
Bukele e as gangues de El Salvador: existe um pacto informal?
Os recentes ataques do presidente Bukele à imprensa salvadorenha evidenciam até que ponto as revelações sobre suas negociações obscuras com as 'Maras' são verdadeiras.

O presidente de El Salvador Nayib Bukele negou veementemente ter trocado favores com gangues, conhecidas localmente como 'Maras', logo de acusações de vários funcionários públicos e uma pessoa que trabalha diretamente com o governo de que há um pacto informal entre setores do governo e as organizações criminosas.
Em 3 de setembro, depois que Bukele insistiu publicamente que seu governo não está trabalhando com as gangues, o portal salvadorenho El Faro publicou uma reportagem que mostra, através de entrevistas e documentos oficiais, que alguns representantes do governo se reuniram com membros das gangues, dentro e fora do sistema penitenciário, a fim de construir confiança e trocar favores. Um dos interesses seria garantir o acesso do partido político de Bukele, Novas Ideias, a áreas dominadas por gangues, com o objetivo de fazer campanha para as eleições legislativas e municipais previstas para fevereiro de 2021. O El Faro se refere a estas conversações como "negociações".
A reportagem do El Faro foi publicada alguns meses depois de lançado um relatório do International Crisis Group (ICG), em julho, que afirmava que a queda significativa dos homicídios em El Salvador estaria relacionada ao que o ICG chamou de "frágil entendimento informal", que poderia incluir um "pacto de não-agressão", entre setores do governo e as gangues. Em uma análise detalhada das taxas de homicídios, o ICG observa que os assassinatos em El Salvador diminuíram em até 60% desde junho de 2019, quando Bukele assumiu a presidência.
Um pacto informal
Paralelamente a estas investigações, o InSight Crime vinha realizando sua própria pesquisa sobre como as gangues haviam usado seu controle do centro histórico de San Salvador para expandir seu poder. Parte desse material focou no período em que Bukele foi prefeito de San Salvador (2015-2018). Como prefeito, Bukele procurou revitalizar o centro, enviando equipes de pessoas para negociar com representantes de gangues, assim como pelo menos um intermediário que negociou diretamente com seus líderes. As tentativas de revitalizar o centro foram bem sucedidas, o que lhe proporcionou um impulso para a presidência nas eleições de fevereiro de 2019.
Todas essas fontes afirmam que existe um pacto informal entre alguns setores do governo e as gangues: é uma tentativa de reduzir os homicídios
Antes da publicação do relatório, o InSight Crime investigou de que maneira Bukele estava negociando com as gangues, agora como presidente. Para tal, o InSight consultou meia dúzia de policiais e agentes de inteligência policial salvadorenhos, bem como um assessor para projetos de desenvolvimento e segurança, um assessor policial, dois agentes de segurança contra o crime organizado e um funcionário do governo que trabalha em bairros controlados por gangues e tem conhecimento direto das interações do governo com esses grupos. Como as fontes temiam represálias ou efeitos negativos em seu relacionamento com o governo atual, elas concederam entrevistas sob a condição de anonimato.
Todas as fontes afirmaram que existe um pacto informal entre alguns setores do governo e as gangues, mas relutaram em chamar os acordos de tréguas – como foi chamado um armistício anterior, que começou em 2012, entre as três principais gangues do país e que foi responsável por uma diminuição nos homicídios por um curto período, mas acabou se dissolvendo de forma sangrenta.
Mas todas as fontes acreditam em quatro coisas: que o pacto é uma tentativa de reduzir os homicídios; que é liderado por uma agência governamental que esconde suas negociações com as gangues; que depende de uma melhor comunicação entre os líderes das gangues no sistema penitenciário e aqueles fora das prisões; e que inclui algumas promessas de permitir campanhas nas áreas de influência das gangues.
Nenhuma delas considera que ações são ilegais, mas lhes preocupa a falta de transparência.
"Isso está sendo tratado em segredo", disse ao InSight Crime um policial que trabalhou durante anos na divisão do combate ao crime organizado, referindo-se ao pacto informal. “Tem que haver uma decisão das gangues para diminuir a violência. Mas por trás disso, tem havido conversas”, atestou.
Especificamente, todas as fontes afirmaram que o pacto é conduzido principalmente pela Unidade de Reconstrução do Tecido Social, entidade vinculada ao Ministério do Interior e dirigida por Carlos Marroquín, que chefiou uma unidade da prefeitura durante o governo Bukele e foi interlocutor nas conversas com gangues quando a prefeitura tentou revitalizar o Centro Histórico.
Marroquín inicialmente concordou em falar com o InSight Crime, mas depois não respondeu às inúmeras tentativas de discutir o trabalho da Unidade de Reconstrução do Tecido Social durante as tentativas de revitalização do centro histórico. Marroquín faz a maior parte de suas declarações públicas através do Twitter. Sua conta está repleta de imagens e vídeos dele e de sua Unidade de Reconstrução do Tecido Social distribuindo alimentos, oferecendo cortes de cabelo e pintando paredes de favelas.
“A satisfação de ver rostos felizes e gratos não tem preço”, escreve Marroquín sobre uma recente visita a sete áreas no centro de San Salvador. “Vou continuar trabalhando para trazer #AyudaALaPuertaDeTuCasa” (ajuda à porta da sua casa).
Como parte do governo nacional, a entidade hoje possui maior interação com projetos culturais, sociais, educacionais e de infraestrutura. Ela também é responsável pela implementação da fase “positiva” do Plano de Controle Territorial de Bukele, uma estratégia do presidente para combater as gangues.
“Esta se tornou uma forma de conter a violência”, disse uma das nossas fontes, o funcionário que conhece diretamente o programa. "Quando eles viram que estava funcionando a nível da comunidade, eles pensaram que poderia funcionar a nível nacional," alegou.
O que isso significa na prática é que a unidade coordena o trabalho do governo em comunidades controladas por gangues. Segundo a fonte, Marroquín dirige esse trabalho, o que lhe dá acesso às gangues das comunidades onde atuam. Marroquín tem a experiência de quando trabalhou com as gangues do centro histórico, o respaldo político do governo e a confiança dos grupos de que, através dele, podem obter programas sociais e econômicos que beneficiem essas áreas, incluindo pacotes de ajuda para amenizar a escassez causada pela pandemia do coronavírus – o que o torna o funcionário público ideal para o cargo.
“É uma troca”, disse o mesmo funcionário público. “Nós deixamos você entrar, mas apenas se você trouxer algo de valor para nós."
O acordo é informal: as gangues são as primeiras a receber benefícios do governo.
“É uma troca”, disse o mesmo funcionário público. “Nós deixamos você entrar, mas apenas se você trouxer algo de valor para nós. Pessoas ligadas a gangues são as primeiras a receber assistência."
É um padrão que figuras não governamentais também observaram.
“Mesmo antes de Bukele chegar ao poder, as equipes do prefeito lideradas por Marroquín trabalhavam com as comunidades”, disse Mario Vega, um pastor evangélico que trabalhou com gangues em San Salvador e arredores. “Foi uma comunicação indireta com as gangues por meio de líderes comunitários e familiares [dos membros da gangue]. Não lhes foi oferecido dinheiro, mas [houve] uma tentativa de oferecer apoio a longo prazo caso os homicídios diminuíssem. O que foi dito foi: 'Se vocês pacificarem a área, o governo fará investimentos de longo prazo'”, afirmou.
Vega acrescenta que os programas de assistência financiados pelo governo durante a pandemia do coronavírus estavam sendo administrados por gangues em bairros onde exerciam forte influência.
Jeannette Aguilar, especialista em segurança e pesquisadora de gangues, disse que também tinha conhecimento direto do programa de ajuda, que incluía que as gangues tivessem sobre os programas de assistência. Ela afirma que agentes militares lhe disseram que era necessário entregar os suprimentos para aliviar a devastação causada pelo coronavírus diretamente às gangues.
“É o acordo”, são as palavras que, segundo Aguilar, o comandante da polícia disse aos militares quando questionados.
A polícia e o exército salvadorenhos não fizeram comentários públicos sobre o assunto.
Comunicação nas prisões
Durante as tréguas das gangues, em 2012, as autoridades transferiram os líderes das três maiores facções – Mara Salvatrucha (MS-13), Barrio 18 Sureños e Barrio 18 Revolucionarios – das instalações de segurança máxima do país para outras prisões. Em parte, a manobra foi feita para que eles pudessem ver suas famílias e entes queridos com mais frequência, mas também para que eles pudessem restabelecer o controle sobre as operações e, assim, impor a trégua.
Quando a trégua foi dissolvida, em 2014, os líderes das gangues foram transferidos de volta para a prisão de segurança máxima, e o governo cortou as linhas de comunicação.
Entretanto, todas as fontes consultadas pelo InSight Crime, incluindo várias que entram e saem das prisões com frequência e falam com membros de gangues, disseram que desde que Bukele tomou o poder, a comunicação entre os líderes presos e aqueles que estão livres tem sido mais fluida. Fontes disseram que funcionários do governo estavam facilitando esta comunicação, levando mensagens para dentro e para fora das prisões ou facilitando o contato direto entre líderes nas ruas e líderes nas prisões.
O agente da divisão do combate ao crime organizado falou de interações "cara-a-cara" dentro das prisões (alegação apoiada por documentos obtidos por El Faro). Além disso, outra fonte disse ao InSight Crime que agora as mensagens de gangues estão sendo interceptadas com menos frequência, o que ela diz ser uma indicação de comunicações mais diretas entre os líderes nas prisões e aqueles que estão livres.
Facilitar o contato entre os presos e os que estão fora parece ser uma parte essencial do pacto informal. Quando o governo tentou restringir as visitas às prisões logo após o início da pandemia, as gangues supostamente reagiram com uma onda de violência que resultou em pelo menos 76 mortes em um período de cinco dias, no final de abril.
Fontes disseram ao InSight Crime que os assassinatos foram um sinal. Embora as mortes tenham sido inicialmente relacionadas a uma reação do Barrio 18 Revolucionarios após a captura de um de seus líderes, elas ocorreram em áreas predominantemente controladas pelo MS-13, a maior das três maiores gangues de El Salvador. O funcionário do governo que tem conhecimento direto do pacto disse que seus negócios foram feitos principalmente com a MS-13. (Os documentos citados por El Faro chegaram a uma conclusão semelhante.)
A fonte do governo com conhecimento do pacto, o agente da divisão do combate ao crime organizado, o agente de inteligência policial e um assessor da polícia disseram que uma das exigências das gangues era reverter a política do governo de misturar membros de grupos diferentes nas mesmas celas. Anteriormente, as gangues eram separadas por facções em diferentes prisões, permitindo-lhes manter o controle sobre suas operações e usar as prisões como base.
Esta mistura dentro das prisões havia começado durante a administração anterior, mas o governo fez um espetáculo deste processo após a onda de assassinatos de abril, quando expôs várias fotos chocantes de membros de gangues agachados em filas em uma prisão, bem como uma série de fortes declarações.
"A partir de hoje não haverá mais celas para a mesma gangue", escreveu o chefe da prisão Osiris Luna em um tuíte. "Misturamos todos os grupos terroristas na mesma célula em todas as prisões. O Estado tem que ser respeitado!"
Entretanto, o consultor da polícia disse ao InSight Crime que as fotos faziam parte de um show, uma vez que o pacto já estava em vigor.
"Eles já haviam chegado a um acordo", disse o assessor, referindo-se ao acordo do governo de voltar a segregar as gangues.
Em setembro, após a reportagem do El Faro, o governo organizou uma turnê midiática pela prisões para mostrar que estava cumprindo suas promessas de integrar as gangues nas mesmas celas. Após a publicação de mais imagens e vídeos, desta vez pela mídia internacional, o governo fez outras fortes declarações.
Estratégia anti-gangues ou campanha política?
De acordo com a fonte do governo que tem conhecimento direto das interações, assim como de fontes do combate ao crime organizado e policiais, parte do quid pro quo prevê que as gangues permitam que o partido de Bukele, Novas Ideias, faça campanha. O que isso significa na prática é que Novas Ideias teria o direito exclusivo de fazer campanha em áreas controladas por gangues, no período que antecede as eleições legislativas e municipais de fevereiro de 2021.
A falta de transparência torna o processo perigoso, e o aumento do capital político das gangues as torna em inimigos cada vez maior
Há poucos detalhes disponíveis, especialmente porque as campanhas se viram dificultadas pelo coronavírus, mas há antecedentes de tais arranjos. As gangues negociaram um acesso semelhante com os dois principais partidos políticos do país durante as eleições presidenciais de 2014.
O próprio Bukele aparentemente negociou o acesso a certos bairros quando concorreu à prefeitura de San Salvador, em 2015, e a reportagem do El Faro indica que o presidente continua a trocar favores por esse tipo de acesso, agora a nível nacional.
As eleições de fevereiro de 2021 são fundamentais para o Novas Ideias. Seu aliado, o partido GANA, tem poucos assentos no Congresso. E o legislativo tem sido um obstáculo para Bukele, que em fevereiro deste ano foi ao Congresso acompanhado de soldados para repreender os legisladores por se recusarem a liberar fundos para seu Plano de Controle Territorial.
Esse evento solidificou sua popularidade entre os salvadorenhos que desprezam o Congresso por sua corrupção e intransigência, mas o presidente foi criticado por ameaçar o Congresso com uma “insurreição”, caso não cumprisse sua vontade. A manobra também lhe rendeu uma reprimenda de um funcionário do governo dos Estados Unidos, embora o embaixador dos Estados Unidos em El Salvador continue sendo um defensor ferrenho de Bukele.
Em resposta à reportagem do El Faro, no Twitter, Bukele não fez referência à acusação de que estava “negociando” este espaço para a campanha de seu partido. Mas a fonte que tem conhecimento direto do pacto, a fonte da inteligência policial e o especialista no combate ao crime organizado disseram que esses favores políticos são o aspecto mais preocupante das supostas interações entre a equipe de Bukele e as gangues.
“Eles estão fazendo isso como uma estratégia política e não como uma forma de política pública”, disse o funcionário do governo. “O medo é que eles tenham o poder e não o governo – que a governança criminosa se torne oficial.”
Fontes governamentais e policiais afirmaram que as recentes mudanças na administração do sistema penitenciário indicam que pode haver alguma resistência dentro do governo ao pacto informal com as gangues. De fato, um dos que entrou no lugar de um funcionário afastado foi integrante da Unidade de Reconstrução do Tecido Social, a entidade de Marroquín.
Por sua vez, após a reportagem de El Faro, Marroquín disse que “não há fotos, nem vídeos, nem áudios. Não há nenhuma prova real”. E acrescentou, ironicamente, no Twitter: "E também sou o Batman e estou tentando salvar Gotham City".
No entanto, a polícia, fontes do combate ao crime organizado e do governo expressaram preocupação de que o programa comunitário ajudaria as gangues a expandir seu alcance político e criminal.
“Em vez de ser a solução”, disse o agente do combate ao crime organizado, “este se torna o problema”.
Além disso, as fontes disseram que a falta de transparência torna o processo perigoso, e o aumento do capital político das gangues as torna em inimigos cada vez mais fortes. Se as gangues podem explorar os assassinatos em seu benefício, disseram as fontes, nada pode ser descartado.
Este artigo foi publicado originalmente pelo InSight Crime em espanhol e traduzido pelo democraciaAbierta. Leia o original aqui.
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