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Amor em tempos do Zika

Enquanto que o vírus Zika que assola a América Latina se dirige em direção ao norte, no El Salvador a atenção centrasse na luta pela justiça reprodutiva. Español English

Hilary Goodfriend
29 Fevereiro 2016
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Vírus Zika. Public Domain.

Á medida que o vírus Zika que assola a América Latina se dirige em direção ao norte, uma renovada atenção tem vindo a centrar-se na luta pela justiça reprodutiva no El Salvador. Perante as alarmantes conexões entre (apesar de discutida) o vírus Zika e a microcefalia em infantes, o Ministro da Saúde do El Salvador veio recomendar às mulheres que atrasem as gravidezes por dois anos; recomendações similares foram feitas pelas autoridades no Brasil, na Colômbia e na Jamaica. E no dia 1 de fevereiro, a Organização Mundial da Saúde declarou que o vírus supõe uma emergência de saúde pública a nível mundial.

Defensores dos direitos humanos, tanto a nível nacional como internacional, opuseram-se às recomendações do governo do El Salvador relativas ao planeamento familiar: no El Salvador, o aborto é definido por lei como um delito, sem exceção alguma.

É importante ter em conta o contexto: em 2009, o esquerdista Farabundo Martí do Frente de Libertação Nacional (FMLN) foi eleito presidente do Salvador, pondo fim a 20 anos de governação ininterrompida da Aliança Nacional Republica (ARENA), um partido de direita apoiado pelos Estados Unidos. A vitória do FMNL marcou a primeira vez na história de El Salvador em que uma administração progressista governa o país. Em 2014, o partido obteve mais um mandato de cinco anos.

Desde que ocupou o posto em 2009, o FMLN, supervisionou êxitos sem precedentes para a saúde das mulheres— raros tanto a nível doméstico como a nível internacional. A reforma do Sistema Nacional de Saúde em 2010 estabeleceu mais de 600 clinicas de saúde comunitárias em zonas rurais e carentes, onde os promotores de saúde provêm cuidados pré e pós natal no próprio domicílio das mulheres. Além disso, o número de mulheres que procurou serviços ginecológicos em clinicas públicas aumentou de 30.154 em 2009 para 313.521 em 2014. Estes programas, juntamente com a criação de centros pré-natais para mulheres que vivem em áreas isoladas, reduziram a mortalidade materna em 68% desde 2009.

Nesta linha, o governo do FMLN inaugurou o Hospital Nacional das Mulheres para substituir a antiga Maternidade, que se foi deteriorando durante anos, desde o terremoto de 2001. O FMLN também implementou um inovador modelo de serviços de “Women´s City” que proporciona cuidados de saúde mental e reprodutiva, apoio legal, cuidado de crianças, crédito e treino em seis instituições espalhadas por todo o país, com três mais que se espera que sejam inauguradas em 2016. E a legislação promovida pelo FMNL tal como o plano de igualdade de género, equidade, a lei de não-discriminação e a Lei “Vive livre de Violência”, forneceram um importante marco legal para os defensores dos direitos das mulheres.

Mas estes admiráveis avanços contrastam fortemente com a persistente criminalização do aborto no El Salvador. Em 1997, uma legislatura dominada pela direita votou a favor de criminalizar o aborto sem exceção alguma, juntando-se aos vizinhos Honduras e Nicarágua, ao Chile e à Republica Dominicana para conformar um vergonhoso clube regional que proíbe o aborto de forma absoluta. Nesse momento, o FMLN dividiu-se. Alguns deputados juntaram-se aos deputados de direita a favor da criminalização do aborto; outros votaram contra. Desde a entrada em efeito da lei em 1998, inúmeras mulheres foram forçadas a tentar pôr fim as suas gravidezes de forma clandestina e/ou insegura. Mais de duas dúzias de mulheres foram presas por homicídios ou aborto – muitas foram detidas ao procurar cuidados médicos depois de sofrer abortos espontâneos. Com tanto progresso noutras áreas relacionadas com o direito das mulheres, como pode esta proibição inumana do aborto manter-se de pé?

No dia 3 de fevereiro, sentei-me com Sara Garcia do Grupo Civil para a Descriminalização do Aborto na capital do El Salvador, San Salvador, para discutir o movimento que defende a justiça reprodutiva e as dinâmicas do poder que estão por detrás duma das mais restritivas leis antiaborto que existem. As linhas que se seguem são excertos da nossa conversa.

Pode começar por explicar o que é o Grupo Civil para a Descriminalização do Aborto

O Grupo Civil para a Descriminalização do Aborto emergiu no marco duma conferência bilateral no Nicarágua. Tanto o El Salvador como o Nicarágua têm legislações muito similares; em ambos países não há alternativas, nem quando a vida da mulher se encontra em risco. Pelo que em 2009 foi organizada uma conferência de organizações de caracter social para discutir o que podia ser feito.

Ela não sabia que estava grávida, então perdeu o feto, e quando chegou ao hospital, basicamente, foi acusada de ter “cometido um homicídio”. Também em 2009, depois de extensas mobilizações sociais, conseguimos liberdade para a Karina, uma mulher que esteve presa durante sete anos e meio.

Muitas ativistas compañeras que lutam pelos direitos das mulheres tiveram conhecimento deste caso muito antes de 2009. Estudaram o tema, documentaram-no e reconstruiram o que aconteceu, assim como a história do caso. Esta era uma jovem mulher que tinha recorrido ao serviço público de saúde – o mesmo na qual tinha sido esterilizada. E depois ficou grávida. Ela não sabia que estava grávida, depois perdeu a gravidez, e finalmente quando chegou ao hospital para receber cuidados médicos, basicamente foi acusada de “ter cometido um homicídio”. O sistema atribui a culpa às mulheres pelo simples facto de serem mulheres, violando desta forma a presunção de inocência. Depois de rever as sentenças, as ativistas foram capazes de provar que Karina era inocente, que tinham existido erros durante todo o processo judicial, e que que claramente existia uma discriminação de género que tinha tido como consequência uma condena injusta.

O El Salvador não teve sempre estas leis. Antes de 1998 existiam alternativas. O aborto terapêutico, quando a vida ou saúde da mulher estava em risco, era reconhecido, tal como o era o aborto ético – quando a gravidez era o resultado duma violência sexual – e o aborto eugénico, quando o feto era incompatível com a vida extrauterina. Estas três exceções aplicavam-se antes de 1998, o ano em que a proibição entrou em vigor. Em 1999, outra importante alteração a nível constitucional veio piorar a situação ao reconhecer que a vida humana começa no momento da conceção. Estas duas mudanças pretendiam por um ponto final na discussão sobre os direitos reprodutivos no país.

No meio disto tudo, um grupo de cidadãos e compañeras de diversos meios – advogados, teólogos, psicólogos, filósofos – puseram-se de acordo e decidiram dizer: “De acordo, vamos unir-nos e analisar como podemos resolver este tema”. Começámos com a necessidade de lutar pelas mulheres que estão detidas, traze-las de volta, mas também recuperar aquilo que tínhamos. Como Grupo Civil, temos que recuperar o que tínhamos neste país. Não estamos a inventar nada novo, uma vez que tínhamos até 1998 uma legislação que proporcionava alternativas em casos extremos.

Precisávamos de ser capazes de construir uma voz que não tratasse o aborto como um pecado, mas sim como um direito. Acho que estamos a tentar construir um diálogo, tendo em conta que estas leis são tão tendenciosas (…). Ao final, sem diálogo, nunca construiremos aquela democracia, ou aquela justiça e paz da que queremos falar, se não ouvimos todas as vozes.

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  Sara Garcia e membros do Grupo Civil protestando contra as leis anti-aborto na América Central (Fotografia de Agrupación Ciudadana por la Despenalización del Abort

Quem são os atores e forças políticas que estão a obstruir hoje em dia a justiça reprodutiva no El Salvador?

O caso da Beatriz (em 2013) permite entender de forma clara como as mulheres têm dificuldades para aceder à justiça reprodutiva. Ela era uma jovem de 22 anos, grávida com um feto anencéfalo, ou seja, que não tinha cérebro. Ela também tinha lúpus. Beatriz interpôs um processo cautelar porque não podia interromper a gravidez. Diversas organizações de direitos humanos apoiaram o processo. Contudo, o mesmo foi levado perante a Sala Constitucional do Tribunal Supremo, que atrasou a decisão durante 81 dias enquanto a vida de Beatriz se encontrava em perigo. Fizeram-na esperar 81 dias por uma resposta, e durante esses 81 dias diversos atores diferentes intervieram.

A Sala requereu uma opinião por parte do Instituto Nacional Forense, que chegou a conclusão que Beatriz deveria prosseguir com a sua gravidez porque a sua vida não estava em perigo. Esta decisão foi redigida pelo então presidente do Instituto, Miguel Fortin Magaña, que nunca escondeu a sua simpatia pelos pontos de vista da Opus Dei. O mesmo disse à imprensa que “a Beatriz pode sobreviver, ela está bem”. Isto não deixava de ser contraditório, uma vez que no hospital público onde se encontrava Beatriz uma equipa de 15 médicos tinha assinado um documento no qual asseguravam que era necessário interromper a gravidez. O Ministro da Saúde era da mesma opinião. Inclusive o diretor do hospital veio responder a Fortin Magaña: “o senhor trata dos mortos, nós tratamos dos vivos. Como pode alguém que atende aos mortos vir dizer se ela pode continuar a viver ou não?

Alem disto, estavam os grupos fundamentalistas, que chegaram ao extremo de dar conferências de empresa nas que diziam que ofereceriam chapéus ao filho de Beatriz para ocultar o facto que carecia de cérebro. Este nível de cinismo é difícil de imaginar.

Esta era uma mulher que contava com o apoio do Ministro da Saúde, que entendia perfeitamente a sua situação. Este caso demonstra quão difícil é para as mulheres ter acesso à justiça, uma vez que estes fundamentalistas conseguiram chegar a posições de poder relevantes. Estão nos meios de comunicação, e inclusive coludem com a Sala Constitucional do Tribunal Supremo, que apesar de ser respeitada noutras áreas, tem uma divida enorme para com as mulheres, os cidadãos e para com os direitos humanos em geral.

Ao final, Beatriz conseguir interromper a gravidez, mas só depois de ter esperado todo esse tempo. É importante refletir sobre este caso, uma vez que os obstáculos institucionais se deveram a uma ideologia fundamentalista que acabou por materializar-se em legislação e em políticas que são tanto absolutistas como absolutamente proibitivas.  

O governo do El Salvador tende a ser tratado pela comunidade internacional como sendo monolítico, mas que podemos dizer do role do poder judicial, do poder legislativo e do poder executivo como tais?

Sim, acho que é muito importante ter isso em conta. Estamos a falar dum sistema judicial que tem sérios problemas por resolver, mas tenho a certeza que este governo, que está agora no seu segundo mandato, tem tido desde o princípio a luta pelos direitos das mulheres como algo central para a sua visão política. Isto foi claramente demostrado através duma série de programas que foram implementados. E parece-me importante pôr essas contradições em evidência. O comportamento do poder judicial, e da Sala Constitucional em particular, que na minha opinião é lamentável, não pode ser estendido para classificar a legislatura, que é diversa e não dever ser generalizada. Medidas importantes foram tomadas (na legislatura). Por exemplo, no ano passado foi promovida por um deputado do partido de esquerda una iniciativa para modificar o Código Penal e aumentar o castigo pelos crimes de teor sexual (motivados por orientação sexual ou identidade de género). E isto permite-nos ver como há mudanças a ter lugar no país que são importantes, mudanças que nunca vimo antes – o tema da diversidade sexual e direitos das pessoas LGBT é outra divida ainda por pagar e deve ser mencionado. Existe sem nenhuma dúvida um esforço progressivo para promover estes direitos que foram historicamente negados.

Apesar de tudo, acho que a comunidade internacional – e também as organizações nacionais – devem continuar a defender estes direitos. Como disse antes, o tema do aborto tornou-se num tema politicamente perigoso de defender, mas que deveria ser virado ao contrário: o perigo político deveria ser para aqueles deputados que não estão a favor dos direitos das mulheres, para aqueles que não estão a favor de salvar vidas em risco. Precisamos de convertê-lo num custo político.

O atual panorama no Parlamento oferece oportunidades; a Presidente do Parlamento (Lorena Peña, do FMLN) está comprometida com a luta das mulheres pelos seus direitos. Acho que o facto de que os deputados do FMLN tenham um compromissos histórico para com os direitos humanos pode favorecer a discussão, o debate e a mudança da lei em 2016 – como um tema de justiça social e saúde pública. Dentro dos partidos de direita, sabemos que existem divisões, e que alguns dos seus deputados falaram sobre o tema e sobre temas de diversidade sexual.

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Fotografia de Agrupación Ciudadana por la Despenalización del Aborto

E o Zika? Como impactou o vírus Zika no debate sobre o aborto, e como avaluas as ações tomadas pelo Ministro da Saúde?

Perante a chamada emergência Zika, o Ministério de Saúde no nosso país respondeu com várias ações: informou a população dos riscos da gravidez quando existem altas probabilidades de contrair o vírus, recomendando às mulheres não engravidar nos próximos dois anos. Para facilitar o acesso das pessoas ao planeamento familiar, incentivou a distribuição de contracetivos, e está também a monitorizar e a prestar ajuda às mulheres grávidas que contraíram o vírus Zika. Até à data, nenhuma gravidez foi relacionada como causa de microenfcealia; não pudendo ser até Agosto de 2016 ser avaliado o impacto da epidemia. Ao mesmo tempo, campanhas para erradicar o mosquito Aedes aegpti, que transmite o Zika, foram intensificadas. O Ministro da Saúde confirmou que a atual legislação proíbe as mulheres infetadas com o vírus Zika de interromper de forma legal e segura a sua gravidez no sistema de saúde público.

Achamos correto que o ministro informe o púbico sobre os efeitos do Zika no feto quando uma mulher grávida contrai o vírus. Agora, consideramos que avisar as mulheres para não ficarem grávidas é insuficiente e dificilmente pode ser conseguido por diversas razões. Primeiro, e sobretudo, o estado deveria garantir a saúde da população, erradicando a doenças e riscos de contagio, se bem que a participação cidadã também é importante em conseguir tal propósito. A responsabilidade de não ficar grávida não deveria recair só sobre as mulheres, porque todas as gravidezes envolvem um homem que também deveria assumir responsabilidades. Também devemos considerar que no El Salvador 39% das gravidezes não são planeadas, sobretudo devido à falta de educação sexual e reprodutiva, difícil acesso à contracepção, e em muitos casos devido à violência sexual, abusos, incesto ou relações não consensuais, que muitas vezes ficam por castigar.

Esta situação pode criar sérios problemas de saúde no El Salvador, tendo em conta que o nascimento dum alto número de crianças com microcefalia requereria educação especial e serviços de saúde que o estado deveria garantir. Além disso, como noutros países da América Latina, podemos esperar um aumento no número de abortos ilegais realizados por mulheres que são incapazes de continuar a gravidez com deformidades fetais mas que não dispõem duma forma segura e legal de por fim à mesma - aumentando, desta forma, a mortalidade materna.

Pode ler a entrevista completa aqui.

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