
Cortesia do autor. Domínio público.
“Adoramos a perfeição, porque não a podemos ter; repugná-la-íamos, se a tivéssemos. O perfeito é desumano, porque o humano é imperfeito.”
– Fernando Pessoa, Libro do Desassossego
A poesia é algo que acontece. Que não pode ser criado. No entanto, não há vida que não implique poesia. Foi assim que Sophia de Mello Breyner, uma das grandes escritoras que Portugal deu ao mundo, interpretou a vida. A sua vasta obra literária, que inclui poesia, contos e livros infantis, é inseparável do que aconteceu em Portugal na segunda metade do século XX.
A sua verdadeira vocação foi a de desvendar a essência oculta do mundo. Mas apesar da sua lealdade para com o seu trabalho, Sophia nunca fugiu às suas responsabilidades como cidadã. Acreditava firmemente que a poesia é uma luta contra a escuridão, nunca dando as costas à luz.
A poesia como valor transformador
Sophia nasceu no Porto em 1919, numa família descendente de aristocratas liberais, tendo descoberto a poesia com apenas três anos. Daquele momento em diante, Sophia e a poesia tornaram-se inseparáveis, mas a autora nunca foi capaz de convencer as pessoas que a poesia não pode ser explicada: para ela, o significado da poesia sempre esteve na procura.
A sua verdadeira vocação foi a de desvendar a essência oculta do mundo, mas Sophia nunca fugiu às suas responsabilidades como cidadã.
“Poesia” foi publicada em 1944. Foi o seu primeiro livro, e é difícil dizer se foi a carnificina da Segunda Guerra Mundial ou a politica do Estado Novo que a convenceu a partir à procura da liberdade que não encontrava no seu país. Como aconteceria frequentemente durante a sua vida, Sophia encontrou aquilo que procurava na natureza.
O estilo de Sophia de Mello Breyner é inconfundível, porque ela falava de si mesma através da sua poesia. Sobre a sua vida e as suas memórias. A escritora foi capaz de iluminar a realidade e expressar a sua ânsia de liberdade como poucos artistas conseguiram. Os seus poemas, ricos em símbolos e alegorias, foram influenciados de forma determinante pela cultura grega, ainda que Sophia tivesse uma relação especial com o mar, como símbolo da dinâmica da vida: tudo vem dele, e a ele tudo retornará.
Nos seus poemas todas as palavras são necessárias. Não são decorativas. A poesia era para Sophia uma avenida para entender o mundo, uma tentativa de ordenar o caos. Completamente imersa na natureza, era capaz de chegar ao coração de todos os que a quisessem ler, lembrando-os que deviam olhar o mundo com mais frequência; e preparar-se para ser surpreendidos.
Quando a arte não é livre, as pessoas não são livres
Sophia de Mello Breyner não era política. Era, no entanto, uma cidadã preocupada, que acreditava numa participação política guiada pela dignidade e pela liberdade. Sem uma agenda política prévia, as suas intervenções políticas começaram nos anos cinquenta, quando participou na campanha do general Humberto Delgado para as eleições presidenciais de 1958.
A poesia era para Sophia uma avenida para entender o mundo, uma tentativa de ordenar o caos.
O seu activismo continuou em 1962 com a publicação de “O Livro Sexto”, que incluiu um poema que atribuía a António de Oliveira Salazar o dom de tornar as almas mais pequenas. A obra recebeu o Grande Prémio de Poesia da Sociedade Portuguesa de Escritores em 1964, sociedade que seria encerrada pela PIDE no ano seguinte, reforçando a determinação de Sophia de se opor ao regime que se virou contra os intelectuais e os artistas.
Em 1969, Sophia escreveu um poema verbalizando as preocupações de um movimento amplo de oposição, os chamados católicos progressistas, que se opunha à guerra colonial em África e exigia uma saída pacifica do conflito. No mesmo ano, foi uma das fundadoras da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos, constituída por elementos independentes de partidos políticos e de outras formações que se opunham ao regime.
Para a escritora, a liberdade do artista era inegociável, uma vez que a criação é um acto de liberdade.
Depois do 25 de Abril, Sophia foi eleita para a Assembleia Constituinte. A sua forma de entender o mundo não mudou, opondo-se à integração da Secretaria da Cultura no Ministério da Comunicação Social. Para a escritora, a liberdade do artista era inegociável, uma vez que a criação é um acto de liberdade. A cultura deve poder trabalhar de forma independente, e não ser controlada pelo poder político, ao qual Sophia não pertenceria durante muito tempo.
Não tinha especial paciência para a retórica, e era consciente que os poetas, ao contrário dos políticos, não têm respostas para tudo. Apesar da sua incapacidade para construir teorias, foi capaz de representar o espírito da época e o sentimento que se viveu nas ruas melhor que qualquer outra pessoa. Mas o seu apoio incondicional à democracia não a impediu de criticar a falta de ambição de um sistema político que desprezou o desenvolvimento cultural das populações, e que antepôs o interesse pessoal ao interesse dos cidadãos.
O poeta é um resistente
Sophia de Mello Breyner acreditava que o corajoso é opor-se ao poder. E que só aquilo que é corajoso é que vale a pena. A poesia é uma forma de resistência contra a indignidade, e a responsabilidade do escritor não é apenas interpretar a vida, mas também moldar a forma como entendemos e habitamos as nossas sociedades.
A poesia é uma forma de resistência contra a indignidade. A responsabilidade do escritor não é apenas interpretar a vida, mas também moldar a forma como habitamos as nossas sociedades.
A autora de “O Cavaleiro da Dinamarca” e de “A Menina e o Mar” viveu durante um período turbulento, no qual Portugal passou da ditadura à democracia. As coisas mudaram para melhor, e os Portugueses tornaram-se livres para decidir o que querem (e o que não) para o seu país.
Sophia nunca se gabou de ter uma teoria para tudo. Mas a poetisa percebeu antes que a maioria que a luta pela liberdade pode ter muitas formas; mas deve começar cedo. Foi esse um dos motivos que a levou a escrever livros infantis, contribuindo para moldar a consciência política de uma audiência muitas vezes ignorada por escritores e políticos. E o que a motivou após o massacre de Santa Cruz em Timor, a promover poetas locais, demonstrando como as palavras podem derrotar a violência e o ódio.
O legado de Sophia de Mello Breyner continua vivo. E será revisitado através de várias exposições, conferências e concertos ao longo do ano. Os políticos vão lembrar os portugueses porque celebramos o centésimo aniversario do seu nascimento. No entanto, muitos deles não tem como prioridade proporcionar às novas gerações a capacidade de discutir o significado da sua obra, nem a obra de muitos outros escritores e artistas que foram postos de lado porque há coisas mais importantes.
Convém lembrar, como dizia Sophia, que a cultura é cara, mas que a incultura é mais cara ainda. O propósito da poesia não é embelezar a vida, mas viver.
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