
Sede de democracia no Chile: o atual processo constituinte saciará seus cidadãos?
Uma nova constituição com legitimidade popular promete resolver a profunda crise política no Chile. Para isso, deve representar os cidadãos de forma diversificada.

Em 25 de outubro deste ano, o Chile realizará um plebiscito para decidir se o país deve embarcar na elaboração de uma nova constituição política. Uma nova constituição com legitimidade popular promete resolver a profunda crise política que levou o país a cinco meses de protestos no final de 2019 e início de 2020 e que agravou severamente a resposta do país à pandemia de Covid-19. Aqui, no entanto, argumentamos que este processo constitucional só será bem sucedido se conseguir representar os cidadãos de forma diversificada.
Protestos e demandas não atendidas
Os protestos que começaram em outubro de 2019 são inéditos porque tiveram um envolvimento muito alto entre jovens (55% dos jovens entre 18 e 24 anos participaram de pelo menos um protesto), aconteceram sem lideranças claras, com diversas classes e ideologias e porque viram níveis de violência não registrados desde a ditadura. Centradas na rejeição do "abuso" da elite e do Estado, várias demandas se fundiram nessas mobilizações. Muitos protestantes pertenciam a um grupo diversificado de organizações sociais que se manifestaram por demandas não resolvidas há décadas. Embora essas demandas apontassem problemas em saúde, educação, moradia, emprego e pensões, todas revelaram um sistema de proteção social ineficaz cooptado por interesses econômicos.
Por exemplo, desde a ditadura de Pinochet, na década de 1980, o Estado chileno tem insistido em enfraquecer suas escolas públicas em benefício do setor privado. De fato, atualmente 60% dos estudantes pertencem a algum tipo de escola privada (privada ou semi-privada). Isso significa que a grande maioria dos estudantes paga mensalmente às instituições pela educação. As mobilizações também pediram uma reforma urgente do sistema previdenciário. Introduzido pelo regime de Pinochet, o sistema de aposentaria chileno coleta principalmente contribuições de trabalhadores administrados por empresas com fins lucrativos, denominadas Administradoras de Fondos de Pensiones (AFPs). Embora os trabalhadores contribuam com cerca de 10% ao mês de seus salários, sua aposentaria acaba sendo muito baixa. Cerca de 80% dos aposentados recebem menos do que um salário mínimo por mês, uma situação que é pior para as mulheres.
Insistentemente, as autoridades provaram ser relutantes ou lentas demais para reagir às demandas dos cidadãos. É por isso que, desde outubro do ano passado, os manifestantes têm se mostrado desproporcionalmente desiludidos com seu regime político (ver Figura 1).

Crise política
Em 2014, as autoridades fiscais chilenas descobriram uma rede política que financiava campanhas ilegalmente com contribuições de uma mineradora chamada Soquimich. A fraude chegou a US$ 6,6 milhões e atravessou todo o espectro político, envolvendo membros do partido das duas principais coalizões. Um perdão foi então projetado pelo governo de Bachelet para evitar que essas pessoas enfrentassem processos por corrupção. Desde então, escândalos semelhantes envolveram mais membros de partidos políticos, da Igreja Católica, das Forças Armadas e da polícia.
Esses escândalos aumentaram a frustração que os cidadãos chilenos já vinham acumulando em relação às suas elites. O resultado é um alto desafeto político. Desde sua transição democrática em 1990, o divórcio entre indivíduos e suas instituições políticas tem se expandido progressivamente. Pesquisas anuais indicam que os níveis mais elevados de confiança em relação ao parlamento e aos partidos políticos entre 2015 e 2019 foi de 6%. De fato, em 2019, apenas 2% das pessoas declararam confiar em partidos políticos. Da mesma forma, em 2006, 44% das pessoas indicaram não ter identificação política. Em 2019, esse valor subiu para 72%. Essa dinâmica se reflete nas eleições: o Chile sofreu a maior queda em participação eleitoral entre as democracias mundiais, caindo de 86% de participação em 1989 para 46,6% em 2017. Isso significa que a maioria da população apta não votou na última eleição presidencial. Dado que a incidência de voto diminui com a renda das pessoas, esse descontentamento também envolve alta desigualdade política. Em outras palavras, as vozes das pessoas mais pobres contam menos, o que, por sua vez, reforça o senso coletivo de ineficiência política e apatia.
No entanto, apesar da constante desconexão entre cidadania e política institucional, o número de pessoas que apoiam a democracia vem crescendo (ver Figura 2). Em outras palavras, a insatisfação dos cidadãos com suas autoridades políticas é, em parte, o resultado de que as pessoas querem viver em um sistema mais democrático; um sistema que responde menos aos interesses das elites e mais às necessidades da maioria das pessoas.

Nova constituição: mais democracia?
Um dos legados mais importantes da ditadura militar que terminou em 1990 é a Constituição Política do Chile. Embora tenha sofrido muitas modificações, a essência do documento permaneceu a mesma desde que foi aprovado de forma autoritária em 1980. É por isso que a Constituição é amplamente impopular.
Além disso, é um documento que, sem dúvida, prejudica a democracia. A Constituição chilena, por exemplo, estabelece um Tribunal Constitucional politicamente eleito capaz de vetar legislações já aprovadas pelo parlamento. Este tribunal tem bloqueado insistentemente uma legislação que não favorece as grandes empresas e a elite. A Constituição também torna quase impossível mudar um grupo de Leis Orgânicas que são fundamentais na estrutura política do país. Essas leis promovem a alta centralização política do Estado chileno, a autonomia quase completa das forças armadas e partidos políticos com estruturas de poder altamente concentradas. Elas também regulam um sistema previdenciário altamente comercializado e financiado. Além disso, a Constituição corrói os direitos sociais ao priorizar o investimento privado sobre a prestação de serviços estatais.
As pessoas no Chile há muito tempo delimitam a Constituição chilena e entendem o quão central é uma nova Carta Magna para o futuro desenvolvimento democrático do país. Diante da violenta crise política que surgiu no final do ano passado, o parlamento chileno decidiu iniciar um processo constitucional que poderia redesenhar o envolvimento político. Como resultado, um plebiscito nacional será realizado em 25 de outubro de 2020 para decidir se o país precisa de uma nova Constituição e sobre o método de cumprimento desse objetivo — seja por meio de uma Convenção Constitucional (CC), ou por meio de uma Convenção Constitucional Conjunta (CMC). Enquanto a CMC for composta por membros da população em geral e do parlamento (86 em cada caso), a CC será formada apenas por cidadãos de escolha popular (155).
Pesquisas indicam que a grande maioria da população aprovaria um processo constituinte e preferirá a CC para redigir o texto do novo documento. Essas decisões devem, presumivelmente, impedir que as elites políticas e econômicas controlem o processo constituinte. Além disso, após forte lobby, um grupo de acadêmicos e ativistas conseguiu garantir que, se realizada, a CC tenha paridade de gênero. Esta etapa, sem dúvida, tornará a convenção mais representativa.
Apesar desses preparativos eleitorais, no entanto, alguns fatores tornam improvável que este processo constituinte satisfaça adequadamente a sede de democracia do Chile. Em primeiro lugar, o sistema D'Hondt, que será usado para eleger os membros da CC e CMC, torna quase impossível o sucesso eleitoral de pessoas independentes que não pertencem a partidos políticos. Em outras palavras, o processo constitucional excluirá líderes sociais e outros fora do sistema político institucional. Muitas decisões cruciais no projeto constitucional podem ser influenciadas por elites partidárias já altamente impopulares. Isso irá corroer a legitimidade popular da nova constituição.
Em segundo lugar, nem a CC nem a CMC planejam ter cotas para incluir representantes indígenas. Historicamente marginalizada e politicamente sub-representada, a população indígena terá novamente pouca voz na elaboração da nova constituição. Várias organizações, ativistas e figuras públicas têm chamado a atenção para esses desafios. As autoridades ainda têm tempo para garantir uma constituição democrática adequada para o Chile. Desperdiçar essa oportunidade histórica será trair as esperanças dos cidadãos e desligá-los ainda mais longe dos processos políticos.
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