levadas para uma fazenda de propriedade da ditadura militar, onde foram obrigadas a trabalhar longos períodos. “Meu avô morreu no exílio, ele morreu na Fazenda Guarani”, diz Geovani Krenak. “Meu povo não tinha nem o direito de namorar, porque os militares não queriam que tivéssemos filhos. Nossa população caiu para apenas 50 pessoas na época. É um capítulo triste de nossa história.”

Homem carregado em pau-de-arara
Indígena é exibido no instrumento de tortura conhecido como pau-de-arara em Belo Horizonte em 1970, durante a cerimônia de graduação da primeira turma da Guarda Rural Indígena
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Jesco von Puttkamer
Indígenas ao redor de um não-indígena
A ditadura militar brasileira removeu o povo Krenak de suas terras e o levou para um campo de concentração chamado Fazenda Guarani, onde indígenas de diversas etnias eram submetidos a trabalho forçado, tortura e outros tipos de violência física e psicológica
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Márcio Ferreira, 1989 / Instituto Socioambiental (ISA)

Lutas atuais

Além dos danos ligados à ditadura, o povo Krenak também enfrentou outros desafios. Em 2015, suas terras foram afetadas pelo pior desastre ambiental da história do Brasil, quando uma barragem de rejeitos de mineração no município de Mariana rompeu, liberando milhões de toneladas de lama tóxica. O desastre deixou o Rio Doce, que passa pela reserva Krenak, tomado por produtos químicos tóxicos, o que afetou os costumes e a subsistência dos indígenas. “Queremos nossa terra de volta e o retorno de nossos rituais sagrados. Os espíritos de nossos guerreiros ainda não estão em paz com tudo o que aconteceu”, diz Geovani Krenak.

O presidente Jair Bolsonaro, apoiador declarado da ditadura militar com um histórico de comentários discriminatórios contra os povos indígenas, prometeu não reconhecer mais nenhum território indígena, o que gerou preocupações de que seu governo não cumpra a decisão recente do tribunal. “A Funai vai contestar essa decisão”, disse Geovani Krenak. “O próprio órgão do governo que deveria defender os direitos indígenas é nosso inimigo.”

Em meio a todas as dificuldades, ativistas celebraram a decisão do tribunal que puniu as violações contra os povos indígenas cometidas pelo regime militar. Outro processo que acusa criminalmente o capitão Pinheiro de genocídio e crimes contra a humanidade aguarda julgamento.

Um carro carregado pela lama atravessado em uma casa
Além dos danos ligados à época da ditadura, as terras do povo Krenak foram impactadas pelo pior desastre ambiental da história do Brasil, causado por milhões de toneladas de lama tóxica resultantes do colapso da barragem de rejeitos da mineração no município de Mariana
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Romerito Pontes/CC BY 2.0

“O atual governo vem sinalizando uma volta ao paradigma daquele período, com um total desrespeito aos direitos indígenas”, disse Antônio Eduardo Cerqueira, secretário-executivo do Cimi, por telefone à Mongabay. “Essa decisão funciona como uma barreira. Ela afirma que isso não poderá acontecer novamente no Brasil.”

Geovani Krenak também expressou razões para otimismo, não só para os povos indígenas, mas também para os quilombolas, decendentes de escravizados fugidos, e outros grupos historicamente perseguidos no país.

“A decisão nos dá esperança, podemos dizer a nossos filhos que o que aconteceu agora está reverberando na sociedade”, diz ele. “Sabemos o que é nosso por direito e o que sofremos, mas será uma mensagem para o resto da sociedade de que não se deve desistir de lutar.”


Este artigo foi publicado originalmente no Mongabay. Leia o original aqui.

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