
Lisboa, Portugal. Domínio Público.
Apagar o passado desestabiliza a memória e fractura as comunidades. Se quisermos viver juntos na diversidade, devemos abordar o futuro da cidade desde uma perspectiva económica, cultural e social. A questão-chave consiste em como combinar Património e Criatividade. O que podemos esperar do futuro e o que podemos fazer a seu respeito? Charles Landry dá-nos algumas das respostas.
Manuel Serrano: no seu livro, As Origens e Futuros da Cidade Criativa, o senhor diz que a cidade enfrenta uma crise crescente que não pode ser resolvida utilizando a mesma abordagem de sempre. Pode explicar a que tipo de crise se está a referir?
Charles Landry: há muitas pressões sobre uma cidade. No topo da lista estão as dramáticas transformações económicas — por exemplo, há 30 anos, quando as empresas fecharam as suas fábricas na Grã-Bretanha e as transferiram para a Europa de Leste –, a crescente população urbana e o crescente movimento de pessoas à volta do mundo. Estas mudanças têm múltiplos efeitos sobre as cidades. O sistema de governo das cidades muitas vezes não consegue compreender a totalidade dos problemas interligados, muito menos entender como abordá-los - porque isto não é possível, a não ser que seja feito de forma holística.
Outra crise crescente está relacionada com o tipo de capitalismo que temos neste momento: o capitalismo neoliberal. Existe actualmente uma enorme quantidade de capital à deriva no mundo, à procura de lugares onde pousar, e é por isso que algumas pessoas são capazes de comprar 50 ou 100 edifícios numa determinada cidade, enquanto outras não se podem dar ao luxo de alugar um apartamento minúsculo. Desde uma perspectiva individual e local, o efeito é este: um enorme fosso entre a os ricos da cidade e os pobres da cidade, o que pode levar a uma agitação considerável.
O sistema de governo das cidades muitas vezes não consegue compreender a totalidade dos problemas interligados, muito menos entender como abordá-los.
Estes fenómenos não podem ser tratados recorrendo à mesma abordagem de sempre. Na minha opinião temos que reunir as diferentes partes, e temos que estabelecer uma base ética para as suas acções – o que é difícil, tendo em conta os múltiplos interesses das partes envolvidas. Acredito que a resposta é a criatividade – que neste contexto deve ser entendida como a capacidade de ser corajoso: em ser capaz de pensar em soluções de forma imaginativa e procurar alternativas originais. A Criatividade é a coragem para resolver problemas.
MS: o senhor diz no seu livro, que ao combinar Património e Criatividade, é possível que sejamos capazes de enfrentar a crise que vivemos…
CL: demorei 30 anos para redigir esta frase: a Criatividade é um recurso renovável, o Património não. Naturalmente, o Património pode ser reinterpretado – mas o património físico, quando desaparece, desaparece. A Criatividade pode ajudar-nos a encontrar várias soluções para os problemas e pode gerar oportunidades. A Criatividade emerge da criação das condições adequadas para que pessoas de todos os sectores da sociedade possam pensar, planear e agir com imaginação.
Historicamente, a criatividade sempre foi legitimada dentro duma esfera artística e duma esfera cultural mais ampla. Mas, naturalmente, tem outras manifestações: inovadores sociais, burocratas criativos, empresários criativos, advogados criativos ... A criatividade cultural é, contudo, muito importante porque, à medida que a nova economia emerge, muitos dos atributos que as pessoas que trabalham nos campos culturais têm são precisamente aqueles que outros sectores precisam mais. Trabalhamos, hoje em dia, numa lógica de portefólio: temos vários empregos e passamos o nosso tempo realizando diferentes actividades. Esta é basicamente a forma como o sector artístico funciona. A nova economia é imersiva e experiencial, e exige os atributos daquelas pessoas que contam algum tipo de formação artística.
A Criatividade é um recurso renovável, o Património não. Naturalmente, o Património pode ser reinterpretado – mas o património físico, quando desaparece, desaparece.
Mas a transformação urbana é um exercício de equilíbrio, no qual são criados dilemas que têm que ser resolvidos. Uma dinâmica mais harmoniosa exigiria um conjunto de valores e princípios orientadores, uma ética social, além de clareza, incentivos e ... o Património. Como diz Jane Jacobs – que escreveu sobre A Vida e a Morte das Cidades Americanas – "novas ideias precisam de edifícios antigos". Valorizar o património ajuda a criar uma sensação de ancoragem, identidade e pertença.
Analisemos a cultura actual das startups: na Holanda, por exemplo, duas mil empresas estabeleceram a sua sede em vinte e três edifícios antigos. Por que escolheram trabalhar em prédios antigos? Porque lá podem sentir a história, que estão realmente a moldar a cidade, a contribuir para a sua evolução. E por que estão as empresas tradicionais a tentar criar esse ambiente de trabalho? Não tem nada a ver com nostalgia, mas sim com o futuro - o nosso passado é o nosso futuro. Tem tudo a ver com a complexidade: uma sociedade vibrante emerge da complexidade, das diferenças. A segmentação converteu-se na norma após a Revolução Industrial, e foi muito mais além das actividades económicas, eliminando as diferenças. O que estamos a tentar fazer agora é recuperá-las.

Lisboa, Portugal. Domínio Público.
MS: o senhor diz que “libertar a criatividade dos cidadãos, das organizações e da cidade é um processo de capacitação, uma nova forma de capital, de moeda". Pode dar-nos alguns exemplos?
CL: bem, uma vez que estou a viver actualmente em Berlim - uma cidade pioneira na reutilização de edifícios antigos - posso dar-lhe um exemplo particularmente bom. O Tempelhof foi um aeroporto famoso pela sua história de ligação ao Terceiro Reich e pela sua conotação com a Guerra Fria, que se tornou um espaço público verde em 2010. O vasto espaço foi entregue aos cidadãos de Berlim - famílias, jardineiros urbanos, artistas- que o usam extensivamente. Em 2015, os urbanistas da cidade propuseram construir neste vasto espaço - em 25% do campo, aproximadamente 730 acres - habitações a preços acessíveis, uma grande biblioteca pública e uma área comercial. Os berlinenses votaram num referendo sobre o assunto: setecentos mil cidadãos votaram contra, quatrocentos mil votaram a favor. Os berlinenses voltaram a demonstrar o quanto se preocupam pela sua cidade – e como o futuro da mesma depende deles.
Quando as pessoas sentem que são co-criadoras do seu ambiente e que são co-responsáveis pelo mesmo, tende-se a alcançar um nível mais alto de sustentabilidade. O pensamento a curto prazo pode desaconselhar iniciativas participativas, mas a longo prazo, as mesmas acabam por ser mais sustentáveis. Tomemos como exemplo iniciativas como o Gorilla Gardening: a jardinagem cívica de terrenos abandonados ou áreas que não foram devidamente cuidadas. Basicamente, o que acontece é o seguinte: as pessoas não gostam do que vêem em frente da sua porta ou na sua comunidade e tentam melhorá-la através da jardinagem. E o resultado final é uma cidade mais bonita, mas sustentável. Os cidadãos assumem o controlo. Este é somente um exemplo de quão importante a criatividade pode ser.
A Criatividade pode ajudar-nos a encontrar várias soluções para os problemas e pode gerar oportunidades.
MS: que papel deve desempenhar o município?
CL: há uma batalha que está a ter lugar, um pouco por todo o mundo, entre o nacional e o local. Os governos têm a autoridade de assinar tratados internacionais e promulgar leis, mas são as cidades que têm mais legitimidade. Autoridade e legitimidade são coisas diferentes. É nas cidades que estão os problemas e onde as crises podem ser resolvidas.
Houve uma tentativa de elaborar uma visão de como uma cidade pode ser, durante a Conferência das Nações Unidas sobre a Habitação e Desenvolvimento Urbano Sustentável em Quito, Equador. A maioria dos participantes concordou que a cidade é onde os principais problemas se manifestam, e, portanto, onde os mesmos devem ser resolvidos. A Declaração de Quito sobre uma nova agenda urbana transfere o poder para as cidades, tornando-as nos motores das soluções, mais do que os próprios Estados-Nação.

Alfama, Lisboa. Domínio Público.
MS: o senhor participará em Junho numa conferência em Lisboa que abordará o futuro da cidade. Qual é o objectivo da mesma?
CL: o seminário, que terá lugar em Lisboa em Junho, pretende ser um evento transformador para o público. Trata-se de uma iniciativa intersectorial para ajudar a criar uma visão para o futuro de Lisboa que seja inspiradora, vibrante e vigorosa. As pessoas hoje em dia querem fazer-se ouvir – querem ter uma palavra a dizer sobre o que deve ser uma prioridade ou não para a sua cidade. É por isso que, quando as cidades se repensam, todos os actores da cidade devem estar envolvidos: urbanistas, entidades públicas, promotores, empresas, instituições culturais e activistas. O “The Lisbon Seminar” pretende ser um catalisador para isso mesmo e estabelecer os pilares para uma conversa mais complexa sobre o futuro de Lisboa.
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