
Duas mulheres juntam-se a milhares de mulheres negras de todo o Brasil num protesto contra a violência e a discriminação em Brasília, Brasil. 2015. AP/Eraldo Peres. Todos os direitos reservados.Em 2011, o cientista político de Harvard, Archon Fung, escreveu que "muitos de nós deverão voltar os olhos para a América Latina, e para o Brasil em particular, para entender as suas conquistas em termos de governança democrática". Com foco em mecanismos que ampliaram a participação dos cidadãos e da sociedade civil no processo político, ele concluiu que, quanto à "vasta gama de reformas democráticas ambiciosas e bem-sucedidas em todo o Brasil (...), simplesmente não há análogos com escala e profundidade semelhantes na América do Norte, na Europa, na Ásia ou na África” [1].
Naquele momento, o Brasil era visto por muitos estudiosos como um laboratório de experimentação democrática em participação cidadã e inovação institucional. O orçamento participativo, criado pelo Partido dos Trabalhadores (PT) em Porto Alegre em 1989, foi premiado pelas Nações Unidas em 1996 como uma "melhor prática", sendo classificado entre os 40 melhores programas de políticas do mundo. Em poucos anos, esta instituição participativa tornou-se a principal "exportação democrática" do Brasil e, até 2015, foi adotada em mais de mil municípios e em mais de 40 países[2].
Com a vitória do Partido dos Trabalhadores nas eleições presidenciais de 2002, práticas participativas foram adotadas a nível nacional e em grande escala. Um intenso processo de inovação institucional foi realizado, reformando as instituições existentes a fim de abrir espaço para as organizações da sociedade civil no processo político. Novos desenhos institucionais foram implementados, dando aos cidadãos voz e protagonismo na elaboração de políticas relevantes. A criação de um sistema nacional de participação social estava em processo, interconectando instituições participativas destinadas a canalizar as necessidades e opiniões da cidadania nos níveis municipal e estadual para as arenas de decisão política em Brasília. A mídia nunca mencionou isso, mas milhões de pessoas participaram desses novos canais institucionais entre 2003 e 2016.
Em 2016, o Brasil sofreu um processo de impeachment que pode ser facilmente definido como um golpe parlamentar, derrubando a sua primeira mulher presidenta, Dilma Rousseff, e levando ao poder um presidente não eleito e de maior impopularidade da história do país, Michel Temer. O Partido dos Trabalhadores foi substantivamente desmantelado após uma série de acusações de corrupção que enviaram vários dos seus principais líderes à prisão no contexto de um processo judicial obtuso que se assemelhou a uma cruzada política. Com a oposição enfraquecida, o Congresso mais conservador do Brasil conseguiu em pouco tempo revogar direitos constitucionais e excluir mais ainda trabalhadores, idosos, mulheres e outros grupos desfavorecidos. A situação é muito complexa para ser resumida, e uma pergunta requer ser respondida: o que aconteceu com toda a inovação institucional que visava expandir a participação cidadã no Brasil?
O Crescimento das Instituições Participativas
Para abordar a questão acima, forneceremos uma breve visão sobre o auge e a queda das duas principais instituições participativas de âmbito nacional no Brasil: os conselhos e as conferências nacionais de políticas públicas.
Os conselhos nacionais de políticas públicas são instituições participativas que existem previamente à Constituição Federal de 1988, embora tenham sido consideravelmente expandidos a partir daquele ano – e, em alguns casos, espraiados pela federação através de seus equivalentes estaduais e locais (os conselhos estaduais e municipais). Os conselhos focam em uma área política específica e são alocados no Executivo federal, sendo muitas vezes integrados a um Ministério ou Secretaria Nacional. Com reuniões regulares, os conselhos permitem que os representantes da sociedade civil ocupem um lugar na mesa junto aos membros do governo e da administração pública. Dependendo do conselho nacional, o seu papel consiste em definir a agenda do governo, formular políticas e elaborar planos nacionais, decretar resoluções normativas ou recomendações consultivas, elaborar estratégias e diretrizes para a implementação das políticas nacionais nos níveis estadual e municipal, além de acompanhar e supervisionar a execução dessas políticas. Os conselhos nacionais também trouxeram a prática do lobby e do advocacy para outro nível, tendo em vista que muitos deles designaram comissões para trabalhar em conjunto com o Legislativo a fim de avançar suas agendas e trabalhar pela aprovação ou rejeição de projetos de lei de acordo com as preferências dos grupos sociais por eles representados.
Em 2003, após Lula assumir a Presidência do país, os conselhos nacionais foram fortemente empoderados, ampliados e redesenhados. Um total de 17 conselhos nacionais existentes foram reformulados, tendo suas capacidades expandidas e seus objetivos redefinidos, incluindo atores da sociedade civil e aumentando o seu papel no processo político. Entre os conselhos nacionais reformulados estão os de saúde, assistência social, ciência e tecnologia e desenvolvimento rural. Além disso, 22 novos conselhos nacionais foram criados até 2010, como, por exemplo, os de segurança alimentar e nutricional, desenvolvimento social e econômico, cidades, segurança pública e promoção da igualdade racial.
Vários dos conselhos recém criados ou reformulados tratam especificamente de políticas para grupos minoritários, como mulheres, povos indígenas, jovens, idosos e pessoas portadoras de deficiência. A inclusão de grupos historicamente sub-representados no processo político é, por si só, uma notável conquista desse período de intensa inovação institucional. A presença de mulheres no Conselho Nacional de Direitos da Mulher, por exemplo, conduziu à resultados importantes, como a Lei Maria da Penha, uma inovadora legislação contra a violência doméstica. Da mesma forma, diversos grupos étnicos historicamente excluídos que participaram do Conselho para a Promoção da Igualdade Racial contribuíram para a formulação do Estatuto da Igualdade Racial, uma lei contra a discriminação e a desigualdade racial.
As conferências nacionais de políticas públicas seguem uma trajetória semelhante: não são novas, mas foram lentamente postas em movimento após a Constituição de 1988 e totalmente redesenhadas e ampliadas a partir de 2003. As conferências nacionais são processos deliberativos escalonados que reúnem a cidadania, organizações da sociedade civil, agentes privados, representantes eleitos, administradores públicos e outros atores sociais e políticos. Organizadas pelo Poder Executivo com o objetivo de coletar insumos para a elaboração de políticas nacionais, as conferências nacionais são estruturadas em torno de áreas políticas específicas e são abertas à participação nos municípios, onde são eleitos os delegados para as conferências estaduais e destas para a conferência nacional. Esta etapa final reúne os delegados eleitos nas etapas prévias e tem como objetivo a deliberação das propostas nelas aprovadas. O processo é concluído com a elaboração de um documento final contendo diretrizes para políticas públicas na área objeto da conferência.
Entre 2003 e 2010, uma média de 10 conferências nacionais ocorreram anualmente no Brasil, o que significa que milhares de conferências ocorreram nos municípios e centenas nos estados. Estima-se que cerca de cinco milhões de pessoas participaram das 73 conferências nacionais organizadas nesse período. A primeira Conferência Nacional de Segurança Pública realizada em 2009 envolveu um total de 524,461 pessoas, das quais 225,395 participaram presencialmente e 256,598 on-line. Em áreas políticas mais consolidadas, como saúde e assistência social, os processos foram ainda maiores. Em 2011, a Conferência Nacional sobre Saúde reuniu 600 mil pessoas em todo o país, enquanto a Conferência Nacional de Assistência Social envolveu cerca de 400 mil participantes em centenas de municípios.
Essa participação massiva teve um impacto marcante na forma como as políticas foram formuladas e decididas no Brasil durante esse período. Mais de 40 áreas de políticas públicas beneficiaram-se desses processos deliberativos escalonados, muitas das quais pela primeira vez objeto de políticas e programas nacionais, como, por exemplo, as de segurança alimentar e nutricional. Assim como nos conselhos nacionais, os grupos minoritários também encontraram nas conferências nacionais um importante canal para tornarem-se presentes e serem ouvidos no ciclo de políticas públicas. Cerca de um quarto de todas as conferências nacionais realizadas entre 1988 e 2009 trataram exclusivamente de grupos minoritários, como políticas para mulheres, políticas de juventude, políticas indígenas e políticas para lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT).
O impacto das conferências nacionais nos poderes Executivo e Legislativo não é desprezível. Políticas inteiras, como o Plano Nacional de Direitos Humanos 3, de 2009, foram redigidos no Poder Executivo com base em propostas feitas em conferências nacionais. Somente entre 2003 e 2008, diretrizes aprovadas nas conferências nacionais se fizeram refletir no Legislativo em um total de 2.233 projetos de lei, 163 propostas de emenda constitucional, 216 leis e 6 emendas constitucionais. Importantes alterações constitucionais – como as que incluíram o direito à alimentação entre os direitos sociais e tornaram a juventude sujeito de direitos – resultaram do trabalho conjunto dos conselhos nacionais e das conferências nacionais. Estas definiram a agenda legislativa nas mais diversas áreas. A Conferência Nacional de Educação de 2010, por exemplo, propôs que 50% das receitas provenientes da exploração da camada pré-sal fossem investidas em educação profissional e superior. Diretrizes da Conferência Nacional de Desenvolvimento Rural de 2008 foram refletidas em uma lei de 2009 sobre alimentação escolar. Os exemplos são abundantes.
O Rápido Declínio
Se compararmos a atividade das instituições participativas durante os mandatos de Lula (2003-2010) e Dilma (2011-2016), pode-se perceber claramente como o seu declínio já podia ser antevisto antes mesmo do impeachment. Dilma não era tão aberta e bem-sucedida como Lula em seu diálogo com os movimentos sociais, e várias organizações da sociedade civil sentiram-se deixadas de lado durante seus mandatos. Alguns afirmam que ela não gostava tanto de mecanismos participativos como seu antecessor e que, no que diz respeito às políticas públicas, ela preferia a técnica à deliberação. Por outro lado, as pressões sobre a primeira mulher presidenta do Brasil foram enormes. O teatro político que resultou em seu impeachment tornou muito difícil para ela governar o país. A instabilidade política e os ajustes fiscais foram rapidamente refletidos nas instituições participativas.
No final de 2015, a maioria das conferências nacionais sobre grupos minoritários foram convocadas para 2016 como uma única conferência conjunta sobre direitos humanos. A reunião de cinco diferentes conferências nacionais em uma única foi um dos primeiros sinais que os tempos estavam prestes a mudar. A partir daí a queda foi rápida. Desde que o vice-presidente Michel Temer assumiu a presidência, a estrutura do que um dia se vislumbrou como um sistema nacional de participação social tem ruído em pedaços.
Os conselhos nacionais tornaram-se um espaço de confrontos entre a sociedade civil e o Poder Executivo. Em seu segundo mês no poder, Temer retirou do cargo todos os representantes eleitos pela sociedade civil no Conselho Nacional de Educação. O Conselho Nacional das Cidades foi esvaziado em junho de 2017 por meio de um decreto presidencial que transfere as competências anteriores do Conselho para o Ministério e declara que os membros do Conselho devem ser nomeados apenas pelo governo. Entre as competências do Conselho que foram anuladas está a realização e a convocação das conferência nacionais das cidades. Outro decreto de abril de 2017 também alterou a composição e as funções do Conselho Nacional de Juventude, que já não pode mais eleger seus próprios membros. Com o enfraquecimento da participação da sociedade civil nesses conselhos, vários de seus representantes renunciaram ou simplesmente abandonaram seus mandatos.
Os cortes no orçamento público e a redefinição da agenda política do país têm afetado o funcionamento dos conselhos nacionais e ameaçado a sua própria existência. Sem recursos, vários conselhos nacionais não conseguem manter-se e financiar suas atividades, que pela primeira vez em 15 anos já não se realizam mais regularmente. Mesmo os recursos humanos foram diminuídos. No Conselho Nacional de Assistência Social, por exemplo, o governo reduziu a equipe técnica pela metade. Os cortes orçamentários têm impedido os conselhos nacionais de manter compromissos anteriores e cumprir seu papel na implementação e monitoramento de políticas públicas importantes que estão paralisadas em nome do equilíbrio fiscal almejado pelo governo[3].
As conferências nacionais (ou o que restou delas) tornaram-se um espaço de oposição e resistência da sociedade civil ao novo governo. As únicas três conferências nacionais que ocorreram em 2016 foram planejadas muito antes e acabaram se tornando atos de protesto contra o impeachment de Dilma Rousseff. Na Conferência Nacional sobre Assistência Técnica e Extensão Rural, os participantes protestaram contra os retrocessos nas políticas rurais realizadas por Temer enquanto ele ainda era presidente interino, ou seja, antes do final do processo de impeachment. Uma de suas primeiras medidas na presidência foi a extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário, que em anos anteriores permitiu uma ampla participação da sociedade civil na definição de políticas rurais.
Das poucas conferências nacionais que continuaram programadas para ocorrer em 2017 e 2018, a maioria perdeu o seu apoio social. Ao invés de mobilizarem-se e prepararem-se para as conferências como costumavam fazer, as organizações da sociedade civil passaram a questionar a organização e a legitimidade mesmas e vem se recusando a participar de algumas delas. O caso mais emblemático é a Conferência Nacional de Educação, que por lei deve ocorrer a cada quatro anos. As organizações da sociedade civil não apenas estão se recusando a participar da edição de 2018, mas estão também organizando uma conferência nacional alternativa, a Conferência Nacional Popular de Educação. Esta parece ser uma reação razoável depois que o governo restringiu o papel da conferência nacional na formulação da política nacional de educação e retirou das instituições participativas várias organizações históricas da área de educação.
E agora?
Enquanto há apenas alguns anos o Brasil tornou-se um estudo de caso para cientistas políticos interessados em participação social e inovações democráticas, o país pode agora tornar-se um exemplo de quão frágil essas inovações podem ser quando a própria democracia demonstra sintomas de fraqueza. Na medida em que os conselhos nacionais estão esvaziados e as conferências nacionais estagnadas, toda a estrutura participativa assegurada pela Constituição de 1988 encontra-se ameaçada e pode vir a ser desmantelada.
Os dois principais pilares sobre os quais as inovações institucionais no Brasil foram erguidas - uma intensa institucionalização e uma sociedade civil forte - não foram suficientes para evitar que, em pouco mais de um ano, um sistema de participação social em funcionamento fosse despedaçado. Enquanto leis tornaram obrigatória a adoção de instituições participativas, a sociedade civil é capaz de ser forte o suficiente para não participar delas quando elas não são mais democráticas. Mas quando a sociedade civil foi removida das instituições participativas, as leis não foram suficientes para mantê-las empoderadas.
Lições devem ser aprendidas - e urgentemente pelos países latino-americanos vizinhos que correm o risco de seguir um caminho similar – embora, certamente, não tão rápido. As inovações democráticas na América Latina têm sido iniciadas sobretudo pelo Estado. Onde a participação social depende de governos, a sociedade civil não pode fazer muito para salvar a democracia dos males das eleições e dos partidos. Além disso, a institucionalização pode garantir que as inovações participativas permaneçam no lugar, mas não podem assegurar que elas sejam sempre democráticas ou legítimas.
[1] FUNG, Archon. Reinventing Democracy in Latin America. In Perspective on Politics, December, 2011, p. 857 e 867-868.
[2] SINTOMER, Yves; HERZBERG, Carsten; ALLEGRETTI, Giovanni, and RÖCKE, Anja. Learning from the South: Participatory Budgeting Worldwide – an Invitation to Global Cooperation (Bonn: GIZ), 2010.
[3] Sobre a atual situação dos conselhos nacionais, ver:
http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=31421&Itemid=424.
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