
La serie openMovements invita a politólogos líderes en sus campos de investigación para compartir sus resultados y sus perspectivas sobre luchas sociales contemporáneas.

Um dos temas mais discutidos das eleições no Brasil tem sido a produção e a disseminação massiva de notícias falsas. Podemos dizer que é a contribuição brasileira para o fenômeno internacional da manipulação de informação com direcionamento para nichos de público identificados com determinadas preferências, como o que se viu o escândalo da Cambridge Analytica, com destaque para as eleições nos Estados Unidos e a campanha pela saída do Reino Unido da União Europeia.
Uma contribuição mambembe e piorada. É mais do que identificar que as pessoas que moram em uma região seca sofrem com falta de chuva e mandar a essas mesmas pessoas informações que mostram que um determinado candidato pretende construir um dique no único rio que abastece o lugar. Na versão brasileira, esse candidato estaria envolvido com tribos que, por magia negra, vão promover rituais para levar as nuvens de chuva para outro lugar.
Nessa linha, durante a campanha eleitoral, vimos fotos de mamadeiras com um bico em formato de pênis, que teriam sido supostamente distribuídas em creches durante o governo do PT; fotografias manipuladas que colocavam cartazes com frases de apoio à pedofilia nas mãos de políticos de esquerda; muitas imagens de Haddad e Manuela vestindo camisetas com mensagens anti-Cristo; outras tantas imagens de Manuela cheia de tatuagens, segurando uma garrafa de cerveja e portando a faixa presidencial, e por aí vai.
Essa prática configura um primeiro problema que é conhecido como notícias falsas, ou fake-news. Só na última semana, o Tribunal Superior Eleitoral mandou retirar do ar 35 delas em referência a Fernando Haddad e outras 33 em referência a Manuela d’Avila, candidatos a presidente e vice-presidente pelo PT. Movimentos de direita brasileira vem sendo identificados com produção e disseminação de notícias falsas.
Ainda neste ano, o Facebook retirou do ar várias páginas com esse perfil, incluindo uma vinculada ao MBL – Movimento Brasil Livre, que esteve diretamente implicado com as mobilizações pela destituição da presidente Dilma Rousseff, e outra mantida por Olavo de Carvalho, ativista reconhecido por sua postura de ataque a políticos de esquerda e a movimentos sociais. As notícias falsas constituem um problema grave e, por isso mesmo, são passíveis de penalização judicial no Brasil, associadas aos crimes de calúnia, injúria e difamação.
O problema da pós-verdade
Mas é preciso retomar a discussão sobre outro problema, que envolve as notícias falsas, mas é maior do que elas. Trata-se do problema da pós-verdade e de como ele pode ferir a cultura democrática. A pós-verdade também é um termo de incorporação recente e se refere à construção de uma narrativa mais ampla, que dá sentido e legitimidade a leituras de mundo específicas, geralmente combatendo conhecimentos consolidados.
Um exemplo recente e que está produzindo impactos bastante perigosos é a narrativa de que as vacinas são perigosas, contra todo o consolidado científico e a imunização contra doenças graves que tinha sido alcançada em muitos países. É mais do que notícia falsa, porque, partindo de uma série delas, se questiona a cultura da vacinação em particular e o conhecimento científico em geral. Limitar o debate à questão das notícias falsas tem, pelo menos, três implicações importantes.
A primeira é que concentrar-se nas notícias falsas em detrimento da pós-verdade orienta a solução para a valorização das mídias tradicionais em oposição e deslegitimação de mídias alternativas. O remédio contra notícia falsa é a boa, neutra e imparcial cobertura feita por jornalistas vinculados formalmente a meios de comunicação registrados e reconhecidos como tais. Nem que alguém acreditasse no conto da neutralidade e da imparcialidade jornalística seria possível contar com ela em um país em que a concentração da propriedade da mídia é tão alta como no Brasil.
Em 2017, o projeto Media Ownership Monitor avaliou a pluralidade da esfera midiática no país e revelou que cinco grupos ou seus proprietários controlam mais da metade da mídia em nível nacional. De acordo com outro projeto de avaliação de mídia, o Atlas da Notícia, mais de 70 milhões de brasileiros vivem em um chamado “deserto de notícias” e os meios de comunicação populares são frequentemente os únicos que cobrem permanentemente o cotidiano das comunidades periféricas.
A contar com as mídias tradicionais, a imensa mobilização de mulheres na campanha #elenão teria passado despercebida do público e, quando muito, comparada a uma pequena manifestação pró-Jair Bolsonaro no Rio de Janeiro. Concentrar-se nas notícias falsas significa, por um lado, desautorizar movimentos sociais e cidadãos que espalham inverdades mas, por outro lado, implica também fragilizar a já debilitada condição de mídias comunitárias, alternativas e populares que são, muitas vezes, as únicas vozes dissonantes em relação a muitos assuntos importantes.
Vale lembrar, ainda, que além de concentradas, as mídias tradicionais no Brasil tem demonstrado que tem partido claro. A entrevista exclusiva de Jair Bolsonaro à TV Record, no mesmo horário do debate com os candidatos a presidente na TV Globo, representa o desrespeito claro à regra da isonomia, que devem ou deveriam seguir as televisões brasileiras, que são concessões públicas.
A segunda implicação se refere à construção de narrativas impermeáveis ao debate. A pós-verdade junta uma coleção de informações falsas para negar o conhecimento, como no caso das vacinas, e para negar a história, como no caso da ditadura militar no Brasil ou do holocausto promovido pelos nazistas – segundo os adeptos da pós-verdade, esses fatos históricos não existiram (o Ministro do Supremo Tribunal Federal chegou a classificar o golpe militar no Brasil de Movimento de 1964).
A legitimação dessas realidades não depende necessariamente de uma validação científica ou histórica de qualquer natureza. Em alguns casos, existe uma tentativa de estabelecer essa validação. Por exemplo, a dúvida sobre as vacinas veio apoiada em grupos de pesquisadores que levantaram questões e chegaram mesmo a publicar resultados de testes em revistas científicas reputadas. Ainda que essas publicações tenham sido posteriormente revogadas, pela fragilidade dos métodos de pesquisa, sua existência continuou a justificar os discursos.
Mas, em geral, a expressão pública basta para validar um postulado. Daí a facilidade com que notícias falsas se difundem nesse contexto. Não há necessidade alguma de apresentar uma fonte para a informação que está sendo distribuída. Como ilustração, o aumento do uso de "memes" nos comentários de notícias ou publicações de redes sociais substituiu amplamente qualquer tipo de diálogo ou discussão de ideias.
A dinâmica da pós-verdade associa condições de instrução precária ou deficiente (que vão além do problema de nível escolar) com emergências morais de uma sociedade para construir e consolidar visões de mundo. Olhando-a desta perspectiva, a pós-verdade faz parte do exercício de criação de linhas abissais, como define o sociólogo português, Boaventura de Sousa Santos. É o exercício que separa o existente do inexistente, que trata de eliminar pela deslegitimação tudo o que desestabiliza formas e estruturas de dominação.
No caso da sociedade brasileira atual, crescentemente influenciada pelo neopentecostalismo que vem se enraizando nas bases comunitárias, é fácil entender porque notícias falsas dos candidatos do PT os associam a declarações contra a fé, contra Deus e contra os cristãos. A pós-verdade justifica a notícia falsa.
Em uma discussão com uma pessoa conhecida que tinha publicado no Facebook uma notícia falsa sobre dois membros do PSOL, ela me disse que a mentira pouco importava porque aquelas pessoas seriam bem capazes de ter dito aquilo mesmo. Essa postura revela uma estrutura de interpretação da realidade em que o fato em si tem pouca importância diante das convicções. Nessa linha, a primeira implicação apontada, de revalidação da mídia tradicional como solução para a notícia falsa, se torna mais grave.

A capa do O Estado de São Paulo, obviando uma manchete para o protesto # elenão
Novamente usando o caso das manifestações #elenão, os principais jornais do Brasil não deram manchetes de primeira página para associar o evento às fotos de massas populares que encheram ruas e praças por todo o país. Fazendo isso, corroboraram a interpretação de que as mobilizações não existiram e que aquelas fotos, na verdade, eram registros de carnaval ou outros eventos populares de rua, como as notícias falsas propagaram.
A terceira implicação é que a pós-verdade está relacionada com a naturalização de modelos culturais particulares em oposição aos projetos coletivos de sociedade. Como sugere Roland Barthes, em seu ensaio Mitologias, a naturalização é um recurso ideológico bastante utilizado para inocentar realidades que não tem nada de natural. Neste sentido, a dinâmica da pós-verdade associa os postulados da interpretação que quer consolidar com fatos corriqueiros do cotidiano, facilmente comprováveis pelo cidadão ordinário, tornando-os evidentes e incontestáveis.
Parte dos eleitores-defensores de Jair Bolsonaro justifica seu discurso homofóbico, machista, misógino e xenófobo por um jeito “direto e às vezes meio grosseiro de falar” que seria típico do brasileiro médio. Do outro lado, uma vez que muitos políticos do quadro do Partido dos Trabalhadores foram indiciados em investigações por corrupção, todos os políticos do partido são corruptos – algo que não considera sequer se as acusações são verdadeiras nem a parcialidade política do sistema judiciário.
Da pós-verdade a auto-verdade
Eliane Brum fala da evolução (ou involução?) para o conceito de “autoverdade”. A jornalista brasileira associa a “autoverdade” com a estética em oposição à ética. É o reino da proclamação, do uso do púlpito. Ela também relaciona o conceito com a produção de realidades.
As notícias falsas estão lá, mas o mais importante não é contradizer uma versão da história. Importa, exclusivamente, estabelecer uma utopia (ou distopia) que passa a reger o comportamento de quem a difunde. Os inúmeros casos de agressões contra eleitores de esquerda, militantes de movimentos sociais, mulheres, homossexuais e negros, que vem sendo relatados nas redes sociais, podem ser interpretados como a naturalização e a incorporação de um discurso de violência que é a marca da campanha de Jair Bolsonaro.
A lei brasileira considera que atos e declarações homofóbicas e racistas configuram crimes. A “liberdade de expressão” do candidato ao fazer ataques abertos contra grupos sociais e direitos naturaliza a realidade distópica em que cidadãos comuns podem exprimir seus preconceitos, inclusive portando uma arma, se se considerarem ameaçados de alguma forma.
A distopia dessa situação é justificada pela utopia de boa parte dos brasileiros que identifica nesse discurso a proteção da família, tanto em termos de segurança, motivados por índices de violência crescentes no país, quanto em termos morais, mais uma vez alimentados pelo repto neopentecostal. A “autoverdade” é tão potente que leva cidadãos livres em usufruto de uma democracia a declarar que preferem a intromissão das Forças Armadas revistando suas bolsas e casas regularmente do que continuar a viver sob o risco da criminalidade.
A realidade criada por Bolsonaro não soluciona os problemas que produzem essa criminalidade, mas autoriza a vociferação contra os supostos inimigos e permite o cerceamento de direitos em nome da utópica segurança.
A pós-verdade transforma a democracia em uma massa inerte nas mãos de quem a domina. Ela perde seus valores primordiais para se adaptar aos interesses do momento e se despolitiza pela ausência deliberada do debate. Ideias não são discutidas. Verdades são confrontadas e interlocutores são deslegitimados. Nesse processo, as eleições brasileiras de 2018 foram sequestradas pela pós-verdade. Não se discutiram propostas e a grande mobilização contra um candidato a presidente desmontou o debate para todos os demais cargos, abrindo o caminho para a eleição da talvez mais conservadora composição de câmaras legislativas na história do Brasil.
Institucionalmente, o efeito é nocivo, porque a ausência de debate fragiliza a orientação política e ideológica do governo que será estabelecido. Mas há ainda um efeito grave junto ao tecido social, que incorpora a dinâmica da pós-verdade ou da “autoverdade” como uma modalidade que autoriza a eliminação simbólica e, eventualmente, física da dissonância, do contrário, do outro. Não existe risco maior para a democracia.
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