
Nas primeiras eleições municipais durante o governo de Jair Bolsonaro, as mulheres negras estão em luta


“Quando ela foi assassinada, a forma que o movimento das mulheres negras encontrou para lidar com esse trauma coletivo foi transformando-o em ação política institucional”, afirma Ana Carolina Lourenço, co-fundadora do Mulheres Negras Decidem. Lourenço se refere a Marielle Franco, vereadora negra e lésbica do Rio de Janeiro, crítica ferrenha da brutalidade policial, que foi assassinada antes das eleições de 2018 no Brasil.
Em todo o mundo, o Brasil ocupa a 132ª posição entre 192 países em termos de representação feminina em órgãos legislativos, ficando atrás da maioria de seus vizinhos da região. Em nível local, apenas 12% das prefeituras são administradas por mulheres, e as mulheres negras - que representam 27% da população brasileira - governam apenas 3% dos municípios.
Mas mais de 1.000 mulheres negras em todo o Brasil se motivaram a se candidatar após o assassinato de Marielle em 2018, um aumento de 60% em relação às eleições de 2014. Mesmo o atual aumento no número de candidatas é visto como parte da mobilização que começou em resposta ao assassinato de Franco.
As eleições de 2018 se tornaram um momento crucial para a participação das mulheres na política. Entre 2014 e 2018, o número de mulheres eleitas para assembleias estaduais e distritais cresceu de 120 para 164 - um aumento de 37%. Na esfera federal, 51 mulheres conquistaram vagas na Câmara dos Deputados em 2014, número que alcançou 77 das 513 cadeiras em 2018.
O coletivo Mulheres Negras Decidem, criado em 2018 para divulgar as candidatas negras, criar e apresentar dados sobre os desafios que as mulheres negras enfrentam na política, ganhou impulso como parte desse movimento.
Lourenço considera que o crescente envolvimento das mulheres negras na política institucional remonta à década de 1990 e o início dos anos 2000, que vê como momentos de formação. Por meio de ações afirmativas, as mulheres negras passaram a acessar as universidades e muitas ganharam experiência na política durante os governos do Partido dos Trabalhadores, entre 2003 e 2016.
Como resultado, mais candidatas do que nunca, incluindo mulheres negras, devem disputar as eleições municipais desta semana - as primeiras eleições desde que o presidente Bolsonaro assumiu o poder. Essas mulheres estão enfrentando a violência e a oposição dos partidos conservadores predominantemente masculinos que ainda governam o Brasil.
Mais fortes juntas: candidaturas coletivas
Para Tainá Rosa, candidata a vereador em Belo Horizonte, Minas Gerais, tudo começou no ano passado, no icônico encontro Ocupa Política. Lá, ela conheceu várias mulheres notáveis envolvidas na política e “imediatamente decidiu que queria fazer parte desse movimento de mulheres negras que está ocupando a política”, lembra.
“Nesse mesmo dia, conversei com Lauana e criamos o Mulheres Negras Sim.”
Lauana Nara é a sua parceira política nessa candidatura coletiva.
“Escolhemos este nome deliberadamente para enfatizar um 'sim' à vida em vista dos muitos assassinatos de mulheres negras e um 'sim' à nossa presença nos espaços de poder, dos quais sempre fomos excluídas”, explicou Rosa.

Adotadas pela primeira vez em 2016, as candidaturas coletivas como a do Mulheres Negras Sim vêm transformando o cenário político do Brasil, tornando-o mais representativo da composição racial do país e incluindo mais mulheres. O conceito é simples. Um grupo de pessoas com um objetivo comum concorre junto para o mesmo posto. Se eleito, uma delas atua como representante oficial, mas o grupo toma decisões em conjunto.
“Minha experiência na política sempre foi de solidariedade”
Inspirada na experiência candidaturas coletivas bem-sucedidas como a Juntas em Recife e Bancada Ativista em São Paulo, essa abordagem foi uma escolha óbvia para Rosa.
“Nunca pensei em adotar outro modelo”, disse. “Minha experiência na política sempre foi de solidariedade. Unimos forças para apresentar nossas reivindicações”.
“Lauana e eu pretendemos fazer uma campanha que envolva diálogo e aproxime a política do povo”, acrescenta Rosa, que se autodenomina “filha dos movimentos sociais e do movimento negro das favelas e produto das ações afirmativas”.
Em sua campanha, elas prometem combater o racismo institucional, distribuindo recursos de forma justa para alcançar as pessoas mais pobres e investigando os assassinatos de jovens negros em bairros marginalizados. Elas também se comprometem enfrentar a violência de gênero, que tem crescido durante a pandemia, e criar creches 24 horas para apoiar as mulheres que estão em casa com seus filhos.
Uma porta de entrada para mulheres na política
Roberta Eugênio, da organização sem fins lucrativos Instituto Alziras, que treina candidatas em estratégias de campanha e comunicação, financiamento e legislação eleitoral, diz que as mulheres sempre se engajaram na política.
Mas seu envolvimento tem se dado principalmente em associações de bairro, onde lutam por saneamento básico, saúde, educação e creches. “O que estamos vendo agora é o reconhecimento e o apoio ao envolvimento formal delas”, disse.
Só neste ano, Eugênio treinou quase 2.000 pré-candidatas de um amplo espectro de partidos políticos em como se candidatar a vereadora ou prefeita nas próximas eleições. Metade das mulheres atendidas pelo treinamento foram negras, e muitas vão concorrer a cargos em algumas das regiões mais remotas do Brasil.
Eugênio temia que o impacto do COVID-19 levasse as mulheres a desistir de fazer campanha, mas ela se sentiu encorajada pela alta participação no curso. “As eleições municipais são uma porta de entrada para o acesso das mulheres à política formal”, explicou.

Uma pesquisa do Instituto Alziras verificou que as cidades administradas por prefeitas têm quase 50% mais chances de ter paridade de gênero nos cargos do governo local.
“Mesmo que o número de mulheres eleitas nesta semana aumente apenas 1%, 2% ou mesmo 3%, o que parece pouco, o efeito multiplicador é grande”, explicou. Um número muito maior de mulheres agora tem as ferramentas e redes para continuar concorrendo até alcançar as conquistas almejadas.
“As eleições municipais são uma porta de entrada para o acesso das mulheres à política formal”
De acordo com o Tribunal Superior Eleitoral, 34% dos candidatos inscritos para concorrer a cargos nas Câmaras Municipais são mulheres, sendo que 16,8% delas são negras. A disputa para Prefeituras não é tão promissora: apenas 13% das candidatas são mulheres, das quais 4,5% são negras.
Na última década, o Brasil passou a exigir que 30% dos candidatos de cada partido fossem mulheres, mas a medida pouco contribuiu para aumentar sua participação nas legislaturas estaduais e nacionais. Os partidos muitas vezes lançavam candidatas “laranjas” apenas para cumprir a cota, e lhes ofereciam pouco apoio e recursos.
Outra lei, aprovada pouco antes das eleições de 2018, passou a exigir que os partidos aloquem pelo menos 30% dos fundos eleitorais financiados pelos contribuintes para as mulheres. Mas, novamente, em muitos casos, os partidos usam candidaturas de mulheres para desviar dinheiro para candidatos homens.
Ana Carolina Lourenço, do Mulheres Negras Decidem, observa que as cotas para mulheres não significam necessariamente uma maior inclusão das mulheres negras, que ainda são o grupo menos representado na política brasileira. Mas ela reconhece que as leis aprovadas após 2015 para impulsionar a participação política das mulheres ajudaram a empoderá-las dentro dos partidos políticos e a aumentar a responsabilidade e o envolvimento da sociedade civil.
Retrocessos e discurso de ódio
Ironicamente, à medida que mulheres negras ganham visibilidade e alcançam mais vitórias na política, o mesmo acontece com a agenda antidireitos de Jair Bolsonaro, que as impacta de forma desproporcional.
“A política e o discurso de Bolsonaro se chocam direta e obviamente com o movimento de mulheres negras”, disse Lourenço. “Todas as políticas públicas que seu governo destrói ou promulga afetam nossas prioridades, que incluem a defesa dos direitos humanos e a integração da raça e gênero nas políticas públicas.”
A violência política também está aumentando. Há alguns dias, a deputada federal Tarília Petrone revelou ter recebido ameaças de morte. “Ataques a mulheres e corpos negros não devem ser naturalizados em nenhum contexto, inclusive no exercício de mandatos parlamentares e em processos eleitorais, disse Petrone em um texto convocando o público a assinar uma petição internacional pela sua proteção. Desde 2017, quando assumiu o cargo de vereadora do Rio de Janeiro junto a Marielle Franco, Petrone recebe ameaças frequentes.
Um estudo recente do Instituto Alziras descobriu que a violência - junto com financiamento inadequado e falta de visibilidade na mídia - é um dos principais fatores que a manter as mulheres fora da política. “A violência contra candidatas começa com pequenas provocações, consideradas inofensivas, mas vai aumentando gradualmente'', explica Eugênio.
O treinamento oferecido a potenciais candidatas por grupos de mulheres geralmente inclui conselhos sobre segurança online e instruções sobre o que fazer se elas forem vítimas de violência.
Rosa relembra uma série de mensagens de ódio e racismo que apareceram no chat durante um encontro online do Mulheres Negras Sim no final de setembro.
“Eu temo que essa violência direta continue a incidir sobre meu corpo”, disse. “A política de ódio de Bolsonaro não nos convém. Precisamos trazer nossa cultura para a política, para que ela deixe de ser cinza e comece a refletir nossa população”.
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