
O que a justiça significa para os indígenas sobreviventes de genocídio no Canadá?
A descoberta de novos túmulos de crianças indígenas levadas pelo governo para assimilação forçada choca o mundo – finalmente

Imagine se seu filho fosse arrancado de seus braços pela polícia que estava aplicando as leis de seus opressores; se o diabo disfarçado de assimilação e colonização forçadas, de instituições administradas pela igreja, roubasse seus filhos – e sua carne e sangue fossem espancados, violados sexualmente, envergonhados e despojados de sua identidade; ou se seu filho – ou tia, tio, irmão ou irmã – morresse de desnutrição em condições de vida insalubres ou fosse assassinado por seus agressores. A sensação é de que seu coração batendo estivesse sendo arrancado de seu peito.
Os espíritos das crianças indígenas perdidas clamam por justiça. Finalmente, o mundo parece estar prestando atenção.
A recente descoberta de um cemitério em Saskatchewan, no Canadá, contendo milhares de ossos – os restos mortais de 751 pessoas, incluindo diversas crianças que foram forçadas a viver em casas dos horrores conhecidas como 'escolas residenciais indígenas' – chocou o mundo. Isso aconteceu poucas semanas depois de uma descoberta semelhante, na Colúmbia Britânica, onde os restos mortais de 215 crianças foram encontrados em túmulos não identificados em outra antiga escola residencial. Logo, há poucas semanas, foi feita uma terceira descoberta de 182 túmulos não identificados em outra escola na Colúmbia Britânica.
Com muita frequência, o mundo vê o Canadá como um líder em paz e igualdade, bem como um lugar de estonteante beleza natural. Este ano, essa fachada caiu para sempre.
‘Escolas residenciais indígenas' eram internatos obrigatórios com a missão oficial de ‘assimilar’ crianças indígenas, financiadas pelo governo canadense e em grande parte administradas pela Igreja Católica. Elas operaram por mais de 100 anos, com o último fechando em 1997. Por décadas, os terrores desses lugares não foram discutidos e os sobreviventes tiveram que sufocar suas lágrimas e viver o resto de seus dias em silêncio. Todos os dias, a sociedade lhes dizia para ‘superarem’ os fatos.
Violência colonial no passado e no presente
Essas crianças foram sistemática e violentamente retiradas de suas famílias e encarceradas nessas instituições. Sobreviventes testemunharam diante da Comissão da Verdade e Reconciliação que presenciaram o assassinato de seus amigos. Algumas crianças morreram de desnutrição, outras de doenças como tuberculose, comum em lugares com higiene inadequada. 'Escolas' não deveriam ter cemitérios acoplados.
Nossas famílias continuam a sofrer as consequências do trauma intergeracional dos abusos atrozes das escolas residenciais
Não espero ver verdadeira justiça pelos assassinatos de nossos filhos durante minha vida. Mas a cura é possível. De fato, os povos indígenas no Canadá já estão começando a se curar. Nossas gerações mais jovens estão a todo vapor, ressuscitando nossas culturas e se fortalecendo a cada dia. Estamos desenvolvendo nosso poder como povos indígenas e recuperando o que nos foi roubado.
Eu e muitos outros indígenas estamos perdendo a paciência com pessoas que argumentam que nosso contexto não é de genocídio. Isso é o que vivemos: o roubo de terras e recursos e a opressão dos povos originários.
Essa realidade não acabou com o fechamento da última escola residencial em 1997. A violência colonial continua viva hoje, na forma do que o próprio primeiro-ministro Justin Trudeau reconheceu como um atual genocídio de mulheres e meninas indígenas desaparecidas e assassinadas – que sofrem violência 12 vezes mais que seus pares não indígenas.
Numerosas comunidades das Primeiras Nações são marcadas por condições de vida inseguras e distribuição de água insalubre. As taxas de suicídio atingiram proporções epidêmicas. Homens e mulheres indígenas estão grosseiramente sobre-representados no sistema carcerário e são muito mais propensos a sofrer brutalidade policial.
Mais da metade das crianças em lares temporários são indígenas. Isso significa, ironicamente, que mais crianças indígenas estão sendo criadas pelo Estado agora do que no auge do sistema de escolas residenciais. Além disso, o governo federal atualmente se recusa a cumprir as decisões da Suprema Corte de indenizar crianças indígenas que estiveram em lares temporários.
Nossas famílias continuam a sofrer as consequências do trauma intergeracional dos abusos atrozes das escolas residenciais. Como pode-se esperar que as pessoas funcionem normalmente depois de serem humilhadas, envergonhadas e abusadas – fisicamente, sexualmente, verbalmente e espiritualmente?
Esta era maligna, junto com o colonialismo em geral, quase nos exterminou completamente. Os sobreviventes foram jogados no mundo branco, destruídos e contaminados. Para muitos, o resultado dessas experiências inclui vício, disfunção, abuso, violência e outras formas de devastação.
O Canadá enriqueceu com a exploração de terras indígenas e continua a desonrar suas numerosas obrigações para com as nações indígenas, estabelecidas através de tratados após a confederação de 1867, quando as diferentes colônias se uniram e criaram o Canadá como é conhecido hoje.
Governos e indústrias assumem e arrasam territórios indígenas não cedidos para ganho econômico, removendo à força seus defensores e destruindo o pouco que resta das terras tradicionais – que são sagradas e essenciais para a sobrevivência das nações indígenas.
O Canadá desrespeita ativa e sistematicamente nossos direitos humanos. Como podemos alcançar a justiça, ou a cura adequada, quando há uma guerra em curso contra nosso povo?
Como seria feita a justiça?
A descoberta de corpos nessas diabólicas escolas residenciais tem sido difícil para os sobreviventes, suas famílias e os povos indígenas. Já sabíamos que algumas crianças haviam sido descartadas em túmulos não identificados. Alguns sobreviventes dessas 'escolas' contaram que foram forçados a cavar as covas de seus colegas e que testemunharam assassinato diante da Comissão da Verdade e Reconciliação do Canadá, cujo relatório final foi divulgado em 2015.
A complacência do governo canadense em reparar as violações dos direitos humanos indígenas é tão vasta quanto os territórios que controla
Na época, os comissários da comissão solicitaram ao governo federal financiamento (menos de 2 milhões de dólares canadenses) para investigar essas denúncias e localizar os corpos, mas foram recusados. Alguns povos indígenas resolveram fazer justiça com as próprias mãos, usando seus recursos já limitados para procurar parentes desaparecidos.
Agora que os corpos estão, literalmente, emergindo, o Canadá está chocado? Que grande farsa. Muitos canadenses há muito tempo negam as verdades da história de seu país e a situação dos povos indígenas. Ignorância e racismo abundam neste ambiente.
A complacência do governo canadense em reparar as violações dos direitos humanos indígenas é tão vasta quanto os territórios que controla. O governo deve divulgar mais informações sobre escolas residenciais (incluindo a identidade dos abusadores), investigar abusos e assassinatos e responsabilizar os perpetradores.
Justiça verdadeira também demandaria que o Canadá fosse responsabilizado em nível internacional por seus crimes contra a humanidade. E que o Papa Francisco, atual líder da Igreja Católica, que dirigia 70% das escolas residenciais indígenas, se desculpasse pelo papel de sua instituição nesta história horrível.
No próprio Canadá, a justiça exigiria a defesa inequívoca dos direitos indígenas; a revitalização das línguas indígenas (que as crianças eram proibidas de falar); apoio para a cura de décadas de abuso sistemático; e um novo respeito pela soberania e valor intrínseco das nações indígenas.
Também envolveria a devolução de terras indígenas roubadas de nossas comunidades; compensação pelas riquezas que foram extraídas às custas dos povos indígenas por gerações; e oportunidades para que nossas gerações atuais e futuras prosperem – espiritual, econômica e fisicamente.
Trudeau disse que “Nenhum relacionamento é mais importante para o Canadá do que o relacionamento com os povos indígenas”. Mas a justiça requer ação – não palavras ensaiadas. Seria necessário abalar as próprias bases desta nação para desvendar as verdades do perverso passado e do conturbado presente do Canadá. É necessário desenraizar ideologias e sistemas racistas e reconstruir, juntos, todas as áreas da sociedade.
*A autora é uma jornalista indígena canadense
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