
Fotografia: LATINNO.
Francesc Badia: comecemos por definir a ideia que está por detrás do projecto LATINNO.
Thamy Pogrebinschi: a ideia do projecto LATINNO é chamar a atenção sobre a grande experimentação que, nas ultimas duas décadas, se tem vindo a produzir na América Latina. Fala-se muito de inovação democrática e governação participativa na América Latina, mas o único exemplo citado é sempre o orçamento participativo de Porto Alegre. Talvez mais um ou dois processos participativos tenham sido recentemente estudados, mas mesmo depois de tantos anos, o exemplo de governança participativa por excelência contia a ser o orçamento participativo no Brasil.
Através do Projecto LATINNO quero mostrar que há muito mais na América Latina que o orçamento participativo, e não só no Brasil ou em Porto Alegre. Portanto, a ideia era fornecer essa informação, levantando dados sobre inovações diferentes que existem em dezoito países da América Latina. A minha decisão de colectar esses dados e abri-los imediatamente pretende incentivar mais pesquisas sobre todas essas inovações e sobre esses países. Também responde a um propósito prático, que é permitir que os decisores políticos, a sociedade civil, os governos e organizações internacionais possam obter informações sobre o que existe, e comparar o que funciona e o que não funciona, como as coisas podem funcionar de maneiras diferentes, e como a democracia tem sido experimentada em diferentes contextos e circunstâncias diferentes.
Em suma, a ideia por detrás do LATINNO é construir um conjunto de dados, online e acessíveis para todos, mas também permitir a compreensão e o conhecimento dos vastos experimentos que se fazem com as inovadoras formas de fazer política. O LATINNO, portanto, é mais que um conjunto de dados, e não pretende apenas mapear inovações. É um projecto de pesquisa, sobretudo. Além do conjunto de dados, temos outros resultados, como o primeiro índice de inovações democráticas e as nossas próprias publicações, que contêm os nossos resultados.
FB: há três conceitos em LATINNO que valem a pena analisar. O primeiro diz respeito às inovações democráticas, e a como o conceito de inovação democrática é definida. O que é considerado verdadeiramente inovador? O segundo conceito é construído à volta de como podemos medir a qualidade da democracia, como categorizar: voto, participação, processos deliberativos, nível de representação? E o terceiro conceito tem a ver com a abordagem pragmática através do qual esta pesquisa foi feita, especialmente quando define o que é a experimentação política e em que medida é característica da democracia na América Latina. Vamos começar com o primeiro conceito, que é a inovação democrática. Como o entende?
TP: eu diria que tenho um conceito de inovações democráticas mais amplo do que o utilizado no ambiente académico, sendo ao mesmo tempo mais específico do que o usado por profissionais e activistas. Nos debates académicos, as inovações democráticas são geralmente definidas como novos desenhos institucionais que visam ampliar a participação dos cidadãos na tomada de decisões políticas. O que comtempla esta definição é o aumento do numero de cidadãos que participam, quer dizer, como se ampliam numero de cidadãos envolvidos na toma de decisões. Existem para mim duas limitações aqui: uma é o pressuposto subjacente de que simplesmente com aumentar o número de cidadãos comprometidos com a democracia, ela vai melhorar. A segunda é que esse compromisso deve ocorrer necessariamente ao nível da tomada de decisão.
A nível teórico, eu acho que é difícil pensar em participação como um fim, considerando que a participação melhora a democracia per se. No plano empírico, os experimentos reais envolvem os cidadãos em outras fases do processo político, não só na tomada de decisões, e continuam a ser inovadoras e democráticas. Em base a esta consideração teórica, e à observação empírica, eu defino inovações democráticas como as instituições e práticas cujo objectivo é melhorar, pelo menos uma dimensão da qualidade da democracia através da participação cidadã, em pelo menos uma etapa do processo político.
Então, na minha concepção, que têm guiado a busca de casos no projecto LATINNO, a participação do cidadão não é um fim em si mesmo. É um meio para um fim maior, uma melhoria da democracia numa das dimensões do que chamamos a qualidade da democracia. Estes meios de participação são diversos. Podem incluir deliberação, participação electrónica, votação e formas directas de representação cidadã. Obviamente, a participação dos cidadãos é também algo que aumenta a democracia, especialmente se a participação do cidadão incluir a inclusão política, ou seja, a participação daqueles que estão sub-representados. É por isso que eu tomo inclusão política como um dos objectivos que você pode conseguir através da participação dos cidadãos em inovações democráticas, entre outros. Portanto, a inovação não é democrática simplesmente porque permite aos cidadãos participar, ou expandir o número de cidadãos envolvidos. É democrática porque é um meio de participação, uma ferramenta através da qual os próprios cidadãos podem fazer alguma coisa pela democracia.
E isso pode ser feito não só na fase de tomada de decisão. Os cidadãos podem fornecer informações aos formuladores de políticas e definir a agenda política, podem participar na formulação da política, podem desempenhar um papel na implementação real de políticas, e também podem ser arbitradores, ou seja, acompanhando se as políticas existentes já foram implementadas. Desta forma o conceito é ampliado e tem como relevantes todas as fases do processo político para a participação do cidadão e não apenas para a tomada de decisões. Se só procurarmos por processos nos quais os cidadãos tomam decisões, perdemos muito do que está a acontecer em matéria de experimentação democrática. As decisões políticas foram tomadas de forma diferente pelos decisores porque os cidadãos estabelecem agendas ou monitorizam as políticas, que é a mudança que se deve ter em conta para entender como a participação é algo que supera a representação, sem propriamente competir com ela.
FB: o segundo conceito sobre o que podemos falar é a qualidade da democracia, ou a qualidade democrática. Numa democracia, não se trata apenas de votar, mas também de participar, incluindo o processo de deliberação, o que também é fundamental para a qualidade da democracia. Devemos também falar de democracia representativa, e como, dentro dos limites da representação, alguns processos podem levar à inovação no sentido que algumas iniciativas podem tentar resolver esta lacuna entre os detentores do poder e cidadania, que não se sente representada pelos mesmos. Parece-me importante discutir este conceito dos limites da representação.
TP: entendo o conceito de qualidade democrática também num sentido também mais amplo do que os académicos e os índices que medem a qualidade da democracia. Mas também tento enquadrar esse conceito sobre inovações democráticas, usando um quadro analítico que permite que os mesmos sejam avaliados e contribuam para medir a qualidade da democracia, porque esses milhares de novos desenhos institucionais são importantes para a democracia e devem ser tidos em conta em ditas medições.
Identifico cinco dimensões da qualidade da democracia que podem ser activadas por inovações, ou seja, através da participação cidadã: responsabilidade, capacidade de resposta, estado de direito, inclusão política e igualdade social. Os cidadãos podem melhorar a qualidade da democracia através da participação nesses novos espaços, mecanismos e práticas, para alcançar uma maior igualdade social, ou uma maior inclusão política, ou ambas ao mesmo tempo. Quando as pessoas se encontram, discutem e expressam as suas exigências, quando identificam problemas nas suas cidades e quando fazem recomendações políticas on-line ou off-line, podem aumentar a capacidade de resposta ou de responsabilidade, porque as inovações aumentam as possibilidades de que o governo ouça. Supõe mais oportunidades para que os governos saibam o que os cidadãos esperam deles para além das eleições. O Projecto LATINNO observa como as inovações são projectadas para influir numa ou mais destas cinco dimensões da qualidade da democracia. Observamos também como os diferentes meios podem activar essas cinco dimensões ou qualidades democráticas, e esperar que as diferentes combinações de meios e fins possam melhorar a democracia.
FB: falemos agora sobre os limites da representação.
TP: existe muita discussão sobre como a representação está em crise, sobre a crise da democracia, mas chamá-la crise revela a nossa incapacidade de ver que, na realidade, a democracia mudou. Temos de aceitar isso e seguir em frente, talvez para compreender que a democracia já não significa o que significou no passado.
As instituições que nos levam a pensar que a democracia representativa persiste ainda existem e podem ficar por cá durante muito tempo. Não podemos livrar-nos dos parlamentos, do poder judiciário e do poder executivo. São instituições que não podem ser simplesmente substituídas por inovações, ainda que as inovações posam mudar a forma como funcionam. Muitas inovações começaram a ser desenvolvidas dentro das instituições representativas, ou como uma devolução do poder a partir das mesmas, mas também e sobretudo, rodam à volta delas e têm um impacto sobre elas, porque as mesmas permitem que os cidadãos definam as suas agendas, forneçam insumos para políticas, mudem a forma como as decisões são tomadas e implementem essas decisões.
É importante observar essas mudanças institucionais. O nosso objectivo no Projecto LATINNO é construir esta base de dados para chamar a atenção para estas novas formas e práticas, para estas experiências com a democracia, estas mudanças nas instituições antigas. A nossa base de dados inclui 2.400 desenhos institucionais diferentes em dezoito países. São todos eles casos onde os cidadãos participam num das etapas do processo político que visam melhorar a democracia, ou seja, melhorar a prestação de contas, a capacidade de resposta, a inclusão política, a igualdade social e o estado de direito. São estes novos desenhos institucionais, ou mudanças na forma como as velhas instituições funcionam, que fazem com que os processos de participação cidadã acabem em inovações. E tudo isso vai mais além da representação, mesmo que aconteça dentro da democracia representativa e das instituições representativas. É possível que não sejamos capazes de apreciar esta mudança agora, é e por isso que há tanto debate sobre a crise de representação, em vez de se discutir as alterações da representação e da própria democracia.
Nos últimos anos, estamos a experimentar algo que só poderemos reconhecer e ser capazes de definir no futuro. Há um legado dos últimos governos latino-americanos, especialmente aqueles associados com a volta à esquerda, que tem a ver com uma nova forma de fazer política através da participação, com novas formas de definir prioridades, de tomar decisões, de implementá-las e de avaliá-las. Como podemos ver, a participação não é o oposto da representação: é algo que muda a representação desde dentro. Não é nenhuma surpresa que, como os dados do LATINNO, perto de um terço das inovações democráticas na América Latina se refiram a uma forma de representação cidadã. O cidadão que representa os cidadãos, que fala em nome de outros, às vezes faz para os outros, às vezes com outros cidadãos, às vezes pelo governo, esta é uma tendência, é uma mudança no conceito de representação, que mostra como o mesmo se expande através da participação, em vez de competir ou entrar em conflito com a mesma.
FB: a minha última pergunta ponto refere-se à experimentação. O Projecto LATINNO menciona muitas vezes como a experimentação é característica da democracia na América Latina. Mas quais são especificamente as características desta experiência? Quais são as condições que desencadeiam a experimentação, e por que é que a América Latina é mais experimental do que outros espaços políticos?
TP: começo por dizer em que é mais experimental a América Latina. A região tem Latina tem novas democracias, mais jovens. A idade das instituições torna-as, de alguma forma, mais flexíveis, que podem adaptar-se melhor às novas circunstâncias. É importante sublinhar que algumas condições parecem favorecer essa experimentação política, como a redemocratização, que reafirmou os cidadãos e as organizações da sociedade civil, através da sua luta contra o autoritarismo existente na América Latina.
O processo de democratização vem de mão dada com o processo constitucional. Novas constituições são elaboradas, e protegidas contra o autoritarismo garantindo a participação dos cidadãos. Este é o caso do Brasil, por exemplo. Além disso, independentemente do historial autoritário, há países que promulgaram novas leis que incentivam a participação dos cidadãos e institucionalizam novos desenhos institucionais. Várias leis em diferentes países da região, tentam incluir os cidadãos no processo político e supõem novas instituições ou mudanças institucionais para alcançar este objectivo. A Colômbia é um desses países.
Uma terceira condição geral é a descentralização. Praticamente todos os países da América Latina passaram por processos de descentralização. Os mesmos delegaram o poder em municípios, e potenciaram o poder local, onde várias inovações têm sido tentadas. Novos partidos políticos ou da oposição que permaneceram escondidos durante os períodos autoritários, começaram a participar na política de uma forma diferente, primeiro localmente, e depois nacionalmente, especialmente depois da volta à esquerda e a mudança de século. No entanto, mais importante do que ser para a esquerda ou direita, esquerda, centro ou centro-direita, os dados do LATINNO mostram que, independentemente da sua orientação ideológica, os partidos políticos têm um papel na mudança da democracia por meio de inovações quando estão no governo.
Finalmente, uma outra condição é a diversidade cultural e étnica na América Latina. Há, por exemplo, tradições deliberativas que vêm da sociedade civil, do período em que a mesma se opôs ao autoritarismo, e também das comunidades indígenas, e essas práticas foram incorporadas às novas instituições. Portanto, historicamente, estas seriam as condições.
Assim, na prática, empiricamente, o que vemos são as várias tentativas de construir a democracia através de diferentes meios. Diferentes formas de fazer política são estabelecidas, por deliberação, participação cidadã, participação electrónica, voto directo, e combinamos tudo isto de diferentes maneiras, dependendo dos problemas que temos que enfrentar, dos fins que queremos alcançar. Assim funciona a experimentação democrática.
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