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Uma (fraca) homenagem à democracia na Catalunha

As imagens de um Parlamento meio vazio durante o voto da lei do referendo ilustram como a democracia e a Catalunha seguiram caminhos separados. A democracia não é a lei da maioria, mas a protecção da minoria. English Español

Manuel Nunes Ramires Serrano
22 Setembro 2017
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Centenas de manifestantes protestam contra o governo espanhol em Barcelona. 20 de Setembro 2017. Matthias Oesterle/Zuma Press /PA Images. Todos os direitos reservados.

"Estar em minoria, mesmo numa minoria de um, não significa estar louco. Há verdade e há mentira, mas se uma pessoa se mantêm fiel à verdade, mesmo contra o mundo inteiro, não está louca".

- George Orwell, 1984

A Catalunha pode estar mais perto do que nunca de ser independente, mas está cada vez mais longe de encarnar a revolução democrática que muitos dos seus adeptos nos querem fazer crer. Os secessionistas recorreram à sua limitada maioria parlamentar para aprovar a lei do referendo e a lei de transição jurídica - para substituir a legalidade espanhola - ignorando as garantias legais, os pareceres dos seus próprios serviços jurídicos, a ordem constitucional e as mais elementares normas democráticas. As imagens de um Parlamento meio vazio durante a votação, enquanto uma deputada removia as bandeiras espanholas deixadas juntamente com as catalãs pelos membros da oposição ao abandonar os seus lugares em sinal de protesto, ilustra como o movimento secessionista e a democracia liberal seguiram caminhos separados. Depois da aprovação irregular de leis inconstitucionais, as forças secessionistas decidiram suspender as sessões parlamentares até depois do referendo.

Com o apoio da presidente do Parlamento Catalão, que deveria ser imparcial, mas que actua como mais um membro do governo, e que  parece incapaz de deixar para trás o seu passado como líder do movimento independentista, abriram as portas para a convocação dum referendo unilateral que visa ratificar o seu projecto de secessão. O governo de Mariano Rajoy afirma que, seguindo as decisões do Tribunal Constitucional, não permitirá que dito referendo se celebre. Mas à medida que se aproxima o dia 1 de Outubro e os apelos à calma e ao diálogo não parecem ter efeito, parece que estamos perante um choque entre dois comboios, ou melhor, perante um choque dum comboio contra o muro da legalidade democrática.

Fins legítimos não justificam meios ilegítimos

É importante reconhecer que o nacionalismo muitas vezes emerge da percepção de uma humilhação histórica sofrida por aqueles que se sentem intimamente ligados a uma pátria. Mas este legitimo sentimento de humilhação não pode explicar por si só o forte aumento do apoio à independência da Catalunha – de 15% em 2009 a 41% em 2017. Uma duríssima crise económica, vários erros óbvios por parte do governo espanhol, uma narrativa popularista culpando Madrid por todos os fracassos, próprios e alheios, e um aparelho de propaganda eficaz proporcionam uma melhor – e mais plausível – explicação para a efervescência actual.

A Catalunha pode estar mais perto do que nunca de ser independente, mas está cada vez mais longe de encarnar a revolução democrática que muitos dos seus adeptos nos querem fazer crer. 

As forças secessionistas procuram há já algum tempo uma maioria suficiente para declarar-se independentes. Mas não a obtiveram em 2012, quando milhares de cidadãos exigiram uma nação própria e o seu presidente, afirmando ter ouvido a voz do povo, convocou novas eleições, onde perdeu 12 lugares. Também não a obtiveram em 2014, quando organizaram um referendo que seria declarado ilegal, e transformado numa consulta não oficial ao ter contado unicamente com a participação de 33% dos catalães. Nem numas novas eleições em Setembro de 2015, as terceiras em cinco anos, depois das quais, em vez de reconhecê-lo, decidiram que menos de 48% dos votos eram mais que suficientes para conseguir a independência.

Ainda que as últimas sondagens indiquem que 61% dos catalães consideram que o referendo não é válido e que, em caso de que se celebre, não terá valor legal para declarar a independência, e que menos de 41% dos catalães esteja a favor da independência, nada parece impedir as forças secessionistas de impor a sua vontade. A imposição da lei do referendo e de transição jurídica provocaram que o governo de Madrid exerça o seu poder coercitivo, e abriram as portas à tergiversação populista do que é e do que não é a democracia. Este novo e definitivo erro do movimento secessionista priva-o de qualquer legitimidade que alguma vez possa ter tido. Porque em democracia, os fins, por mais justos que sejam, jamais podem justificar meios injustos.

Tergiversando a democracia

Um Parlamento meio vazio é uma alegoria do que está a acontecer na Catalunha. É verdade que os secessionistas contam com 72 lugares no Parlamento, – a maioria situa-se nos 66 lugares – mas não é menos verdade que contam com menos de 48% dos votos. Com esta maioria parlamentaria podem legislar, aprovar o orçamento de estado e debater moções de censura. Se os cidadãos não estiverem contentes com o seu desempenho, podem retirar-lhes a confiança nas urnas e escolher outra maioria (ou minoria) para governar. Mas aquelas decisões que são irreversíveis, que afectam o futuro de um país – e de milhares de pessoas – durante muitas gerações não podem ser impostas por menos de metade do eleitorado. Ainda assim, nesta legislatura ficou claro que as autoridades catalãs só parecem interessadas em estampar um selo de aprovação popular, através de mobilizações na rua, sobre uma secessão que decidiram sem ter em conta o que a maioria dos cidadãos expressaram nas urnas.

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Deputados pró-independência celebram a aprovação da lei do referendo no Parlamento da Catalunha. 6 de Setembro 2017. Jordi Boixareu /Zuma Press/PA Pictures. Todos os direitos reservados.

Os referendos não são ferramentas democráticas per se. São facilmente manipulados, são assimétricos e falsificam a realidade multipolar da sociedade. Se ganham os seus promotores, o resultado é irreversível. Se perdem, volta-se a votar. Basta com olhar para a Escócia para percebê-lo: perderam o referendo, mas agora querem convocar outro. Mas se tivessem ganho, já não haveria marcha atrás nem outro referendo, por muito que a maioria se visse alterada, como tende a acontecer em países livres e democráticos.

Em democracia, os fins, por mais justos que sejam, jamais podem justificar meios injustos.

Não todas as decisões alcançadas por maioria são necessariamente democráticas. Os pesos e contrapesos, tal como a separação de poderes, existem por muitas razões: uma delas é evitar que as decisões que possam afectar negativamente as minorias sejam aprovadas sem se pensar duas vezes. É por este motivo que o procedimento para alterar a Constituição, que é a lei de leis, requer uma maioria qualificada de dois terços e difere do procedimento para aprovar um projecto de lei ordinário. Isto não o torna menos democrático. Torna-o democrático.

A celebração de um referendo de autodeterminação unilateral e inconstitucional, nestas circunstancias, seria ir contra o que as democracias parlamentares e os referendos legais, e negociados, representam. Violaria o direito internacional, os princípios internacionais, o direito nacional, e inclusive o direito autonómico. Se não cumpre sequer com os requisitos formais para celebrar uma consulta séria, como podemos falar de um referendo democrático?

Os referendos não são ferramentas democráticas per se. São facilmente manipulados, são assimétricos e falsificam a realidade multipolar da sociedade.

Uma solução política deve sobrepor a realidade às emoções

A polarização que rodeia este processo coloca muitos interrogantes. Mas garante uma coisa: este processo vai deixar uma cicatriz muito feia, uma sociedade dividida, vencedores e vencidos.

Mariano Rajoy deve resistir à tentação de suspender a autonomia da Catalunha aplicando o artigo 155 da Constituição Espanhola, tal como fez até agora. Isto seria cair na armadilha preparada pelos secessionistas, e alimentaria a percepção generalizada de que a Catalunha está a ser reprimida e que a culpa estava, está e sempre estará em Madrid.

A polarização que rodeia este processo coloca muitos interrogantes. Mas garante uma coisa: este processo vai deixar uma cicatriz muito feia, uma sociedade dividida, vencedores e vencidos.

Mas ainda que muitos não estejam de acordo – a emoção e a realidade não andam sempre de mão dada – a realidade é que a Catalunha é uma sociedade livre. Maneja a sua política educativa, os seus hospitais, os seus serviços públicos. Tem a sua própria policia, os seus próprios meios de comunicação. A Catalunha não é o Kosovo, não acabou de sair de uma guerra. E não foi invadida por um exército estrangeiro, como a Ucrânia.

A Espanha, contrariamente ao dito por Carles Puidgemont, o actual presidente catalão, é uma Estado democrático. E sê-lo supõe salvaguardar a coexistência entre todos os membros da sociedade e proteger a liberdade de todos os cidadãos. Não só dos que pensam como ele. O seu governo tem-se distinguido por governar só para uma parte dos catalães: os que considera como seus. Mas o que está em jogo é a coexistência entre todos os espanhóis. E entre todos os catalães. A voz de um cidadã catalão abanando uma bandeira espanhola vale tanto como a voz do cidadão catalão abanando um estelada, – a bandeira independentista por excelência – e, contudo, um será tido como catalão, inclusive como um bom catalão, e o outro como mau catalão, ou mesmo como não catalão.

Ainda que muitos não estejam de acordo – a emoção e a realidade não andam sempre de mão dada – a realidade é que a Catalunha é uma sociedade livre. 

Felizmente, há muito mais que nos une do que aquilo que nos separa. Os terríveis atentados deste Verão em Barcelona devem servir para lembrar-nos que vivemos em sociedade abertas, livres e diversas. E que é nessas sociedades que queremos continuar a viver, sem que ninguém nos imponha a sua razão de viver. Os catalães deveriam poder votar, mas dentro da lei, não desta forma. De facto, votaram trinta e oito vezes desde a restauração da democracia. As leis e os procedimentos eleitorais existem para proteger os cidadãos da arbitrariedade.

Contrariamente ao que sugeriu Assange no Twitter, a Espanha não está a tentar amordaçar 7.5 milhões de pessoas. E, certamente, não tem medo de escutar aqueles que querem fazer ouvir a sua voz. O que o governo espanhol teme, como todos aqueles que acreditamos na democracia tememos, é aqueles que afirmam defender a liberdade, os direitos humanos e o estado de direito, enquanto a manipulam e usam a seu favor. A Democracia, escreveu Albert Camus, não é a lei da maioria, mas a protecção da minoria. 

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