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Desigualdade na América Latina: mudar o modelo ou mitigar suas consequências?

Javier Ciurlizza, diretor do escritório andino da Fundação Ford, reflete sobre o e-book “Condenados à Desigualdade? Da onda rosa à guinada à direita na América Latina”, editado conjuntamente pelo Democracia Abierta e pelo Instituto para a América Latina da Universidade Livre de Berlim. Español

Javier Ciurlizza
24 Julho 2019, 12.01

O crescimento econômico é um elemento essencial e necessário para reduzir a desigualdade, mas está longe de ser suficiente. Na experiência da Fundação Ford em seu trabalho na América Latina nos últimos 55 anos, ficou evidente que os tempos de expansão econômica produziram uma ampliação da classe média, uma redução nos índices de pobreza ou necessidades básicas insatisfeitas e, no geral, uma expansão do consumo interno e do mercado.

Assim, o crescimento do investimento público em infraestrutura e serviços que ocorre com variações em cada país entre 1930 e 1960 ocasiona uma modificação da estrutura produtiva e promove o surgimento de classes médias mais consolidadas.

Isso ocorre, por exemplo, com a expansão da cobertura educacional em países como Argentina e Uruguai, mas também com a consolidação de centros de produção industrial em regiões como o sul do Brasil e o Vale do Aburrá, na Colômbia, que criam centros industriais, mas a nível micro.

Essa transformação geralmente acontece em cenários de democracias restritas, mas com uma crescente mobilização social, expressada na multiplicação de sindicatos e organizações camponesas, nas pressões pela reforma agrária e industrial e, finalmente, pelo surgimento de forças de esquerda, alguns dos quais evoluíram para formas de ação armada.

A discussão, então e agora, gira em torno de como o crescimento econômico, sendo um elemento necessário para a redução da desigualdade, não era suficiente nem sustentável.

E essa discussão nos traz de volta a uma velha conversa entre sistemas, estruturas e suas manifestações. É, até certo ponto, uma discussão sobre se o que precisa ser feito é mudar o sistema da raiz, ou aceitá-lo e trabalhar sobre seus efeitos, moderando seu impacto. Gramsci ficaria feliz de voltar a essa conversa.

A chamada onda rosa na América Latina se deu como uma reação social à crueldade neoliberal em seus significados puritanos

Não há dúvida de que a desigualdade está ligada à estruturas, e não é necessário ser marxista para acreditar nisso. O trabalho da Fundação Ford no mundo nos anos 50 e 60 se deu com a progressiva convicção de que a desigualdade não é apenas uma consequência indesejada do capitalismo, mas sim uma realidade que coexiste com ela em harmonia básica. O relatório do Gaither, encomendado a um grupo de especialistas pela Fundação Ford em 1947 para definir o papel que a Fundação deveria desempenhar, afirmava claramente que a justiça social se constrói a partir da mudança nas estruturas.

Sessenta anos depois, a Fundação continua a enfrentar as mesmas questões. O debate ainda é relevante e os ensaios do livro o colocam bem.

No entanto, devemos evitar perguntas simples para não obter respostas simples. A chamada onda rosa na América Latina se deu como uma reação social à crueldade neoliberal em seus significados mais puritanos, que viam o mercado como o único recurso que poderia arbitrar diferenças em sociedades que, instintivamente, transformariam economias tomadas de ineficiências (que foram cruelmente reais em muitos países também).

Para isso, inventou-se a história do estado mínimo, em contextos como o colombiano, o peruano ou o guatemalteco, onde precisamente é necessário mais estado e não menos. Foi um desastre.

Estamos diante do pêndulo histórico latino-americano? Nós já tentamos de tudo e parece que nada funciona. A opção que vemos no Brasil representa talvez o capítulo mais sombrio: como nem o neoliberalismo, nem o socialismo, nem o estatismo nos salvam dos problemas, então voltemos a fórmulas testadas abertamente no século XIX e depois.

É a família, tradição, valores, tal como devem ser entendidos, que vêm em nosso socorro. É a ideologia de gênero “abominável” que perverteu nossos filhos, são os ateus liberais que se esqueceram de Deus, são pessoas LGBTIQ, são ONGs, são marxistas, são pensadores livres. O problema da Colômbia é o acordo de paz. E essa visão se espalhou como um incêndio em todos os nossos países, e parece que estamos fazendo vista grossa.

A onda rosa parece destinada a desaparecer, pelo menos em seus atuais significados, mas o momento de mudança, de renovação, de luta pela inclusão e igualdade ainda está presente e será expresso por si mesmo ou por aqueles que conseguem convencer de que representam mudança.

A Fundação Ford acredita que apenas sociedades mais integradas, mais inclusivas e menos racistas podem estar em posição de lutar contra essas causas profundas da desigualdade. Isso é falar de sistemas e estruturas, mas também de ser um alerta sobre a polarização política entre esquerda e direita que tende a empobrecer o debate e perpetuar os problemas e produzir novos.

Voltemos a discutir a raiz, mas tentemos ampliar o debate para abordar questões que estão além da análise política e econômica das contradições

As percepções de amplos setores da nossa população são de que sua opinião importa pouco ou nada e que sua chance de sucesso ou fracasso depende mais do berço do que do esforço. Apesar de todas as tentativas fracassadas de provar o contrário (mais educação, mais inclusão, mais direitos), ainda estamos na região onde as oportunidades são moldadas pelos territórios onde se nasce.

Para um jovem que procura desesperadamente escapar da pobreza nas províncias altas de Cuzco, para uma mãe chefe de família que mal consegue alimentar seus filhos na Bolívia, para um imigrante venezuelano que é rejeitado e torna-se apátrida, para uma pessoa deslocada do Chocó colombiano que tem que fugir da presença de grupos armados, não é possível simplesmente instruí-los a participar de uma democracia que lhes dá pouco e exigir que acreditem em um estado que permite que a corrupção manche as poucas conquistas redistributivas.

E sim. Voltemos a discutir a raiz, mas tentemos ampliar o debate para abordar questões que estão além da análise política e econômica das contradições.

Falemos de racismo, territórios esquecidos, modelos de desenvolvimento que parecem não precisar do outro, evasão fiscal de quem tem mais. Nesse debate, conte com a Fundação Ford.

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