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O paradoxo brasileiro

A atual administração brasileira não aborda as deficiências políticas anteriores de forma construtiva. Aqui está o Preâmbulo do novo livro de Lena Lavinas: A financeirização da política social: o caso brasileiro. Español English

Alfredo Saad-Filho
23 Outubro 2017
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Foto: Lula Marques/Agência PT (Flickr), CC BY 2.0. Alguns direitos reservados.

A financeirização da política social: o caso brasileiro explora três questões estreitamente relacionadas, em diferentes níveis de análise: primeiro, neoliberalismo e financeirização, tanto como características definidoras do capitalismo contemporâneo quanto como catalizadores da reprodução social. Em segundo lugar, a financeirização no Brasil, com foco nas políticas macroeconômicas e financeiras implementadas pelas administrações federais lideradas pelo Partido dos Trabalhadores (PT, no poder entre 2003 e 2016). Em terceiro lugar, o papel único e singularmente significativo de política social na financeirização brasileira. Ao fazer isso, O caso brasileiro oferece uma acusação incômoda do modelo socialista ou "neo-desenvolvimentista" associado aos presidentes Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff.

O neoliberalismo é a fase atual do capitalismo global e a financeirização é o núcleo econômico do neoliberalismo. Em país após o país, o neoliberalismo e a financeirização reorganizaram os processos de produção, intercâmbio, distribuição e acumulação de valor e levaram ao surgimento de modos distintivos de reprodução social, incluindo modos específicos de governança, ideologias e subjetividades. Neste contexto, a financeirização da vida cotidiana intensificou a sujeição das famílias aos mercados e processos financeiros em quase todos os lugares.

Essas declarações geralmente são corretas, mas carecem de conteúdo histórico: embora o neoliberalismo e a financeirização sejam analiticamente distintivos, não estão sendo homogêneos. Em vez disso, eles promovem a diversidade e a diferenciação, com cada país e região seguindo uma rota original para o novo sistema de acumulação. Enquanto os EUA, o Reino Unido, a França, a Alemanha, a Itália, o Japão e o Canadá oferecem estudos de caso interessantes, mas relativamente familiares, as transições em outros países geralmente não são amplamente conhecidas.

A financeirização da vida cotidiana intensificou a sujeição das famílias aos mercados e processos financeiros em quase todos os lugares

O caso da Austrália é particularmente relevante neste contexto. Na Austrália, os governos e os sindicatos liderados pelo Partido Trabalhista concordaram com um conjunto de reformas neoliberais em meados da década de 1980, que culminou com uma dramática reestruturação da economia e da sociedade da Austrália, a desintegração desses governos e a demolição da esquerda organizada.

O caso brasileiro é semelhante; mas é peculiar na forma como as administrações, os sindicatos, as finanças e a indústria do lado esquerdo se uniram em torno de um programa neoliberal de reestruturação econômica e social que foi velado por um "novo" projeto nacional: o modelo social-desenvolvimentista lançado pelo PT.

O social-desenvolvimentismo foi validado pelo argumento de que combinava os pontos fortes da macroeconomia neoliberal, que deveria gerar eficiência econômica e credibilidade do mercado, com as vantagens de políticas sociais e de renda progressivas que promovam a justiça social e impulsionam o mercado interno. Este modelo de desenvolvimento proporcionou, então, um "acordo para o crescimento com inclusão social": traria um círculo virtuoso de crescimento econômico e igualdade social, tornando o Brasil a um país social-democrático ocidental feliz, moderno e próspero. Lena Lavinas demonstra que esta era uma miragem extremamente dispendiosa. Em particular, esse "acordo" baseou-se em um padrão de consumo de massa financiado e insustentável mantido pelas transferências governamentais, subsídios e dívidas pessoais permanentemente aumentadas. 

O que é inovador é a exposição detalhada de Lavinas sobre o crescimento da financeirização durante as administrações lideradas pelo PT, partido abertamente de esquerda

A rota brasileira para a financeirização incluiu duas pistas que se reforçam mutuamente. Por um lado, a financeirização foi parasitária e ajudou a destruir o sistema anterior de acumulação baseado na industrialização de substituição de importações. O processo de financeirização se intensificou no final da década de 1980, quando o Brasil iniciou uma transição por atacado ao neoliberalismo. Este processo foi fortemente apoiado pela política governamental, especialmente durante as administrações lideradas pelos presidentes Fernando Collor (impichado por a corrupção em 1992) e Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). Isso não é controverso. O que é inovador é a exposição detalhada de Lavinas sobre o crescimento da financeirização durante as administrações lideradas pelo PT, partido abertamente de esquerda. Nesse sentido, o argumento de Lavinas não é que o PT "tenha fracassado" em reformar as estruturas econômicas e sociais do Brasil ou que não tenha feito "o suficiente" para construir uma sociedade coesa. 

É muito pior: Lavinas mostra que as políticas do PT não eram nem equivocadas nem meramente infelizes. Elas eram perversas, pois ajudaram a consolidar o neoliberalismo e a acelerar a financeirização da economia e da sociedade brasileiras. Isso aconteceu através de vários canais; Entre eles, destacou-se o crescimento explosivo do crédito ao consumo e a expansão das transferências (estreitamente relacionadas), que estavam no cerne das políticas sociais emblemáticas do PT. Essas transferências foram destinadas não só a aliviar a pobreza extrema, mas também a fornecer garantias para empréstimos pessoais, cartões de crédito, seguros e a venda de outros serviços e ativos financeiros para mercados virgens, povoados por dezenas de milhões de trabalhadores, que foram ilusoriamente chamados da ‘nova classe média’. A captura desses grupos sociais em estruturas e processos financeiros durante as administrações do PT foi intensificada por empréstimos bancários ‘consignados’, pagos através de deduções provenientes diretamente dos pacotes salariais, pensões e pagamentos de benefícios. Este tipo de empréstimo foi promovido por uma aliança profana, incluindo o governo federal, sindicatos liderados pelo PT, indústria, prestadores privados de saúde e educação e, claro, bancos e companhias de seguros. Os empréstimos consignados reduziram drasticamente os custos bancários; o crédito tornou-se mais barato, mais seguro e amplamente disponível, e o empréstimo foi normalizado para milhões de pessoas. A financeirização do cotidiano avançou rapidamente sob o PT.

 O PT sofreu um cataclismo sem precedentes, mas não totalmente imprevisível

Lavinas mostra detalhadamente como e por que esse modelo de crescimento foi falho. Por exemplo, enquanto os ventos globais eram favoráveis, a rota para a financeirização brasileira foi financiada pelas crescentes exportações primárias do país. No entanto, as políticas macroeconômicas neoliberais do governo também alimentaram fluxos de capital internacionais perversos, a sobrevalorização da moeda e um processo de desindustrialização prematura que reduziu drasticamente a margem de geração de renda para apoiar empregos, transferências, reembolso de empréstimos e uma maior distribuição de salário. Isso foi mais do que ignorância e mais perverso do que a negligência: Lavinas mostra que os governos do PT mantiveram o curso apesar das evidentes insuficiências do modelo social-desenvolvimentista, o alarme manifestado pelos seus próprios partidários e a rápida perda de dinamismo da economia desde 2011. Como o mundo ficou atolado na maior crise desde a Grande Depressão, o modelo de crescimento associado ao PT teve que depender cada vez mais de subsídios do setor público, descontos e transferências fiscais que corromperam o saldo fiscal e empréstimos pessoais que aceleraram a financeirização da vida cotidiana. Desta forma, o governo perfurou suas próprias bases. A economia brasileira entrou na mais longa e profunda crise em sua história registrada; A oposição tornou-se feroz, e Rousseff foi cassada sob falsas acusações. O PT sofreu um cataclismo sem precedentes, mas não totalmente imprevisível.

Não há nada que sugira que a atual administração tomará medidas para reabordar as deficiências políticas anteriores de forma construtiva, reequilibrar a economia, distribuir a renda de forma mais eficiente ou reverter a financeirização. Pelo contrário. O paradoxo brasileiro identificado por Lena Lavinas permanece firmemente no lugar, agora com novas camadas de complexidade e iniquidades ainda maiores. Este livro é essencial para entendê-los e para descobrir como o Brasil entrou em sua situação atual. Essas realidades dolorosas não podem ser abordadas sem uma compreensão adequada. Este livro, portanto, não é apenas brilhante; É também uma leitura essencial para nossos tempos sombrios. 

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Lena LAVINAS

Professora de Política Social e Economia no Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. 

The Takeover of Social Policy by Financialization. The Brazilian paradox.

New York: Palgrave Macmillan 2017.

(http://www.palgrave.com/br/book/9781137491060)

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