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Processo constitucional no Chile: quanta desigualdade cabe na democracia sem gerar revolta social?

O Chile não vai resolver seu problema social sem uma nova constituição. É por isso que o resultado do referendo de 25 de outubro é tão significativo. Entrevista com Javier Couso.

Javier Couso José Zepeda
21 Outubro 2020, 6.05
A igreja de San Borja, perto da Plaza Italia em Santiago do Chile, em chamas depois que os manifestantes a incendiaram em 18 de outubro de 2020, comemoração do primeiro aniversário da revolta social no Chile
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Claudio Abarca Sandoval/NurPhoto/PA Images

A crise social, política e econômica do Chile só poderá ser superada por meio de instituições democráticas, nunca por meio da violência ou do descumprimento da legalidade. O processo constitucional busca mudar uma realidade injusta, nefasta e excludente. O único Chile que desejamos é um que respeita a dignidade de todos.

Com a polarização social à flor da pele, os cidadãos perdem os pontos cardeais da coexistência comunal: ficam desanimados.

Essa é a realidade no Chile. O ar que se respira não está apenas contaminado pela poluição, mas também por palavras que exaltam o medo, que avisam que o Chile pode cair em mãos semelhantes às que causaram a tragédia na Venezuela. São ferramentas obsoletas aos quais se recorre por desespero.

No outro extremo, há uma minoria insignificante que tenta, através da violência, ignorar a vontade de um povo que despreza a força e os excessos.

Felizmente, um número crescente de pessoas e organizações condenam tanto os surtos de violência por extremistas, quanto as ações perniciosas de uma força policial que aprendeu a acreditar que as manifestações públicas são crimes por excelência e que a repressão brutal é a única maneira de combatê-los.

Essa tensão, a qual se soma a pobreza política, desvia a atenção daquilo que importa, ofusca o debate fundamental para a superação de uma democracia anômala: que Chile querem os chilenos? Quais são os artigos indispensáveis de uma nova constituição? Como acrescentamos vontades diferentes para garantir a dignidade do outro?

Entrevista com Javier Couso, especialista em direito constitucional chileno, direito constitucional comparado e estudos sócio-jurídicos da Universidade Diego Portales e professor visitante da Universidade de Utrecht, na Holanda.

José Zepeda: A constituição de 1980, quer tenha 40 ou 50 reformas, nenhuma delas pode mudar o que é a alma de uma constituição que se destinava a criar uma "democracia protegida", como seus autores a chamavam. É essa certamente a razão pela qual a maioria dos chilenos quer mudá-la?

Javier Couso: Acho que você acertou na mosca. A ideia de democracia protegida utiliza a constituição para proteger o modelo, pois todas as reformas que ocorreram no Chile não têm uma única letra, nem mesmo uma vírgula, que não tenha sido aprovada pelos herdeiros políticos da ditadura.

A democracia chilena nasceu com este vício já na origem da constituição, que não era totalmente democrática até 2005, quando as maiorias políticas foram expressas no Senado, uma câmara que os governos de centro-esquerda nunca dominaram até 2005, apesar de terem conseguido a maioria na eleição dos senadores.

Todas as reformas que ocorreram no Chile não têm uma única letra, nem mesmo uma vírgula, que não tenha sido aprovada pelos herdeiros políticos da ditadura

A presença de senadores designados, eleitos por uma combinação de militares e civis no Conselho de Segurança Nacional, (e alguns por seus próprios méritos, como Augusto Pinochet, que foi senador vitalício até ser preso em Londres), alterou de forma não democrática a composição no Congresso nacional.

As pessoas esquecem que, nos últimos 30 anos, vivemos em uma democracia semi-soberana. Não é possível compreender o atual processo constitucional chileno sem lembrar que cada mudança constitucional, cada palavra das reformas, foi aprovada na medida exata desejada pelos partidos herdeiros da ditadura.

Não é surpreendente que agora muitos deles, aqueles que não se renovaram, estão literalmente desesperados.

Devemos ser enfáticos neste ponto. A grande notícia do ano passado foi que o então presidente da Renovação Nacional, Mario Desbordes, hoje ministro da Defesa, rompeu com a concepção do passado. Não teríamos este processo constituinte se Desbordes não tivesse dito: eu represento uma nova geração. Ele pertence à classe média baixa, foi policial, estudou direito à noite. Ou seja, é uma pessoa que não vem da oligarquia tradicional, nem da aliança entre o empresariado e a ditadura militar.

JZ: Se for assim, como você explica, a consequência é muito séria. Essa direita que não se renova, que continua a acreditar no mesmo de sempre, que se recusa a admitir em sua campanha pela rejeição da nova constituição: não queremos que mudem a alma da nossa constituição.

JC: Totalmente. Sua única estratégia é dizer: por que vamos nos envolver em um processo de dois anos, se a constituição nada tem a ver com as reais necessidades das pessoas?

Os que somos a favor de uma nova constituição argumentamos o oposto. A constituição está repleta de elementos que não são apenas historicamente hostis à democracia. Existem as leis que regulamentam, por exemplo, a educação. A educação, para reformá-la, requer não um quorum normal de lei simples, mas quatro sétimos do parlamento em exercício. Que é o que muitos países exigem para mudar a constituição.

Lembro aos chilenos que, se quiséssemos um modelo de saúde não segregado, devemos pensar que 18% das instituições de saúde são ISAPRES (Instituições de Saúde Previsional, braço privado do Sistema Nacional de Serviços de Saúde do Chile). Esses 18% correspondem a 40% do gasto total com saúde e os restantes 82, 60%. A qualidade da saúde é muito ruim. Se quiséssemos evoluir para um sistema mais integrado, um serviço único como o National Health Service no Reino Unido, seria inconstitucional no Chile baixo a atual constituição.

O mesmo acontece com a negociação coletiva. O governo Bachelet foi o primeiro da Coalizão de Partidos pela Democracia que realmente ameaçou derrubar algumas das premissas fundamentais do modelo econômico. O pilar fundamental do modelo econômico está estabelecido em um lema: soluções privadas para problemas públicos; mas, sob o regime privado de lucro.

Não se trata apenas de soluções privadas para problemas públicos. Por exemplo, na Holanda, existem escolas privadas como a Montessori, mas elas não podem ser lucrativos. Não é o mesmo critério do supermercado, em que o lucro é o que define o negócio. No Chile, lucra-se até com a administração das prisões, porque elas foram privatizadas.

O transporte público no Chile é privado. Forçar uma empresa privada com fins lucrativos a prestar um serviço necessário, como é o transporte público, gerou o desastre do Transantiago, uma crise solucionada em grande parte pelo metrô que, diga-se de passagem, ainda é público. Os Estados Unidos, que possuem um sistema de transporte público, são socialistas em comparação com o Chile.

Outro exemplo constitucional. O artigo 19, número 16, estabelece que o direito à negociação coletiva é da empresa, não diz apenas negociação coletiva. O objetivo era evitar a declaração de inconstitucionalidade da lei do plano trabalhista do irmão de Sebastian, José Piñera, que proíbe a negociação por ramo de atividade, como existe em algumas democracias do norte da Europa.

Proteção do consumidor. SERNAC, o Serviço Nacional do Consumidor, é um órgão muito fraco. Bachelet quis dar-lhe munição para reduzir os abusos que são particularmente ameaçadores em um país onde a eletricidade, a água, são monopólios naturais que estão nas mãos de pessoas que buscam o lucro privado. Não é o mesmo que lidar com o caso de alguém que abusa do consumidor quando ele ou ela compra sapatos que vêm com defeito. Estamos falando de utilities, de serviços públicos básicos; das contas de todos os meses de recursos que sou obrigado a consumir. Sou um prisioneiro porque não posso mudar meu fornecedor de água ou eletricidade. Quando Bachelet quis mudar o sistema, sua tentativa foi declarada inconstitucional.

JZ: Erasmo disse que as constituições não deveriam ser muito longas, que deveriam conter poucas coisas, o fundamental. Para todo o resto, há leis. Que a constituição deve ser um documento suficientemente curto para que cada cidadão possa lê-la e entendê-la.

JC: Eu concordo, especialmente por causa do risco que um processo constituinte poderia ter em que, por exemplo, a centro-esquerda poderia facilmente ter dois terços e escrever uma constituição a seu gosto. Seria uma consequência democrática, não imposta pelos militares, mas no final seria uma constituição que tentaria garantir orçamentos social-democratas, assim como orçamentos neoliberais foram garantidos na de Pinochet.

No Brasil, produziu-se uma constituição muito longa e flexível, muito fácil de mudar. Como resultado, é objeto de constante revisão, dependendo da ideologia dos governos no poder

Isso torna a constituição em assunto de debate diário e não a estrutura dentro da qual operamos. De fato, no Brasil, produziu-se uma constituição muito longa e flexível, muito fácil de mudar. Como resultado, é objeto de constante revisão, dependendo da ideologia dos governos no poder, o que me parece muito negativo.

Precisamos de uma constituição que permita que a maioria governe. É tão simples quanto isso. Seja o que for, ele deve respeitar os direitos fundamentais dos chilenos e os direitos fundamentais das minorias.

Acredito, portanto, que dois terços contribuirão efetivamente para tornar a constituição mais curta.

JZ: Você disse que a maioria deveria governar. Sendo assim, o sistema presidencial chileno não deveria ser alterado em favor de um sistema que realmente permita que a maioria governe?

JC: O desafio que temos hoje na América Latina, além do binômio da desigualdade e pobreza, é a questão colocada pela revolta social: quanta desigualdade cabe em um esquema democrático sem que o Chile exploda? Poderíamos dizer que não tínhamos um sistema totalmente soberano e democrático e, de certa forma, ele explodiu por causa disso.

A segunda questão, que é mais complexa na América Latina, é a questão dos presidentes que têm uma relação difícil com a legalidade, sejam eles de direita ou de esquerda. Temos Jair Bolsonaro e Iván Duque, por um lado, mas Andrés Manuel López Obrador também flerta com uma relação ambígua com instituições jurídicas e Alberto Fernández parece ser alguém diferente de Cristina Fernández.

Minha impressão é que as pessoas costumavam associar o caudilhismo ao sistema presidencialista, e por isso não nos surpreende que haja um Duque, um Bolsonaro, um Trump. Mas o problema que surgiu, para mim, que sou a favor de um sistema parlamentar, é que a experiência da Turquia, da Polônia, de Viktor Orbán na Hungria, mostra que se pode ser igualmente desrespeitoso das formas jurídicas, dos direitos constitucionais e da independência judicial, enfim do Estado de direito, fora do presidencialismo.

Dito isso, culturalmente, na América Latina está bem inscrito nos 200 anos de história que devemos eleger um presidente.

Certamente, no Chile, vai ser um presidencialismo mil vezes mais atenuado. Herdamos um presidencialismo com um Congresso totalmente enfraquecido. Um fato revelador: nos últimos 30 meses, tivemos nove acusações constitucionais. E nos últimos 30 anos, apenas 25. É assim que o Congresso compensa a sua falta de poder real.

O presidente tem iniciativa legislativa exclusiva, portanto um parlamentar não pode sequer considerar uma lei sobre gastos, que tem a ver com questões trabalhistas, de previdência social. A agenda do Congresso é controlada pelo Executivo através das urgências, ou seja, quando os cidadãos escolhem um presidente, eles escolhem o Executivo mais a metade do Poder Legislativo.

A constituição de 25, com todos os seus defeitos, era uma constituição reivindicada por Allende e Pinochet, pessoas que não poderiam ser mais diferentes

JZ: É surpreendente que o Chile tenha conseguido manter a unidade territorial sem nenhuma regionalização real. Hoje temos 15 regiões. Elas não deveriam ser reduzidas a cinco ou seis regiões mais poderosas, mais relevantes para o país?

JC: Essa é outra questão incontornável. O Chile é provavelmente o Estado unitário mais centralizado da América Latina, com a exceção do Uruguai, que é um país menor. A Colômbia, por exemplo, é muito mais descentralizada. De fato, está surgindo a ideia de macro-regiões, mas, até o segundo mandato de Bachelet, o consenso entre os ministros das finanças era que os economistas tinham medo da descentralização fiscal, de permitir a criação de qualquer imposto regional.

No Chile, o consenso é relativamente bem estabelecido de que um sistema federal não é viável. Nem a economia nem a população podem apoiar um sistema federal.

Um exemplo que mostra a centralização total do Chile. Na Colômbia, seria inconcebível que um nativo de Bogotá se candidatasse a senador em Antioquia ou Cali. Ele não teria nenhuma chance. Exceto na região de Magallanes, onde é obrigatório que o senador seja local, em todas as outras regiões do Chile, parece que as pessoas pensam: melhor optarmos por um candidato de Santiago porque é na capital que está o poder. E isso abre as portas para a trapaça. O candidato compra uma casa de verão no interior e declara que mora lá. É uma tradição muito antiga, ou seja, no fundo você escolhe onde está o poder e o poder está em Santiago. E isso é uma doença, porque Santiago cresce e cresce. Já conta com 8 milhões de habitantes, em um país com menos de 19 milhões (18.986.214).

JZ: A aspiração expressa pela imensa maioria das pessoas que querem uma nova constituição é que ela seja efetivamente transformada em uma Carta Magna que represente todo o país. É possível?

JC: Além do que desejamos, o direito constitucional comparado tem algumas ideias sobre este assunto. A literatura indica que se tem que esperar entre cinco e dez anos para ver a eficácia ou as limitações da constituição. Somente a posteriori se sabe se a constituição adquiriu legitimidade.

É importante ter isso em mente, porque dois presidentes opostos, como Pinochet e (Salvador) Allende, reivindicaram, cada um a seu modo, a constituição de 1925. Allende morreu invocando a constituição, defendendo La Moneda, por cinco horas, porque ele era o presidente constitucional do Chile. Por sua vez, a Junta de Governo, quando justifica o golpe militar, afirma que o faz para restaurar a ordem constitucional quebrada. Assim, a constituição de 25, com todos os seus defeitos, era uma constituição respeitada por pessoas que não poderiam ser mais diferentes.

Creio que há mais oportunidades do que até mesmo a constituição de 1883 e a constituição de 1925 poderiam ter tido. Tivemos apenas três tentativas constitucionais realmente históricas. A de 83 foi imposta pelos conservadores, mas foi uma reforma de conduta liberal. É por isso que um liberal do final do século XIX disse: é uma constituição que cresce, porque você pode tirar coisas e elas voltam a surgir.

Eu sou um otimista. Os setores empresariais de direita, que são mais modernos, mais jovens e mais democráticos que seus pais, pensam que o Chile não resolverá seu problema se fracassar depois de um referendo que deixa claro que o povo quer uma nova constituição. É por isso que o dia 25 de outubro é tão significativo.

Se pelo menos 50% das pessoas votarem, já seria bom. Se oito milhões o fizerem, seria espetacular. Devemos ter em mente que muitas pessoas não irão votar. Mas apesar de todas as adversidades, o novo Chile está começando a emergir.

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