
A Convenção Constitucional do Chile começa carregada de expectativas e símbolos de uma nova política
A energia dos protestos de 2019 se materializa com a eleição de uma mulher mapuche para presidir a primeira constituinte paritária do mundo

Os constituintes rompem com antigos cerimoniais, as mulheres apresentam uma proposta de regulamentação feminista que pode mudar o destino do novo Chile e, nesta fase inicial, parece que a reescritura das regras não será sem obstáculos.
Lenços verdes, "liberdade aos prisioneiros dos protestos" nas camisetas, cabelos vermelhos e azuis, gorros de lã, flores, diversas bandeiras e roupas tradicionais indígenas encheram o espaço. Símbolos e formas que fizeram parte dos protestos sociais no Chile voltaram a se encontrar, desta vez no antigo Congresso Nacional de Santiago, lugar exclusivo – até hoje – de solenidade e uniformidade. Assim, em 4 de julho, começou a primeira Convenção Constitucional paritária do mundo, que foi coroada com a eleição de uma presidente mulher e Mapuche: Elisa Loncón.
“Desta vez estamos instalando aqui uma forma de ser plural, uma forma de ser democrático, uma forma de ser participativo. Por isso, esta convenção que devo presidir transformará o Chile em um Chile plurinacional, em um Chile intercultural, em um Chile que não viola os direitos da mulher, os direitos das cuidadoras, em um Chile que cuida da mãe Terra, em um Chile que também limpa as águas contra toda dominação, pu lamnien (...) É possível refundar este Chile”. Com estas palavras, iniciou-se a convenção presidida por Elisa Loncón, que desde a infância foi classificada como "índia" e que, desafiando todos os preconceitos e precariedades econômicas, obteve um doutorado em Letras e se firmou como acadêmica universitária dedicada ao resgate e divulgação de Mapudungún e outros línguas dos povos originários.
Setenta e sete mulheres, junto com 78 homens, irão escrever a primeira constituição chilena elaborada por cidadãos comuns. A maioria dos constituintes que tomaram posse em 4 de julho provém de movimentos sociais ou organizações territoriais, tem em média 45 anos, nunca ocupou cargos de representação política anteriormente e está à esquerda do espectro político nacional.
A primeira reunião da convenção se mostrou promissora: a forma de fazer política já começou a mudar. Primeiro, o cerimonial de homens em ternos pretos saiu de cena para dar espaço a constituintes que caminharam ao lado de cidadãos comuns desde a Plaza de la Dignidad, como o movimento rebatizou a Plaza Italia, centro histórico de celebrações e protestos, até o antigo Congresso. Mais tarde, os constituintes suspenderam o hino nacional até cessar a repressão do lado de fora do edifício onde se realizava a sessão de abertura – expressão da origem de alguns constituintes que até horas antes também se encontravam nas ruas.
O silêncio por todas as vítimas do Estado chileno em sua história republicana foi outro dos símbolos que reafirmou o caráter diverso, multicultural e cidadão da convenção, bem como a apresentação de uma proposta de regulamentação feminista proveniente da sociedade civil. Mas o que coroou o dia foi a eleição de Elisa Loncón como presidente do órgão constituinte, que tomou posse ao lado de uma autoridade ancestral mapuche, a machi Francisca Linconao, também constituinte e presa sem evidências em 2017 junto com outros sete mapuches. Assim, a Convenção Constitucional apresentou a maior inovação política observada na política institucional chilena nas últimas décadas.
A primeira reunião da convenção se mostrou promissora: a forma de fazer política já começou a mudar
"Não podemos começar uma nova vida para a nação quando há pessoas feridas neste momento. Todos nós que estamos aqui, o povo independente, o povo invisibilizado por séculos, estamos aqui graças ao povo que está lá fora", disse Loreto Vallejos, constituinte da Lista do Povo, durante as quase duas horas em que a cerimônia foi suspensa devido à repressão policial. "O que está acontecendo é que existe uma situação tão forte e dolorosa, de tantas pessoas mutiladas e presas", reforçou Malucha Pinto, atriz independente eleita pelo Partido Socialista.
Em todos os momentos, dentro e fora do edifício da Convenção Constitucional, estiveram presentes as imagens dos protestos sociais que incendiaram o Chile em outubro de 2019, as mobilizações que até hoje – com mais ou menos intensidade – continuam a acontecer: as mais de 400 vítimas de cegueira total ou parcial devido aos disparos da polícia chilena, os quase 2.500 prisioneiros, o rosto de Fabiola Campillay – uma mulher golpeada no rosto por uma bomba de gás lacrimogêneo enquanto estava a caminho do trabalho – e os mais de 30 anos em que os cidadãos vêm exigindo uma mudança na Constituição de Pinochet e o cumprimento dos direitos sociais (tais como saúde, educação e garantias trabalhistas).
Com essa mesma épica no ar, as mulheres se mobilizaram para votar a favor de uma nova constituição em outubro de 2020 e, em 15 e 16 de maio, para eleger seus representantes na convenção.
No plebiscito que aprovou a Convenção Constitucional, mais de 50% dos eleitores inscritos foram às urnas, número que superou em muito a participação eleitoral que vinha diminuindo ao longo dos anos, o que modificou a composição do eleitorado e mergulhou os especialistas habituais em uma série de dúvidas sobre o comportamento da nova massa de eleitores.
“Esperamos estar presentes e poder influenciar um espaço de decisão de suprema relevância, para pensar coletivamente, para pensar na defesa dos territórios, para expor estas questões. É uma oportunidade de tornar visíveis nossos problemas, de mostrar que não seremos mais alheios às decisões que são tomadas a respeito de nossas vidas", a constituinte Natividad Llanquileo disse antes de ser eleita para uma das 17 cadeiras reservadas a representantes dos povos indígenas.
A mais de 1.100 quilômetros ao norte de Tirúa, na cidade de Coquimbo, Alejandra Vivanco – que foi candidata a constituinte pelo Partido Democrata Cristão – refletiu sobre os resultados do processo eleitoral: “Estou muito feliz porque a eleição dos constituintes reflete efetivamente qual foi o movimento da explosão social, reflete as diferentes perspectivas ou visões que possam existir”.
'A revolução será feminista ou não será'
A expectativa sobre esse processo é grande, não só por se tratar do primeiro órgão constituinte paritário do mundo, mas também por ter origem nas demandas cidadãs que se impuseram na rua e que obrigaram a um já deslegitimado Congresso Nacional – o parlamento chileno conta com apenas 8% de aprovação, segundo uma pesquisa de abril deste ano – a realizar uma sessão extraordinária em 15 de novembro de 2020 para chegar ao acordo político que iniciaria este processo constituinte.
A constituinte paritária é a grande chance de acabar com as desigualdades de gênero remanescentes de uma sociedade que não garante os mesmos direitos a homens e mulheres
“O que vivemos foi uma sensação de poder, da capacidade que os setores mobilizados têm quando há milhões de nós nas ruas ao mesmo tempo. Em três semanas conseguimos viabilizar o fim da Constituição de Pinochet, que estava em vigor há 40 anos. Em três semanas! E ninguém fez isso por nós”, lembrou em meio ao processo eleitoral Karina Nohales, líder da Coordenadora Feminista 8 de Março e candidata à Convenção Constitucional pela Lista dos Movimentos Sociais, que teve uma das maiores votações em seu distrito (14.630 votos), mas não foi eleita devido ao sistema eleitoral utilizado (método D'Hondt), que favorece a representação de listas.
Desde aquele 15 de novembro, as mulheres das organizações feministas voltaram todas as suas forças para que os 51,1% de mulheres que compõem a população chilena estivessem representadas de forma justa na participação política do órgão constituinte. Diálogos transversais, presença no Congresso Nacional, protestos em meio às restrições sanitárias da pandemia, panelaços que ressoaram em todos os cantos do Chile conseguiram com que, em 4 de março de 2020, fosse aprovada a igualdade de gênero na participação política entre homens e mulheres dentro do corpo constituinte, expressão da transversalização do discurso feminista que se instalou como eixo das demandas dos cidadãos.
Junto com "que a dignidade se torne habitual", "o Chile acordou" e muitos outros slogans que tomaram as ruas, "a revolução será feminista ou não será" marcou uma das linhas da explosão social.
A constituinte paritária é a grande chance de acabar com as desigualdades de gênero remanescentes de uma sociedade que não garante os mesmos direitos a homens e mulheres. “Sabemos que com paridade não entrarão apenas as feministas, mas também mulheres que são contra os direitos das mulheres, mas até elas entrarão graças a uma igualdade alcançada pelo feminismo”, disse Karina Nohales antes das eleições.
Segundo o Observatório Nova Constituição, 64,9% das eleitas têm propostas feministas em seus programas. Ou seja, embora sejam maioria, nem todas as mulheres eleitas são a favor dos direitos das mulheres. A candidata mais votada pela direita, a ex-parlamentar Marcela Cubillos, apresentou, em 2002, um projeto de lei que aumenta a pena de prisão para mulheres que abortam.
Antonia Orellana Guarello, feminista que foi candidata à convenção pelo partido Comunes – integrante da Frente Ampla – acredita que a convenção paritária estabelece um padrão diferente para todo o Estado. "O fato de o órgão constituinte soberano ser paritário é em si um sinal muito poderoso, e embora nem todas as mulheres da convenção sejam feministas, evidências anteriores mostraram que mesmo que não o sejam, elas podem ser votos prováveis ou mesmo aliadas em situações específicas,” afirmou.
A agenda de gênero não é a única que as mulheres trazem para a convenção. Após a marcha de 8 de março de 2019, o presidente Sebastián Piñera questionou a luta de grupos feministas pela desmilitarização de Wallmapu (território mapuche), por considerar que não fazia parte da agenda feminista.
Propostas de participação cidadã na Convenção Constituinte já estão sobre a mesa
Karina Nohales lembra desse momento: “Ninguém vai nos dizer quais são nossos problemas, ninguém vai nos dizer de que lugar estamos autorizadas a falar. Os diferentes feminismos já se libertaram daquilo que classicamente nos dizem que são questões de mulheres: podemos falar sobre direitos sexuais e reprodutivos, diferença salarial e violência sexista, mas não sobre outras questões. É claro que esses são nossos problemas, mas não são nossos únicos problemas. Sem dúvida, o que nos leva a nos mobilizar é a violência, em primeiro lugar, mas também a precariedade da vida: essa violência tem causas muito específicas, com perpetradores muito específicos, nas políticas econômicas, nas políticas materiais, o fato de não ter casa é estar condenado à violência... tudo isso vem sendo instalado. O movimento feminista foi prefigurativo da revolta e hoje não parece separá-lo desse fenômeno, como uma coisa à parte ou problemas específicos das mulheres”.
Uma revolta que aumentou a politização da população chilena, o que foi demonstrado não apenas na participação nos últimos processos eleitorais e no enorme número de candidatos que concorreram (3.382, dos quais 2.213 eram independentes), mas também na organização de assembleias locais que nasceram no calor da explosão social para protestar, levantar iniciativas cidadãs e – em alguns casos – apresentar ou apoiar candidaturas provenientes dos mesmos territórios ou organizações sociais.
“A redação de uma nova constituição faz parte de um processo constituinte que temos vivido e que nasceu nas localidades, nos bairros, nas cidades, nas ruas. Cada vez mais temos um pouco mais definido o país que queremos e como queremos vivê-lo, que queremos vivê-lo melhor. Acredito que o processo constituinte inspirou muitas pessoas de áreas não tradicionais da política: conselhos de bairro, assembleias, organizações feministas, ambientais. Dá para ver o entusiasmo das pessoas em querer participar, em querer contribuir com seus próprios conhecimentos", afirma Paola Araneda, integrante da Assembleia Territorial de San Borja San Isidro, organizada em um bairro que fica a poucas quadras do epicentro dos protestos: Plaza de la Dignidad.
E, de fato, um dos principais temas transversais das campanha dos constituintes foram os possíveis mecanismos de participação cidadã, devido à exigência de participação e influência política que os cidadãos manifestaram a partir de 18 de outubro de 2019.
Paola aposta no processo de transformação que, segundo ela, nasce das comunidades. “O grande papel que teremos nas ruas é pressionar, continuar a ver nas ruas o que as pessoas querem, precisam, exigem”, defendeu.
Propostas de participação cidadã já estão sobre a mesa, como um canal na televisão aberta para transmissão das sessões da convenção, instalação de conselhos locais que levantem propostas, prestação de contas dos representantes em seus respectivos territórios ou sessões da convenção em todo o país.
Os constituintes enfrentam um grande debate: como canalizar a participação de uma população que já está se organizando para influenciar, a todo custo, os destinos do novo Chile
"Daquele 'histórico', sabendo que mais de 2 milhões de mulheres estavam nas ruas de Santiago em 8 de março de 2020; é nisso que confiamos. A possibilidade de construir um programa entre milhares, sabendo que isso pode ser feito. Todos os anos, a Coordenadora Feminista 8M organiza grandes encontros com pessoas de todo o país, sem dinheiro, sem recursos... e sempre conseguimos. Temos confiança na nossa própria força”, afirma Karina Nohales, que anunciou após a eleição que se dedicará à organização das mulheres trabalhadoras.
Não é a única. Antes da instalação da Convenção, Alejandra Vivanco começou a articular a partir de sua organização, Chile Decentralizado, com advogados constitucionais para treinar e fornecer subsídios àqueles que irão participar do debate.
"Algo muito importante é a articulação com as organizações feministas e de mulheres que estão fora da Convenção, porque se a lei do aborto nos mostrou algo é que quando você faz uma lei sem apoio social, sem acordo, você fica entre a espada e a parede dos conservadores", disse Antonia Orellana umas semanas antes do início da convenção.
Na segunda-feira, 5 de julho, os 155 representantes dos cidadãos se reuniram para começar a redigir – por nove meses, prorrogáveis por mais três – a primeira constituição chilena escrita com participação popular. Mas desde o primeiro dia ficou claro que o processo não seria sem obstáculos. A partir das 15h daquele dia, a indignação tomou conta da grande maioria dos constituintes quando perceberam que as instalações do antigo Congresso não tinham computadores, microfones, condições sanitárias para a prevenção da Covid-19, nem papel higiênico nos banheiros – questões que deveriam ter sido resolvidas pelo governo, obrigado por lei a fornecer o apoio técnico, administrativo e financeiro necessário para a instalação e funcionamento da convenção.
Dois dias após o executivo se desculpar, os constituintes exigiram a saída do ministro secretário-geral da Presidência, Juan José Ossa, e a sociedade civil – universidades estaduais, a Associação Médica e outras instituições – colocou-se à disposição da presidente da convenção para auxiliar na realização da convenção. Na última quarta-feira, 7 de julho, começou a realizar-se no antigo Congresso a primeira convenção paritária da história.
Mas as regras ainda estão para serem escritas, inclusive as que governarão a própria Convenção Constitucional. Portanto, o primeiro debate que os constituintes já estão enfrentando é como tomarão decisões, como a discussão será organizada, que regras de transparência serão aplicadas e como canalizarão a grande demanda do momento: a participação de uma população que já está se organizando para influenciar, a todo custo, os destinos do novo Chile.
Esta reportagem pertence à série Cartas Chilenas, produto da aliança editorial entre #NuestrasCartas e o democraciaAbierta/openDemocracy.
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