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Argentina: sem plano ou estratégia para governar

Através de Alberto Fernández, Cristina Kirchner realinhou o kirchnerismo e o peronismo para vencer a eleição, mas sua manobra carece dos dispositivos que possibilitam traduzir essa articulação em uma gestão pública eficiente.

Adrian Rocha
6 Novembro 2020, 5.46
O atual presidente argentino, Alberto Fernández, participa de uma homenagem a Néstor Kirchner, o ex-presidente da Argentina (2003-2007) em 27 de outubro de 2020 em Buenos Aires, Argentina
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Manuel Cortina/NurPhoto/PA Images

A manobra de Cristina Kirchner de propor a Alberto Fernández a candidatura à presidência da Argentina foi sem dúvida astuta, pois permitiu a ela e seus aliados se rearticularem com o peronismo, que também precisava do kirchnerismo.

Essa necessidade mútua permitiu que Kirchner nomeasse Fernández, provavelmente por sua capacidade de gerar espaços de diálogo dentro do peronismo e com setores hostis ao kirchnerismo. Também por seu espírito negociador, ferramenta essencial para as negociações entre a Argentina e o Fundo Monetário Internacional (FMI).

Desse modo, a ex-presidente renunciou ao projeto autônomo vinculado à Unidad Ciudadana, coalizão criada em 2017. O peronismo, por sua vez, sabia que sem os votos de Kirchner seria impossível ganhar a eleição, então o jogo foi uma soma positiva. A partir desta implicação mútua, nasceu a Frente de Todos.

Excesso de táctica?

Antes mesmo de ser candidato, Alberto Fernández condensava esse dilema em uma frase sugestiva: "Com Cristina não basta, mas sem ela não é possível". De fato, desde o surgimento do kirchnerismo em sua versão cristã, os votos de Kirchner condicionam seriamente as chances do peronismo de ganhar eleições.

O curioso desse dilema é que ele também se aplica – embora em menor medida – aos votos do presidente da Câmara dos Deputados, Sergio Massa, que nas eleições gerais de 2015 obteve 21,39% dos votos. É evidente que a divisão do peronismo foi o que permitiu ao Cambiemos – espaço formado pelo PRO, a UCR e a Coalizão Cívica – alcançar uma competitividade efetiva.

A divisão do peronismo em 2015 se refletiu na aposta de ter Massa de um lado e o kirchnerismo – através de Scioli – do outro, além da situação interna do peronismo da província de Buenos Aires, que apresentava pré-candidatos como Julián Domínguez e Aníbal Fernández pelo lado kirchnerista (sendo este último o vencedor das eleições internas) e o chanceler Felipe Solá pelo lado massista. Essa divisão interna em Buenos Aires – também fruto de clivagens sociológicas surgidas no período 2003-2015 – teve um impacto decisivo na vitória da candidata do Cambiemos, María Eugenia Vidal, em uma eleição que surpreendeu a todos.

O peronismo e o kirchnerismo, que não são exatamente a mesma coisa, identificaram rapidamente esse problema. Os gestores de ambos os espaços sabiam que insistir nas divisões resultaria na permanência da coalizão Cambiemos (hoje chamada Juntos pela Mudança) no poder.

Diante dessa ameaça, o peronismo optou por fazer uma sutura em face de sua tradição: implementar uma inesperada e extraordinária virada realista para chegar ao poder. Nada que não tenha sido visto em outros cenários. Inclusive, as críticas foram muito fortes na eleição interna anterior à chegada de Menem à presidência. No entanto, uma vez que sua liderança foi consolidada, a maioria de seus críticos o apoiaram e muitos deles até ingressaram no serviço público.

As diferenças entre o menemismo e o kirchnerismo são, no entanto, notórias: Menem costumava evitar linguagem ideológica. O kirchnerismo, por outro lado, colore suas narrativas com tais simbologias. Embora alguns analistas minimizem o papel da ideologia na construção da identidade política, não se pode descartar esse elemento no caso do kirchnerismo, pois – apesar do pragmatismo, tanto nas versões de Néstor Kirchner como de Cristina – o kirchnerismo nunca dispensou recursos ideológicos. Assim, ao perder uma batalha, como a que travou contra o setor agrícola em 2008 ou nas eleições legislativas de 2009, redobrou a aposta, sempre com narrativas ideológicas: "a oligarquia", "a mídia hegemônica", entre muitos outros.

Embora o pragmatismo sempre tenha sido um instrumento de construção do poder no kirchnerismo, os aspectos ideológicos tiveram um papel relevante, principalmente no caso de Cristina Kirchner

Esse elemento ideológico é justamente o que impedia de identificar com clareza o pragmatismo do kirchnerismo, por um raciocínio de ordem excludente, como se os dois componentes não pudessem se complementar. No entanto, embora o pragmatismo sempre tenha sido um instrumento de construção do poder no kirchnerismo, os aspectos ideológicos tiveram um papel relevante, principalmente no caso de Cristina Kirchner.

Nesse sentido, as duras críticas de Sergio Massa e Alberto Fernández a Cristina Kirchner, uma vez afastados dela, nos fizeram pensar que seria impossível uma rearticulação entre o peronismo que representavam – especialmente Massa – e o kirchnerismo. Ao adotar fronteiras cada vez mais solenes à medida que se aproximava a impossibilidade constitucional de uma nova reeleição, o kirchnerismo passou a valorizar mais a ideologia do que o pragmatismo. Dessa forma, as críticas de Massa e do atual presidente foram percebidas naquele contexto como atos de blasfêmia, razão pela qual o capital político de Massa passou a se basear, justamente, em seu antagonismo ao kirchnerismo.

Dar poder a quem não conseguirá usá-lo, ou o paradoxo do poder intangível

Por fim, Cristina Kirchner fez uma jogada que ninguém esperava e conseguiu articular todo o peronismo sob a candidatura de um homem estruturalmente fraco: nunca geriu distrito, não faz parte de um Partido Justicialista com extensões territoriais sólidas (ao contrário de vários governadores) e pertence ao peronismo da capital federal, ou seja, ao menos peronista de todos os peronismos.

Ninguém duvidava da capacidade de articulação e negociação de Fernández, embora alguns duvidassem de sua margem de ação para domar o peronismo

A manobra de Kirchner foi taticamente impecável, pois ninguém duvidava da capacidade de articulação e negociação de Fernández, embora alguns duvidassem de sua margem de ação para domar o peronismo e, sobretudo, para construir o próprio poder além do kirchnerismo. Esse aspecto revela a astúcia da jogada de Kirchner, deixando claro que a ex-presidente queria que o peronismo dependesse dela.

Seguindo esse raciocínio, compreende-se então por que dotou Alberto Fernández de um poder que, para dizer a verdade, se esgota no formalismo da investidura. Um poder, no fim das contas, intangível e que, devido às condições específicas do sujeito, o supera política e simbolicamente.

Após dez meses de gestão, as consequências da estratégia de Kirchner já podem ser observadas: a capacidade e a qualidade da gestão de Alberto Fernández são inversamente proporcionais à qualidade da manobra de Kirchner. A tática foi genial para vencer a eleição, mas carece, pela própria natureza do poder, dos dispositivos que possibilitam traduzir essa articulação eleitoral em uma gestão pública eficiente, algo que Kirchner provavelmente não imaginou na hora de escolher Fernández como candidato. Ou talvez sim.

Hoje, não está claro quais são os números que lideram a resolução dos muitos conflitos que o governo enfrenta. Nem ministros, nem oficiais de segunda e terceira linha têm poder suficiente para resolver questões como grilagem de terras, criação de instituições destinadas a interferir na liberdade de expressão e a posição da Argentina sobre a brutal ditadura de Nicolás Maduro.

A ausência de uma liderança assumida e reconhecida por todos afeta a coordenação da gestão política da crise.

Verticalismo sem liderança ou o medo da síndrome do poder

Essas questões levantam sérias dúvidas a respeito de quem realmente governa na Argentina. Dúvidas que não podem ser esclarecidas unilateralmente, embora muitos assim o desejem: não é Cristina Kirchner quem está no comando, mas também não é o presidente.

Essa anomalia institucional e política em relação à identificação do poder real tem um impacto direto no peronismo: não é por acaso que a Confederação Operária Argentina (CGT) está dividida e que dentro da Frente de Todos existem graves tensões entre os próprios kirchneristas, bem como entre os peronistas “de Massa” e kirchneristas e entre prefeitos peronistas e o governador Axel Kicillof. Apesar desses problemas, não parece haver uma possibilidade de saída "via ruptura". Nem Massa nem Fernández estão dispostos a "romper" com o kirchnerismo.

Por outro lado, alguns sindicalistas indisciplinados e peronistas mantêm uma distância “ideal” do presidente. Configura-se assim um jogo furtivo de aproximação e distanciamento, cujo desfecho depende do momento da queda. Se for revelado nas eleições legislativas de 2021, as "diferenças" começarão a ser percebidas e o peronismo poderá se dividir novamente, abrindo-se assim as portas para a figura da oposição emergente: Horacio Rodríguez Larreta, o homem criptografado, um homem muito mais complexo do que se costuma supor, pois não sabe antagonizar, e esse é seu capital político.

O efeito da grande manobra de Kirchner está à vista. É sobre a intangibilidade do poder de um presidente que precisa falar cada vez mais, talvez porque a única coisa que exerce com segurança seja o uso da palavra. Isso leva ao paradoxo do poder intangível, que consiste em um sistema de tomada de decisões fragmentado, em que o presidente não possui o capital simbólico ou estrutural necessário para liderar um movimento que historicamente foi dirigido verticalmente.

O peronismo e o kirchnerismo começam a desafiar sua própria história e, talvez, o mesmo sistema presidencial de que tanto se beneficiaram, que se torna mais perigoso em cenários críticos como os que estão por vir.

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