
A maldição da soja: Ucrânia ilustra o que aconteceu com a Amazônia
A União Europeia está tentando deslocar a produção de soja do Brasil para o Leste Europeu. Quem se beneficiará?

"As sementes geneticamente modificadas devem ter sido contrabandeadas para o país, pois não é permitido o cultivo de soja geneticamente modificada na Ucrânia". Volodymyr Onatskyi dirige uma pequena empresa que vende esterco e sementes a agricultores no leste da Ucrânia. Ele está cada vez mais preocupado com o ritmo com que os grandes conglomerados estão comprando terras férteis no país, esgotando os solos e poluindo as fontes de água doce por seu uso maciço de produtos químicos.
Os habitantes locais também acreditam que as grandes fazendas estão plantando ilegalmente soja geneticamente modificada (GM). "As grandes empresas as plantam de qualquer forma e, no processo, contaminam os campos dos agricultores convencionais." É o que as pessoas por aqui suspeitam, pelo menos. Porque descobrir o que realmente está acontecendo é muitas vezes muito difícil em um país como a Ucrânia", disse Onatskyi.
Como parte de seu Acordo Verde, a União Europeia está tentando deslocar a produção de soja do Brasil para o leste europeu. Mas com o mercado controlado por oligarcas e corporações multinacionais, há dúvidas se tal mudança beneficiará realmente as comunidades locais ou o meio ambiente.
Solo fértil, terra barata, localização estratégica
A Ucrânia era historicamente conhecida como o celeiro do Império Russo e mais tarde da União Soviética. No final do século 19, empresas como a gigante americana Cargill e a trading company parisiense Louis Dreyfus estavam fazendo fortuna no país. Elas construíram silos, compraram empresas de moagem e construíram navios para transportar grãos ucranianos baratos para cidades industriais em crescimento na Grã-Bretanha e na França.
O relatório conjunto da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) e do Banco Europeu de Reconstrução e Desenvolvimento (BERD) previu que os solos férteis do coração eurasiático – que se estendem desde a Romênia e Ucrânia, passando pela Rússia, até o Cazaquistão – alimentariam o mundo durante décadas.
A agricultura na Ucrânia acontece em uma escala gigantesca. A maioria das empresas agrícolas são conglomerados totalmente integrados de propriedade de oligarcas bilionárias, operando suas próprias redes de trens, frotas de caminhões muitas vezes não identificados e instalações de armazenamento em todo o país.
Dez empresas controlam 71% do mercado agrícola na Ucrânia, como mostram as estatísticas da Associação Ucraniana de Grãos (UGA). Além da oligarquia ucraniana, empresas multinacionais como a Archer Daniels Midland (ADM), Bunge, Cargill, Louis Dreyfus e a empresa estatal chinesa COFCO, são todas participantes ativas.
Nos últimos anos, gigantes agroindustriais internacionais, incluindo a Cargill e a Bunge, investiram milhões de dólares no aumento da capacidade de produção do país. Solos extremamente férteis, terras baratas e uma localização estratégica entre os mercados de exportação na Europa, China e Oriente Médio também colocaram a Ucrânia no centro das atenções dos investidores em terras.
A Ucrânia tornou-se ainda mais interessante para os investidores agrícolas depois que o Acordo de Associação UE-Ucrânia foi assinado em 2014, e especialmente depois que a Comissão Europeia lançou seu Plano de Proteína da UE em 2018. O plano anunciou o objetivo da comissão de deslocar a produção de soja da América do Sul para o território europeu.
Plano de Proteína e Negócio Verde
Há múltiplas razões para o plano da comissão. A soja era anteriormente utilizada principalmente para produzir óleos vegetais, mas seu valor de mercado disparou quando o que restava após a produção de óleo começou a ser utilizado como fonte de proteína barata na alimentação animal nos anos 60. Desde então, a quantidade de soja cultivada em todo o mundo se multiplicou por seis. A maior parte vem das Américas e quase a metade do Brasil e da Argentina. A produção de soja no Brasil quadruplicou em 20 anos.
Uma mudança rápida apenas deslocará os problemas associados ao cultivo de soja na América do Sul para países do Leste Europeu
Mas desde a ascensão ao poder do presidente Jair Bolsonaro e da extrema-direita brasileira em 2019, faixas cada vez maiores de floresta amazônica ecologicamente vulneráveis são queimadas para dar lugar a plantações de soja, estradas são construídas através das florestas ancestrais dos povos indígenas e ativistas são cada vez mais alvo de madeireiros e agricultores.
O plano de proteínas da UE foi rapidamente seguido pelo lançamento do Acordo Verde Europeu em 2019. Este plano político para que a neutralidade de carbono chegue à Europa até 2050 tornou, entre outras coisas, a transferência da produção de proteína do Brasil, que não é ambientalmente sustentável, para a Europa uma prioridade ainda maior. Para este fim, a Comissão Europeia está desenvolvendo propostas legislativas e subsídios direcionados através da Política Agrícola Comum (PAC) da UE, para estimular os agricultores europeus a começar a plantar leguminosas. Para cultivar quantidades suficientes de soja para alimentar a indústria pecuária europeia, os solos férteis do leste do continente são cruciais.
“Friends of the Earth” adverte que uma mudança muito rápida apenas deslocará os problemas associados ao cultivo de soja na América do Sul para países do Leste Europeu – onde os padrões de sustentabilidade e as estruturas legislativas continuam fracos e a corrupção é abundante. Há preocupações crescentes sobre os grandes agricultores que grilam a terra, desmatam as florestas e poluem o solo e a água devido ao uso excessivo de produtos químicos.
A Ucrânia já é a superpotência da soja da Europa, produzindo 3,9 milhões de toneladas por ano – um pouco atrás das potências globais do Brasil e dos Estados Unidos. Uma série de acordos obscuros de terras permitindo que os conglomerados ucranianos cresçam a tamanhos sem precedentes fortaleceram os apelos dos ativistas para que a UE permaneça cautelosa em relação ao aumento da dependência da soja ucraniana ou romena.
Contaminação por transgênicos
As exportações de soja transgênica ilegal da Ucrânia para a UE também são uma preocupação. Sob as atuais leis de biossegurança na Ucrânia não é permitido o cultivo de culturas geneticamente modificadas não registradas. Entretanto, como não há uma estrutura regulatória para aprovação e registro da tecnologia GM, não é permitido o cultivo de culturas geneticamente modificadas.
Entretanto, pesquisas de campo realizadas pela ONG romena Agent Green e pelo Instituto Ambiental do governo austríaco mostram que até metade de toda a soja exportada da Ucrânia poderia ser cultivada ilegalmente com transgênicos. O Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA) o coloca ainda mais alto: estima, com base em "rumores da indústria", que até 65% de todas as exportações de soja ucraniana poderiam ser ilegais. Amostras de pesquisa encomendadas pelo supermercado alemão Bio Landmarkt, certificado ecologicamente, também testaram positivo para contaminação por transgênicos.
Para o comerciante de sementes ucraniano Volodymyr Onatskyi, isto não é nenhuma surpresa: "Suspeitamos que a primeira soja geneticamente modificada foi contrabandeada para a Ucrânia por um grande produtor avícola para cultivar forragem mais barata. Os pequenos agricultores que vendem seus produtos nos mercados locais estão agora cercados por plantações que cultivam soja transgênica, administradas por conglomerados. Os agricultores estão começando a se perguntar como poderão alguma vez transmitir solos férteis a seus filhos".
Atualmente, não há sanções formais em vigor para agricultores apanhados cultivando soja transgênica não registrada na Ucrânia. Enquanto alguns comerciantes optam por contratar agências privadas para verificar se suas cargas estão contaminadas por transgênicos, as verificações alfandegárias nos portos ucranianos não incluem a inspeção de transgênicos. Um novo projeto de lei para regulamentar as atividades de transgênicos, apresentado ao parlamento ucraniano em agosto de 2021, poderia melhorar as chances de soja livre de transgênicos.
Uma cadeia de soja limpa
Os planos da UE para expandir a produção de soja para o leste oferecem oportunidades econômicas, segundo Volodymyr Pugachov, da empresa austríaca Donau Soja, que quer estimular o cultivo de soja através dos países entre o Rio Danúbio e o Mar Negro.
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"Todos na Ucrânia sabem que a soja transgênica ilegal está sendo cultivada em grande escala", disse Pugachov. "Isto deve nos mostrar que o cultivo de soja na Ucrânia não é isento de riscos. Tentamos ensinar aos agricultores como cultivar soja de forma sustentável, sem utilizar variedades geneticamente modificadas, cuidando bem do solo e sem produtos químicos desnecessários. Afinal, a Europa é um grande mercado e a maioria dos consumidores lá prefere alimentos não geneticamente modificados".
Trabalhando com seis grandes produtores ucranianos, Donau Soja espera estabelecer uma cadeia de soja limpa usando um novo sistema de certificação. Um agricultor certificado Donau Soja não deve cortar árvores ou usar pesticidas, deve pagar aos trabalhadores agrícolas um salário suficiente e não está autorizado a plantar culturas geneticamente modificadas.
'Bonança agrícola?'
Os maiores produtores de soja da Ucrânia negam ter qualquer coisa a ver com a exportação ilegal de transgênicos. A Bayer-Monsanto, que é um gigante químico e desenvolvedor de transgênicos, considera a Ucrânia como um quarto de todo o seu mercado europeu – mas um porta-voz nega qualquer conhecimento sobre sementes geneticamente modificadas sendo usadas no país e diz que o conglomerado não tem "patentes ativas sobre soja geneticamente modificada na Ucrânia".
As principais empresas, entretanto, também esperam uma mudança na legislação quando se trata do cultivo de soja transgênica na Ucrânia. John Shmorhun, um ex-piloto de caça da Marinha dos EUA, foi até 2020 CEO da multinacional AgroGeneration e agora é membro do conselho. A AgroGeneration tem estado ocupada comprando terras na Ucrânia desde 2009 – em parte para plantar soja – e é financiada pela empresa de private equity americana SigmaBleyzer.
Shmorhun aponta para um grande mapa que fica atrás dele: "Neste momento, operamos cerca de 60 mil hectares. Há muitas histórias selvagens sobre a falta de lei na agricultura ucraniana. Mas, do nosso ponto de vista, é uma pena que as culturas geneticamente modificadas não sejam permitidas na Ucrânia. Se o governo ucraniano conseguisse criar um ambiente de investimento mais amigável aos negócios estrangeiros, este país poderia esperar uma verdadeira bonança agrícola".
Resta saber se as comunidades agrícolas na Ucrânia se beneficiariam de tal bonança. O ativista romeno e agricultor Attila Szocs, do grupo de campanha popular Eco Ruralis, tem suas dúvidas. Mesmo que a soja seja certificada como não-geneticamente modificada, disse Szocs, "ela ainda não muda este universo industrializado de carne barata, grandes varejistas, comerciantes internacionais e monoculturas insustentáveis". Agricultores na Ucrânia rural ou na Romênia não se beneficiam". Em vez disso, as economias locais são obliteradas e as pessoas se mudam para o Ocidente para trabalhar em empregos mal remunerados, processando os alimentos que depois são exportados de volta para a Romênia, onde são vendidos em cadeias de supermercados de propriedade dos alemães".
Embora a regulamentação e a certificação possam ser passos na direção certa, para Szocs existem problemas mais arraigados: "O sistema ainda se baseia no preconceito econômico perverso de que o Leste Europeu pode ser usada para produzir commodities baratas para mega fazendas na Alemanha ou na Holanda". Para muitos, um verdadeiro "acordo verde" exigirá a transformação desse sistema.
*Tradução por Lourenço Melo
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