
20 de Junho, 2015. Atenas, Grécia. Flickr. Alguns direitos reservados.
Descontentamento de Fundo
Nos últimos dois anos fomos testemunhas de um foco de insatisfação global. Protestas em massa sucederam-se em várias cidades como Londres, Madrid, Nova Iorque, Istambul, Cairo, Sofia, São Paulo, entre muitas outras. Nesse determinado momento sugeri, num artigo publicado na openDemocracy, que a simultaneidade destes eventos devia-se em parte ao efeito da globalização que potenciada por uma visão neoliberal, com tintes ocidentais, cativou grande parte do mundo.
Pessoas de diversos países, argumentei, pagaram um preço muito alto pela depravação do sistema bancário - e provavelmente continuarão a pagá-lo por muitos anos. Assistimos por tanto à entrega de populações inteiras aos vaivéns do mercado internacional, à avidez do sector financeiro e à crueldade por negligência de governos incompetentes.
A situação atual da Grécia encaixa perfeitamente neste modelo. Muito foi escrito sobre o assunto, e muito augurado por adivinhos económicos, sendo as afirmações das diferentes partes tão perentórias e intransigentes que se nos pode perdoar o pensar que o canhão não está carregado de ideia novas e que os únicos sons que emitem são vazios. Quem ouvir as declarações de Jean-Claude Trichet -antigo presidente do Banco Centra Europeu (BCE) -proferidas no dia 7 de julho deste ano perante as câmaras da BBC, evitando responder à questão do que devem fazer os gregos, comprovará mais uma vez o quão relutantes são os eurocratas relativamente á sua participação e eventual envolvimento na conjuntura atual.
Trichet está em boa companhia, uma vez que os restantes atores – especificamente Ângela Merkel e seu executor principal, Wolfgang Schäuble, o atual presidente do BCE, Mario Draghi e a diretora do Fundo Monetário Internacional (FMI), Christine Lagarde - também têm sido relutantes em aceitar que os factos à vista não correspondem com a imagem de um universo perfeito determinado e perfeitamente regulado pelo mercado. E o mais básico destes fatos é, em primeiro lugar, que a Grécia não pode e não vai pagar as suas dívidas, nem sequer os interesses de suas dívidas; em segundo lugar, que a aliança profana, conhecida como Troika, transformou a dívida privada criada pelos bancos em dívida pública nas mãos dos contribuintes – já sejam eles contribuintes gregos, ou se eles não puderem cumprir tal obrigação ou se recusarem a faze-lo, subsidiariamente os contribuintes alemães, franceses, espanhóis e italianos, nesta ordem. É uma mensagem incómoda, sendo um caso similar ao que se enfrenta o Novo Laborismo no Reino Unido, que se encontra ainda em dificuldades como consequência do resgate do sector bancário a cargo dos contribuintes que autorizou o então primeiro-ministro Gordon Brown.
Merkel e companhia são plenamente conscientes de que os resgates bancários têm um impacto devastador sobre a cidadania. É muito mais conveniente para ditas atores, portanto, criticar os credores em vez de fazer frente às atividades díscolas, moralmente questionáveis e gananciosas dos bancos, empenhados em aumentar os seus ativos, colocando à disposição de governos complacentes empréstimos; voltando ditos empréstimos muitas vezes de imediato da Grécia em forma de pagamento via interesses ou vinculados à compra de armas e outros produtos estrela de países prestamistas.
Neste sentido, ao que nos enfrentamos na crise grega-não encontrando outra forma de expressá-lo – é uma inacreditável corrupção moral a grande escala.
Legalidade e Moralidade
O senhor Trichet não se limitou a prevaricar. Com um descaro perturbante culpou o atual governo grego pela alta divida do país e pelo colapso económico posterior. Mas não precisa ele, ou a Europa, que se lhes recorde que a Syriza só está no poder desde fevereiro de 2015?
Mas à outra verdade por detrás da verborreia condenatória encenada pela Troika, concretamente, que grande parte de devida grega tomou forma longe da vista do público e que há pelo menos uma questão por resolver sobre se as partes envolvidas- tanto gregas como as que não o são – são responsáveis pela enorme divida grega e em que medida. A responsabilidade foi habilmente redirigida em direção à legislação grega, desviando de este todo modo a responsabilidade das transação privadas em direção ao Estado Grego. Isto é o que sugere a Comissão da Verdade, criada pelo atual governo grego para analisar a validez da divida pública. Vale a pena ler o parecer da Comissão da Verdade, uma vez que descreve com certo detalhe a responsabilidade conjunta do anterior governo e da Troika na crise atual, expondo também o mecanismo através do qual a “maioria dos fundos tomados em empréstimo foram transferidos diretamente para as instituições financeiras…” com poucas ou nenhuma referencia à capacidade do governo grego para fazer frente ao pago dos interesses da divida ou ao seu impacto na população.
A Votação
Antes do referendo, as acusações dirigidas à complacência da Grécia, irresponsabilidade, preguiça, má-fé, etc., tornou-se uma prática recorrente entre aqueles que procuravam desviar a atenção sobre a responsabilidade da Troika no desastre financeiro. E, como muitas vezes acontece, os media, curvaram-se ante o poder e as finanças – a BBC inclusive. Sob o peso da opinião pública internacional, era de esperar que o povo grego baixasse a cabeça e votasse a favor, aceitando de este modo ingerir a sua respetiva e inevitável dose de cicuta. Mesmo antes da votação, as sondagens apontavam para a vitória do sim - ou pelo menos para um resultado apertado, o que levanta dúvidas sobre a neutralidade dos especialistas contratados pelos meios de comunicação.
O que nos foi dito em geral em função do NÃO, além de expressões de surpresa e consternação, foi que os gregos votaram por um falso sentido de orgulho e dignidade – noutras palavras, com o coração em vez de com a cabeça. Parece ser que os dois órgãos funcionam por separado, apesar de que se supõe que, pelo menos em quanto ao dinheiro se refere, a cabeça governa por direito o interesse próprio – a menos que por alguma razão, se tenha distraída e extraviado no momento decisivo e deixado o coração no comando. Há uma grande variedade deste argumento disponível na internet.
Gostaria de sugerir uma interpretação alternativa do NÃO grego, nomeadamente uma que está em linha com as numerosas protestas urbanas e as rebeliões, grande e pequenas, que tiveram lugar nos últimos anos; e em linha também com o auge dos partidos não tradicionais como o Scottish National Party (SNP) na Escócia, Podemos em Espanha e a própria Syriza na Grécia, inclusive alguns partidos de direito como o United Kingdom Independence Party (UKIP) e a Frente Nacional na Grança, cujos membros compartilham – como mínimo- uma hostilidade constante em relação ao neoliberalismo na sua formulação mais pura – noutras palavras, a entrega do progresso e bem-estar humano às forças sem limite e desreguladas do mercado.
Porque o que o povo grego sabe – como muitos outros sabem – que o mercado e os seus elementos financeiros não atuam nem tem intenção alguma de atuar no interesse dos gregos. Tantos eles como nós sabemos que a Troika, juntamente com a maioria dos governos e instituições ocidentais, estão sujeitas a esse mercado e os seus representantes, a uma elite, entre os quais se encontram, a todos os efeitos, os altos burocratas e os ministros de estado do mundo ocidental.
O que os gregos conseguiram com a sua negativa a ajoelhar-se ante os euro-anões foi infligir uma pequena, mas dolorosa ferida no corpo político neoliberal da Europa. Rebelaram-se. E agora, para aqueles que acreditamos, como reza o lema do Foro Social Mundial, que um mundo melhor é possível, resta-nos apoiá-los.
Leia mais!
Receba o nosso e-mail semanal
Comentários
Aceitamos comentários, por favor consulte ás orientações para comentários de openDemocracy