oDR: Opinion

Apostar na saída de Putin é como esperar por Godot

Para evitar anos de guerra na Ucrânia, o Ocidente precisa lidar com a Rússia como ela é hoje — não como deveria ser

Anna Matveeva
20 Janeiro 2023, 10.00
Vladimir Putin lançou a invasão da Ucrânia para garantir o controle sobre o país — e sobre a Rússia
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(c) Nikolay Vinokurov / Alamy Stock Photo. All rights reserved

Todos os olhos estão voltados para o fim da era Putin, ao que parece.

O presidente ucraniano, Volodymyr Zelenskyi, emitiu um decreto em setembro declarando que as negociações com seu homólogo russo, Vladimir Putin, eram “impossíveis”. Isso poderia implicar uma estratégia ucraniana de negociação zero (o que é improvável) ou a expectativa de que o fim da “era Putin” esteja à vista.

Da mesma forma, muitos entre a elite intelectual russa e a comunidade política ocidental apostam pela iminência de mudança — e que uma nova liderança faria a Rússia mais flexível.

Tais esperanças são equivocadas.

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Três razões pelas quais uma liderança pós-Putin não será fácil

Primeiro, não há sinal de que Putin – quaisquer que sejam seus supostos problemas de saúde – esteja prestes a morrer. Em suas recentes aparições públicas, o presidente russo não passou a impressão de um homem derrotado. Pelo contrário, parece energizado e determinado.

A guerra deu a Putin a oportunidade de expressar suas frustrações com o Ocidente, que teve de reprimir em tempos de diplomacia.

Deixar a confusão da Ucrânia para um sucessor não é como Putin entende o papel de um líder

Putin acredita que o tempo está do lado da Rússia, apostando em uma longa guerra de desgaste contra a Ucrânia. A noção de que ele pode renunciar, sob o peso da culpa e da vergonha pelos danos que causou à Rússia, é equivocada.

Putin está em uma missão e deve ser cumprida. Deixar a confusão da Ucrânia para um sucessor não é como ele entende o papel de um líder. Tendo assumido o fardo, é ele quem deve resolvê-la.

Em segundo lugar, mesmo que Putin deixe o poder, é improvável que um sucessor escolhido por ele seja um progressista. A tarefa do novo líder (ou líderes) seria modernizar a Rússia – sem necessariamente reformá-la politicamente nos moldes ocidentais liberais.

A dolorosa experiência de reformas da Rússia na década de 1990, aliada ao profundo conhecimento dos próprios problemas do Ocidente, torna essa perspectiva pouco atraente. A maioria dos cidadãos acredita que o modelo ocidental de desenvolvimento não é adequado para a Rússia. Muito mais atraente parece sero modelo chinês de rígido controle político, associado ao liberalismo econômico e ao Estado de bem-estar social.

O fato de muitos membros liberais e anti-guerra da sociedade russa terem deixado o país torna esse plano mais fácil de implementar. Com o principal crítico do Kremlin, Alexey Navalny, na prisão, não há evidências de um adversário sério que possa fazer oposição a Putin.

As grandes empresas teriam certa influência, mas não em questões que desafiam a ordem política. Além disso, figuras comerciais significativas foram sancionadas e, portanto, isoladas do Ocidente. Embora a estratégia financeira e econômica seja uma das poucas áreas em que opiniões diferentes são bem-vindas na Rússia, o Estado controla 71% da economia — quase o dobro dos 38% que detinha em 2006.

Terceiro, se as apostas para acabar com a guerra na Ucrânia forem tão altas que possam ser interpretadas como humilhação nacional na Rússia, uma reação patriótica pode muito bem ocorrer.

Se o Kremlin perder o controle político e for incapaz de orquestrar uma sucessão burocrática, pode abrir espaço para que as forças de direita influenciem a política do país.

Pessoas como Yevgeny Prigozhin, chefe do mercenário Grupo Wagner, podem afirmar que representam a “Rússia real” melhor do que as elites cosmopolitas de Moscou e São Petersburgo, que têm um pé no Ocidente.

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Yevgeny Prigozhin (à direita) tornou-se uma figura proeminente no ’partido de guerra’ da Rússia

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(c) Sipa US / Alamy Stock Photo. All rights reserved

Prigozhin é uma figura polêmica demais para aspirar a se tornar presidente, mas pode desempenhar o papel de articulador – seu sentimento antielitista e a imagem de masculinidade guerreira encontram força nas cidades depressivas da Rússia, na classe trabalhadora pouco qualificada e nas populações carcerárias.

Em um cenário de aumento de poder para Prigozhin e o ”partido da guerra” da Rússia, a versão da guerra na Ucrânia que vimos até agora – um conflito distante se desenrolando nas TVs russas enquanto a vida de muitas pessoas comuns continua igual – chegaria ao fim.

Cada cidadão russo teria que contribuir no campo de batalha ou no local de trabalho e abandonar seus planos, esperanças e sonhos pessoais. Se as forças políticas patrióticas da Rússia puderem oferecer um exemplo convincente de viver de acordo com os valores que pregam (talvez enviando seus próprios filhos para a linha de frente, o que ninguém na liderança atual mostrou vontade de fazer), então a guerra se tornaria a norma.

Neste ponto, pode ser útil recordar as lições da história: as consequências sociais na Alemanha após o fim da Primeira Guerra Mundial, uma guerra civil e uma paz amarga, da qual surgiram os Freikorps, o fascismo e o terror nazista.

A questão da Crimeia

Finalmente, nenhum presidente russo, por mais que esteja interessado em consertar as relações com o Ocidente, estaria disposto a abrir mão da Crimeia. (Esta é uma área em que Elon Musk, que sugeriu que a Rússia deveria manter a Crimeia, pode ter razão.)

Com base em minhas próprias conversas com muitos russos (incluindo membros da oposição), o intenso apego emocional das pessoas à Crimeia significa que apenas uma ameaça existencial à própria sobrevivência do país superaria sua potencial perda. A oferta de acesso aos mercados financeiros globais não é suficiente.

Não apenas a liderança, mas também muitos membros da sociedade russa estão dispostos a arcar com enormes custos para manter a Crimeia. A posição ucraniana – de que deve controlar a Crimeia – não deixa uma liderança russa com outra opção a não ser continuar a guerra.

Esperar por uma “Rússia pós Putin” é como esperar por Godot. Uma mudança de liderança não é iminente, nem abre nenhuma chance de paz. Em vez disso, enfrentamos a perspectiva de um cenário Síria 2.0 de longo prazo, que drenaria tanto a Ucrânia quanto a Rússia, e no qual não haverá vencedores.

Politicamente, a guerra já está perdida para a Rússia, independentemente dos acontecimentos no campo de batalha. Putin é responsável por iniciá-la; seria consolador se ele fosse forçado a enfrentar as consequências de suas ações. No entanto, até agora, temos poucos motivos para acreditar que isso acontecerá. Não há fuga fácil da tragédia.

Para permitir um pensamento sóbrio, é essencial abandonar a ilusão de que uma “Rússia sem Putin” está no horizonte e que será fundamentalmente melhor. Se não estamos preparados para lidar com a Rússia como ela é – ao contrário do que deveria ser –, com Putin fazendo parte do pacote, devemos prever anos de guerra na Ucrânia.

E devemos começar a pensar sobre os efeitos de uma longa guerra na Europa, em nossas próprias sociedades e como elas responderão.

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