democraciaAbierta: Feature

‘Advogada no Congo e faxineira no Brasil’

Nove mulheres revelam os motivos que as levaram até o Brasil e quais foram suas experiências no país. Nem todas as histórias de migração são iguais.

17 Março 2021, 2.46
Graffiti in São Paulo, Brazil
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duncan c/Flickr. Creative Commons (by-nc)

Nós crescemos aprendendo que família e maternidade é o que faz uma mulher no mundo. Maternidade no Congo é algo sagrado. Uma mulher que não quer ter filhos é como uma árvore que não produz frutos. Isso é algo que fica na sua cabeça. Por causa disso, em algumas famílias, você sofre preconceito por não ser capaz, ou não querer, ter filhos.

Eu sofri esse preconceito porque eu estudava, e quem está estudando não tem tempo para ter filhos. Aqueles que estudam precisam focar nos estudos. Toda a família me deu suporte para terminar os meus estudos, mas eles sempre diziam: “O que ela está pensando? A onde ela acha que vai com esse diploma?”. Mas, para mim, o diploma era meu direito, uma realização, só que o preconceito é muito grande – uma mulher precisa se casar e se tornar mãe.

Então, eu me tornei mãe, e para ser honesta, a maternidade me mudou muito. Minha visão sobre isso mudou. Maternidade inicia a família, é de onde nós viemos. É por isso que famílias e sociedades existem. Mas, não quer dizer que deve ser como eles dizem também.

Eu continuei estudando e trabalhando. Eu estudei para poder ter um trabalho no futuro. Mas tudo que eu havia conquistado no Congo, por causa dos problemas políticos, eles tiraram de mim. Depois que eu cheguei no Brasil, minha vida mudou muito – tudo que eu havia planejado mudou. Eu estou lutando para conquistar, no Brasil, tudo que eu havia perdido, mas eu ainda não consegui reconquistei tudo. No começo, foi muito difícil. Você deixa um país que fala francês e chega em um lugar que a língua é o português. Comunicação para nós é difícil aqui, mas isso tem melhorado. Tem um livro aqui que conta a minha história, no livro diz: “Ela era advogada no Congo e se tornou faxineira no Brasil”, isso significa que eu “comecei do zero”. Eu comecei batendo nas portas, pedindo por trabalho, limpando de casa em casa. Com o tempo, eu consegui me estabilizar um pouco no mercado de trabalho e fui melhorado a minha situação, um passo de cada vez.

O Brasil é um país onde você vê o racismo em todos os lugares.

No Congo, muitas famílias mandam os homens para a escola e deixam as esposas nos afazeres domésticos. Isso é sexismo na nossa cultura, sexismo é uma grande questão no país. Quando eu comecei os meus estudos, meu pai disse: “Deixe seus irmãos irem à escola e você fica em casa”; mas eu queria muito ir. Eu comecei a frequentar à escola, mesmo sem ele pagar. Uma vez eu disse para o meu pai: “Eu vou trazer o meu diploma para vocês, mesmo você não querendo pagar para eu estudar”. Eu queria mostrar para ele que uma mulher também pode estudar. O sexismo está em todo lugar, em todos os níveis. Eu vejo mais equidade de gênero no Brasil. No Congo, a mulher sempre é inferior.

O Congo é um país sexista. A mulher trabalha em casa, tem que preparar a comida, lavar a roupa, tudo. Tomar conta das crianças é uma tarefa da mulher, e quando isso não acontece, ela é repreendida. As nossas leis são moldadas pela cultura, e isso significa que a mulher só tem direitos quando ela está casada. Apenas a mulher casada tem direitos perante a lei. E se seu marido morre um dia ou abandona a mulher, essa mulher não tem direito a nada. Ela tem que deixar a casa da mesma maneira que ela entrou – de mãos vazias. Às vezes ela deixa a casa sem as suas próprias roupas, porque o homem foi quem comprou tudo. Esse sexismo na cultura deixa a mulher em uma situação de vulnerabilidade no Congo. Isso significa que se a mulher quiser se divorciar do seu marido, o marido precisa concordar, caso contrário, ela não tem o divórcio; porque ela é mulher, ela é inferior.

As coisas são difíceis para as mulheres congolesas que vivem no Brasil também. O Brasil é um país onde você vê o racismo em todos os lugares. Imagina a situação em que vive uma mulher, negra, estrangeira, refugiada, em um país racista como o Brasil. Nós tivemos que passar por tantas dificuldades, lutas e dor para chegar até aqui, e depois temos que aguentar um monte de problemas no Brasil. Uma vez que chegamos aqui, nós estamos sempre tentando colocar de lado tudo aquilo que passamos, mas é difícil. Nós chegamos em um país onde não conhecemos as leis ou a cultura, e tudo de ruim que acontece com você, você tem que engolir. Você engole quieta. Você não pode reclamar. Mas nós precisamos falar. Hoje, o Padre Paolo diz: “Refugiados não precisam de voz. Eles precisam pegar o microfone para falar porque eles sempre tiveram voz”. Essa é a oportunidade que nós estamos procurando, um espaço para colocar tudo para fora tudo que passamos aqui no Brasil.

Quando penso em liberdade, eu sinto que o Brasil me trouxe de volta esta noção de liberdade, de diferentes maneiras. Nós sentimos isso dentro das nossas casas, na rua. Eu pego o caminho que eu quero na rua. Eu faço minhas coisas e vou a lugares sem precisar falar para ninguém. Eu me sinto livre para fazer o que eu quiser. Isso é porque eu me casei no Brasil. Eu me sinto livre com o meu marido. Eu sinto que ele também se tornou um homem mais liberal. Aqui, eu sou capaz de tomar algumas decisões em relação a minha própria vida.

Mas, existe um outro lado dessa “liberdade no Brasil”, que não é liberdade. Existem várias práticas aqui que você se sente amarrada, especialmente se você é uma mulher negra. É um país extremamente racista. Por exemplo, uma vez, eu ia entrar no elevador, no final do dia, dentro de uma empresa grande. Eu havia sido convidada para falar em um seminário que estava acontecendo lá. A pessoa que ficava no elevador, me disse: “Você não foi ainda? Não está na hora de você ir embora?”. Para esta pessoa, por eu ser negra, eu era apenas uma faxineira, e se eu não iria limpar mais naquele expediente, eu tinha que ir embora. Mas, naquele dia, eu não era a faxineira. Eu era uma convidada na empresa. Eu era uma pessoa importante no evento.

S. M., sete anos no Brasil

Esta série foi apoiada financeiramente por Humanity United.

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