
Venezuelanas buscam justiça diante de execuções extrajudiciais de seus filhos
Mães de vítimas se organizam para enfrentar o sistema judiciário em busca da verdade sobre esses crimes cometidos pelo Estado

Ivonne Parra sobreviveu à base de oito sedativos diários por 15 dias após o assassinato de seu filho. Ela não conseguia fazer nada além de lamentar a perda de seu único filho. Seus amigos cuidaram de toda a papelada no escritório do legista e na funerária, enquanto ela chorava em casa.
Quase um mês após a execução, Ivonne sentiu que precisava sair da cama e limpar o nome de seu filho, que foi tachado de criminoso na versão policial. Segundo Ivonne, Guillermo José Rueda Parra, de 20 anos, foi assassinado por oficiais das Forças de Ações Especiais (FAES), órgão de segurança de elite do Estado venezuelano, ligado à Polícia Nacional Bolivariana.
Eram 6h da manhã de 12 de dezembro de 2017 quando Ivonne deparou-se com cinco agentes do lado de fora de sua casa, localizada no setor Blandín da antiga rodovia Caracas-La Guaira. Ali, diante de seus olhos, seu filho, desarmado e de pijama, foi morto a tiros, descreve Ivonne. Os colocaram uma arma na mão de Guillermo para simular uma agressão, afirma.
"Me dá uma bala de outro calibre", um agente disse para outro, segundo Ivonne.
"Não temos outro", o segundo agente respondeu. Ivonne descreve o diálogo, que observou da rua.
O Direito Internacional define como "execução extrajudicial" assassinatos cometidos por agentes do Estado, ou com sua cumplicidade e tolerância. Entre janeiro e setembro de 2021, o projeto Lupa por la Vida, da organização Provea e do Centro Gumilla, documentou 1.197 crimes cometidos por policiais e militares em toda a Venezuela. Entre 2012 e março de 2020, o Comitê de Vítimas Familiares do Caracaço (Cofavic) documentou 11.328 execuções pelas forças de segurança do Estado.
Quatro anos após suposta execução extrajudicial de Guillermo, os funcionários envolvidos seguem em liberdade, embora seus nomes estejam em arquivo.
Na busca por justiça pela morte de seu filho, Ivonne conheceu Carmen Arroyo, outra mãe cujo filho foi supostamente assassinado pelas forças de segurança do Estado venezuelano. Juntas, criaram a organização Mães Poderosas depois de participar de oficinas de capacitação na área de direitos humanos, ministradas pelo Cofavic e por membros das Nações Unidas.
Fundada em setembro de 2021, Madres Poderosas hoje conta com sete mães e uma irmã de vítimas de execuções extrajudiciais em Caracas. Além do acompanhamento e apoio dos familiares, aspiram obter ajuda psicológica, aconselhamento jurídico e doações de alimentos ou material escolar para os filhos órfãos dos jovens mortos.
Lina Rivera conta que, em seis meses, membros das forças de segurança do Estado assassinaram seu filho, seu irmão e dois sobrinhos
As crianças são sustentados por suas avós, que não podem buscar emprego formal devido ao tempo que investem em comparecer regularmente aos tribunais. Uma delas é Lina Rivera, uma das integrantes das Madres Poderosas que conta que, em seis meses, membros das forças de segurança do Estado assassinaram seu filho, seu irmão e dois sobrinhos. Ela tem nove netos sob seus cuidados, que sustenta com muito esforço.
Essas oito mulheres não querem ser chamadas de vítimas. Munidas de coragem imensurável, elas estão dispostas a tentar tudo ao seu alcance para limpar o nome de seus filhos e irmãos.
"Nada vai me devolver meu filho, mas quero evitar que essas execuções extrajudiciais continuem acontecendo; quero evitar que outras mães passem pela dor que estamos passando. Não criamos criminosos”, diz Ivonne, que transmite força mesmo com os olhos cheios de lágrimas toda vez que fala do filho.
O filho de Carmen, Christian Alfredo Charris Arroyo, foi assassinado em 24 de setembro de 2018, um dia depois de seu aniversário, em La Dolorita, uma comunidade em Petare, o maior bairro de Caracas. Apesar de 20 funcionários da FAES que participaram da operação terem sido identificados, nenhum respondeu pelo crime.
Christian era o único filho de Carmen. Ela o criou sozinha. O jovem de 25 anos trabalhava como barbeiro e jogava basquete na comunidade. Segundo a versão policial, Christian pertencia a um grupo criminoso e era procurado pelos crimes de roubo, furto, extorsão e homicídio.
"Se Christian matou um homem chamado Jeferson Gil em 2016, por que não procuraram meu filho antes? O infrator não tem residência fixa e meu filho podia ser encontrado em sua casa. Meu filho foi criminalizado por ser um jovem da comunidade", diz Carmen, seu rosto refletindo a dor com suas expressões pronunciadas.
Ivonne e Carmen orientam as outras mães no processo judicial, as acompanham ao tribunal e as incentivam a não desistir. Como nenhuma delas tem emprego formal, nem sempre têm dinheiro para embarcarem na jornada da periferia, onde moram, até o centro através de transporte público.
Duas vezes por semana, ou pelo menos a cada 15 dias, as fundadoras das Madres Poderosas visitam os promotores que tratam dos casos para receber atualizações. Na maioria das vezes, não recebem respostas dos funcionários públicos, mas persistem.
"Estamos lutando contra o carrasco. Sabemos que não é uma luta fácil, mas não vamos desistir. Eles não serão capazes de nos deter, porque não criamos criminosos, criamos jovens bons e agora temos que defender seu nome", defende Carmem.
Essas mães se tornaram advogadas, promotoras, defensoras de direitos humanos e mensageiras especiais para os promotores que tratam de seus casos. Conhecem os termos jurídicos, inclusive que as execuções extrajudiciais são considerados crimes contra a humanidade.
Eles não sabem o esforço que fizemos para criar filhos honestos em um bairro onde drogas e armas são realidades diárias
Em 92% dos casos de execuções extrajudiciais, não houve nenhuma acusação formal, como mostram dados da organização Cofavic. Em 30%, há demora injustificada no processamento de perícias essenciais, como autópsias, e em 96% a prisão dos responsáveis não foi registrada.
Em sua luta por respostas, as Madres são revitimizadas através das frequentes trocas de promotores, maus-tratos por parte dos funcionários e da negligência judicial. No caso do filho de Ivonne, os promotores foram substituídos pelo menos seis vezes.
"Eu só vou parar de lutar por justiça quando eu morrer. Eles não sabem o esforço que fizemos para criar filhos honestos em um bairro onde drogas e armas são realidades diárias”, diz Carmen.
Para Lina, as Mães Poderosas foram sua salvação depois de perder quatro familiares. Ali, encontrou forças para lutar. Na época dos assassinatos, que ocorreram entre 2017 e 2018, ela tinha medo das consequências de enfrentar o sistema judicial. Mas quando conheceu Ivonne e Carmen sentiu a coragem voltar.
Em julho de 2019, Ivonne e Carmen fizeram parte de um grupo que deu depoimentos sobre violência policial a Michelle Bachelet, alta comissária para os Direitos Humanos das Nações Unidas (ACNUDH), em sua visita à Venezuela.
O ACNUDH recomendou que o governo de Nicolás Maduro tome medidas para prevenir o uso excessivo da força nas manifestações populares, investigue as execuções extrajudiciais e dissolva as FAES. O presidente, no entanto, reiterou seu apoio ao corpo de elite da polícia nacional.
Em 8 de janeiro de 2021, o governo instaurou uma operação policial na área popular de La Vega, a oeste de Caracas, para capturar membros de uma quadrilha de criminosos. O Monitor de Vítimas documentou que 14 jovens foram assassinados pelas forças de segurança. Um relatório da Anistia Internacional concluiu que há provas suficientes para investigar possíveis execuções extrajudiciais, que podem constituir crimes contra a humanidade.
Uma das integrantes mais recentes da Madres Poderosas, Miyanllela Fernández, afirma ter visto seu filho, Richard Jesús Briceño Fernández, de 23 anos, ser baleado duas vezes por membros da FAES. Com frequência, Miyanllela vê o funcionário da FAES que acusa de ter atirado em Richard. Carmen também diz ter visto diversas vezes os agentes supostamente envolvidos no crime contra Guillermo.
Depois da morte de seu filho, Carmen vem tentando prestar Direito na universidade, mas ainda não conseguiu vaga em uma instituição pública.
Maritza Molina, outra mulher integrante das Madres Poderosas, está terminando o curso de Direito na Universidade Católica de Santa Rosa. Seu filho, Dr. Billi Daniel Mascobeto Molina, foi assassinado em Barlovento, estado de Miranda, em 29 de fevereiro de 2012.
Em dez anos, mais de 21 procuradores nacionais e auxiliares passaram pelo caso de seu filho. A situação é desanimadora, mas a rede de apoio que encontrou nas Madres Poderosas lhe dá as forças necessárias para insistir na busca por justiça.
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