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As raízes hidrológicas da crise Brasileira

Uma perspectiva histórica e geográfica da estrutura geopolítica do subcontinente sul-americano oferece pistas para entender a profunda crise que vive o Brasil e toda a região. Español English

Eduardo R. Saguier
7 Junho 2016
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Mapa da bacia do rio Amazonas. Wikimedia Commons. Alguns direitos reservados.

A crise atual do Brasil nao pode reduzir-se a um fenómeno pontual de mera índole política ou económica. As suas origens ou raízes devem procurar-se no seu passado histórico próximo e remoto, e na diagramação espacial e geográfica do seu expansionismo territorial, do seu colonialismo interno, e da sua malversada representação política e gestão empresarial.

Este passado histórico, condicionante da crise atual, não se deve reduzir exclusivamente às fronteiras brasileiras, uma vez que alcança também todos os seus vizinhos da bacia chaco-amazónica, e tem por tanto na sua matriz histórica uma dimensão espacial, que põe em dúvida a subsistência dos nacionalismo e chauvinismo sul-americanos, que não souberam ou não quiseram encarar obras de infraestruturas hidráulicas que ligassem as suas bacias interiores. Contudo, estas bacias foram exploradas por barragens hídricas para extrair eletricidade que era reenviada aos centros do litoral marítimo. No caso específico do Brasil, esta sobre-exploração hídrica foi em detrimento do meio-ambiente e da navegação fluvial, levando as autoridades a incorrer em omissões dolosas que deveriam ser punidas pela justiça brasileira.

História moderna

Agora bem, sabe-se através das discussões sobre as crises mundiais que ocorreram no passado histórico moderno, que estas consistiram em grandes movimentos bélicos, algumas vezes anteriores e outras posteriores a tremendas convulsões sociais e políticas, que sucederam na Europa, mas que se trasladavam às suas colônias na Ásia, África e América como válvula de escape para ordenar o seu próprio espaço interior” ((Villacañas Berlanga, 2008, 256).

Estas comoções políticas e sociais que provocara as ordenações do espaço interior europeu e que impactaram na periferia mundial foram, sucessivamente: a) as guerras de religião e a revolução inglesa e portuguesa, que culminaram com a Paz de Westfalia (1648) e com o nascimento do estado absolutista; b) as guerras napoleônicas e as revoluções emancipadoras latino-americanas que culminaram com a paz de Viena (1815) e a sua frustrada tentativa de restaurar o colonialismo espanhol na América; e c) as guerras mundiais do século XX, que terminaram na Paz de Versalhes (1918), que acabou com quatro impérios centenários (prussiano, czarista, austro-húngaro e otomano), e na Conferência de Yalta (1945), que liquidou o III Reich, a Itália Fascista e o Japão Imperial, mas que não chegou a desmembrar o populismo do Brasil (Varguismo), da Argentina (Peronismo) e da Venezuela (Perezjimenismo).

Enquanto à América Latina em especial, é também sabido que, como consequência da invasão napoleônica de Espanha e a prisão do seu monarca em Bayona, apesar de que a colônia hispano-americana se tenha fragmentado em múltiplos estados-nação, a colônia lusitana – ameaçada pela mesma invasão – preservou a sua integridade política devido à oportuna mudança da família real portuguesa para o Brasil, facilitada pela Armada Britânica.

Raízes mais profundas: o século XVII

Mas o que a historiografia latino-americana não investigou com igual paixão foi i impacto da Guerra dos Trinta anos (1609-1640) e da Paz de Westfalia (1648) na profunda participação do subcontinente sul-americano entre as metrópoles espanhola e portuguesa. Na realidade, como resultado de dita conflagração mundial, a Inglaterra entrou numa prolongada guerra civil (1640-1660) que derivou na execução do monarca Carlos I Estuardo em 1649, que repercutiu na rebelião da nobreza portuguesa contra Espanha e contra a Casa de Áustria (dinastia Ausburgo) e a favor da nascente Ilustração Inglesa e francesa, e que culminou meio séculos mais tarde com o Tratado de Methuen (acordo comercial de 1703 entre Portugal e Inglaterra) e na posição a favor da Grande Aliança anglo-saxã, e que culminou na Paz de Utrecht  (1713).

Devido à rebelião portuguesa, a nova dinastia da Casa de Bragança não só reconquistou os territórios nortenhos do Brasil e as colônias de África (Angola e São Tomé) que tinham sido invadidas pelos Holandeses sob o comando do Conde Maurice de Nassau, mas também aquelas sob o comando do Príncipe Regente e logo Rei Pedro II (1668-1706) e sob a influência ilustrada de Giuseppe de Faria, iniciou uma campanha expansionista ao interior do espaço colonial brasileiro que consagrou a lenda da “Ilha Brasil”, uma metáfora especial que ilustrava a ambição lusitana em confinar o Brasil entre dos grandes tios, o Amazonas e o rio da Plata (Panamá, Paraguai). Estes rios procediam, segundo a lenda, de um grande largo interior até então desconhecido, como era o caso no continente africano (Victoria, Chade), que os mesmos tinham vindo colonizando desde há dois séculos. Esse expansionismo territorial iniciou-se em 1669 com a fundação dum forte no confim do rio Amazonas com o rio Negro (depois conhecido como Manaos), e corou-se uma década mais tarde (1680) como a fundação da Colônia do Sacramento na margem oriental do Rio da Plata, frente ao porto de Buenos Aires.

Tratado e fragmentação da interligação fluvial

Estas fundações portuguesas terminaram por dinamitar o Tratado de Tordesilhas (1493) uma vez que o seu expansionismo no Amazonas se estendeu até à origem dos rios Putumayo e Caquetá, a oeste de Manso, em detrimento do jovem Virreinato da Nova Granada (atualmente a Colômbia); e em todo o espaço amazónico, chaquenho, sabánico e litoral pressionou Espanha (Conselho das Índias) ao extremo de alimentar, no decorrer do século XVIII, a perseguição política contra a Companhia de Jesus (ligada ao Papado) e contra as etnias que se resistiram ao seu êxodo forçoso (guerra guaranítica). Este infausto conflito desencadeou finamente a permuta da Colônia de Sacramento (que saqueava a prata do Potosí) em troca do espaço interior do Chaco-Amazónico, ocupado e recriado pelas Missões Jesuíticas, tendo esta operação de permuta sido confirmada em 1750 com o Tratado de Madrid, apesar de ser ter aperfeiçoado com a expulsão dos Padres jesuítas em 1767, através do Tratado de Santo Ildefonso de 1777, e com as subsequentes  Comissões Demarcadoras de Limites, que prosseguiram com a sua missão até ao início do século XIX.

As consequências históricas desses tratados e da política de expulsão dos jesuítas foram notoriamente negativas para a integração económica e cultural do subcontinente, uma vez que desamparou as etnias indígenas e decapitou a interconexão fluvial dos espaços amazônicos. Especialmente, desligou o espaço Neogranadino (atualmente a Colômbia) do espaço amazônico Peruano (Iquitos); o espaço amazônico da Audiência de Charcas (atualmente a Bolívia) do litoral da Governação do Paraguai; e os espaços paraguaio e litoral argentino e brasileiro (rios Paraguai, Panamá, Uruguai, Ivaí, Iguaçu, Tietê) das capitanias e estados orientais do próprio Brasil (Paraná, São Paulo, Minas Gerais).

Posteriormente, já no século XIX, a luta pela livre navegação dos rios exigiu novos tratados de limites (Convenção Fluvial de 1851 e numerosos acordos orquestrados pelo Barão do Rio Branco). E mais tarde, com o boom do caucho o expansionismo territorial brasileiro estendeu-se ainda mais a oeste, em detrimento das regiões amazônicas da Bolívia (Acre) e do Peru (Amuheya).

Saída da crise: integração na bacia chaco-amazônica

Por tudo isto, e sustentado na análise exposta no trabalho titulado o Hinterland Sul-americano no seu trágico labirinto fluvial, entende-se que a saída da atual crise brasileira não pode estar circunscrita a uma política conjuntural, a curto-prazo, economicista e autocentrada somente no colonialismo interno brasileiro (estados do Amazonas, Rondônia, Acre, Roraima e estados do nordeste). Pelo contrário, o governo do Brasil deveria reformular, juntamente com os países limítrofes, uma política de infraestruturas e de largo prazo que suponha uma reconfiguração espacial que acabe com a velha divisão continental, onde o que deve contar é a internacionalização e a integração da bacia chaco-amazônica.

Para maior claridade, esta bacia deve desagregar-se em meia dúzia de bacias, incluindo as bacias amazónicas bolivariana, peruana, equatoriana, colombiana, venezuelana e brasileira, a savana colombiana e venezuelana, e os chacos boliviano, paraguaio, brasileiro e argentino. Por sua vez, estas bacias, savanas e chacos devem interligar as suas vias e afluentes fluviais: a boliviana, os rios Madre de Dios, Beni e Mamoré; a peruana, os rios Ucayali, Urubamba, Huallaga, Marañon/Pastaza, Napo e Yavarí; a colombiana, os rios Putuamyo, Caquetá/APaporís; e Guiania/Vaupés; a brasileira, os rios Negro/Branco, Madeira, Guaporé, Cuiabá e Paraguai; e a `Paraguai-argentina, os rios Paraguai, Parná, Iguazú, bermejo Pilcomayo e Uruguai. Uma obra de semelhante envergadura e ambição emularia a epopeia levada a cabo pela Grã-Bretanha ao estrear o Canal do Suez em 1869, ou os Estados Unidos ao terminar em 1914 o Canal do Panamá, ou a da Alemanha ao inaugurar em 1994 a hidrovia Rhin-Mainz-Danúbio, que une o Mar Negro com o Mar do Norte e o Mar Báltico.

Em consequência, estas políticas de Estado devem proporcionar uma saída estratégica para todo o Hinterland da América do Sul, e devem ser acompanhadas por políticas de natureza biogeográfica, etnocultural e social-demográfica. Por tanto, projetos extractivistas como a rede ferroviária transoceânica na China só podem significar o retorno à politica do saqueio como foi a era do caucho, e o perpetuar da corrupção da atual classe politica. Pelo contrário, um megaprojeto fluvial integrado para todo o subcontinente proporcionaria esperança num mundo melhor e numa nova classe política e empresarial para todos os povos que compõem o Hinterland sul-americano e que mais cedo que tarde se estenderá ao litoral marítimo.

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