
O que a cortina de fumaça da Covid-19 esconde
O pandemia tomou todas as manchetes e ofuscou outros eventos importantes que vêm ocorrendo em todo o mundo. Español

Quando ocorre um evento que interfere significativamente no nosso dia-a-dia, é comum que domine todas as conversas. Esse foi o caso da primeira pandemia (ou epidemia global) em várias gerações e que teve um impacto como nenhum outro em nossas rotinas.
A Covid-19, então, permeia não apenas nossas vidas, mas também nossas manchetes. Em 13 de março, o coronavírus já dominava todos os assuntos abordados pelo El País e, segundo a Vox, em 15 de março, quase 15% das notícias consumidas eram sobre o coronavírus. É muito possível que hoje, no final de abril, esses números sejam muito maiores.
Como resultado, houve informações superabundantes sobre o coronavírus, mas faltaram manchetes sobre outras notícias importantes que ocorreram nos últimos meses. A cortina de fumaça da Covid-19 está ofuscando o aumento do desmatamento, o aumento do aquecimento global, assassinatos de líderes sociais, obstáculos ao acesso ao aborto gratuito e seguro e muito mais.
Ameaças e assassinatos de líderes sociais e ambientais
Embora as manchetes sobre essa tragédia tenham sido silenciadas, os rifles não o foram. Na Colômbia, 15 líderes sociais foram assassinados desde o início da quarentena em 24 de março, segundo o Instituto de Estudos para o Desenvolvimento e a Paz, Indepaz. A Fundação Paz e Reconciliação, da Colômbia, denunciou violentas invasões por grupos armados ilegais em diferentes regiões rurais, além de assassinatos de líderes sociais e pessoas da comunidade afro. Cenas macabras foram denunciadas, como a descoberta de cinco corpos em sacos pretos no rio Tumaco, aparentemente assassinados por grupos armados ilegais. Omar e Ernesto Guasiruma Nacabera, dois índios Embera da comunidade Buenavista no Valle del Cauca, foram baleados e morreram a 20 metros da porta de sua casa.
Igualmente alarmantes são as alegações de erradicação forçada de plantações de coca em seis regiões da Colômbia, cinco das quais assinaram acordos de erradicação voluntária resultantes do Acordo de Paz de 2016 entre o governo colombiano e as FARC. A resistência do campesinato e os confrontos com a força pública já resultaram na morte de um homem de 22 anos; um confronto que parece que não vai acabar tão cedo. Por que iniciar uma missão tão controversa no meio de uma quarentena nacional?
A Colômbia não está sozinha. Em 8 de abril, Adán Vez, líder ambiental do México, foi assassinado em Veracruz. Como Camila Ruiz e Carmen Arcarazo bem alertam, “seu assassinato é um lembrete frio dos riscos que os defensores de direitos humanos continuam a enfrentar, apesar das restrições impostas pelo coronavírus”. Em 23 de março, dois atiradores assassinaram o advogado ambiental Isaac Medardo Herrera Avilés em Morelos. Também no Brasil, Zezico Rodrigues, um respeitado líder do povo Guajajara, caiu sob as balas dos madeireiros.
No Parque Nacional de Virunga, no Congo, 12 guardas florestais foram mortos em um ataque considerado o mais violento dos últimos anos. Embora membros de grupos rebeldes de Ruanda tenham sido responsabilizados pelo ataque, ainda não está claro quem está por trás.
A cortina de fumaça da Covid-19 está ofuscando o aumento do desmatamento, o aumento do aquecimento global, assassinatos de líderes sociais, obstáculos ao acesso ao aborto gratuito e seguro e muito mais
A crise climática continua
Meteorologistas estimam que este ano de 2020 está a caminho de ser o mais quente da história. Todos os recordes de temperatura continuam sendo quebrados e, embora seja verdade que a queda nas emissões durante as quarentenas e a desaceleração econômica em metade do mundo terão algum efeito específico, não será estatisticamente significativo.
A concentração de todas as ações na contenção do vírus abrirá caminho para a retomada das atividades baseadas na economia de carbono e, portanto, nas emissões de poluentes dos gases de efeito estufa na atmosfera. O Ártico continua a derreter, mas a notícia é que não houve casos de coronavírus na Groenlândia.
Desmatamento
As motosserras também não foram silenciadas. Segundo o Instituto Sinchi, foram registrados 12.958 pontos de calor que denotam desmatamento na Amazônia colombiana em março, um aumento de 276% em relação ao mesmo período do ano passado.
Enquanto isso, no Brasil, o desmatamento aumentou 51% durante o primeiro trimestre deste ano, em comparação com o primeiro trimestre do ano passado. O vice-presidente do Brasil, Hamilton Mourão, alerta que isso se deve à falta de vigilância no território.
Ataques contra a democracia
O que mais ficou oculto por trás da cortina de fumaça da Covid-19 foram os repetidos ataques à democracia em diferentes partes do mundo. O governo de Xi Jinping prendeu mais de 12 veteranos do movimento pró-democracia de Hong Kong, que desempenharam um papel crucial nos protestos do ano passado, detenções que passaram despercebidas pela magnitude de seu significado. É um forte ataque aos mais recentes esforços democráticos de Hong Kong.
Nos Estados Unidos, senadores e congressistas republicanos se esconderam atrás do véu da Covid-19 para promover agendas inconstitucionais anti-aborto. Trabalharam para forçar a proibição do aborto em oito estados, criando "desertos de aborto" em todo o país. Esses desertos tornam o aborto menos acessível, pois as mulheres devem viajar cerca de 260 milhas (mais de 418 km), geralmente fora dos estados em que residem, para ter acesso a um aborto seguro.
A crise política no Brasil, que pode ter repercussões significativas no futuro de Bolsonaro, também escapou às grandes manchetes. Há duas semanas, Jair Bolsonaro demitiu seu ministro da Saúde em meio à crise do coronavírus. Na semana passada, forçou a renúncia de seu ministro da Justiça, Sergio Moro, que era a figura mais popular em seu governo. Como explicamos no democraciaAbierta, “o que isso mostra é que Bolsonaro perdeu apoio maciço entre as alas centristas, dentro e fora do governo. Desse ponto de vista, parece que Bolsonaro está tentando se distanciar de seu próprio governo. A lógica por trás da estratégia pode ser blindar-se da culpa quando a recessão econômica pós pandemia atinja com toda sua força. Bolsonaro foi, em grande parte, eleito em promessas de crescimento econômico após sete anos de estagnação".
Rumores começaram a circular sobre uma possível demissão de Bolsonaro, já que ele está perdendo boa parte de seu apoio, tanto no establishment que o criou como entre os eleitores. É cedo para saber o que vai acontecer, mas os últimos abusos de poder para supostamente encobrir investigações criminais contra seus filhos e sua atitude irresponsável diante da crise do coronavírus estão colocando-o à beira do impeachment.
Por fim, soam os alarmes sobre as possíveis consequências antidemocráticas das medidas de vigilância telemática ou a limitação ou proibição da liberdade de movimento que foram impostas por quase todos os países do mundo como ferramentas para impedir a propagação do coronavírus. Embora um estado de emergência sanitária, como a que estamos enfrentando, justifique algumas dessas medidas, devemos estar atentos à forma como os governos estarão dispostos a usá-las quando a emergência terminar. Se a história nos ensina algo, é que a tentação autoritária ao poder é grande e, portanto, um retorno aos direitos de movimento e privacidade pode ser um passo difícil a ser seguido.
O que mais ficou oculto por trás da cortina de fumaça da Covid-19 foram os repetidos ataques à democracia em diferentes partes do mundo
A crise do coronavírus e suas consequências econômicas e sanitárias, por serem muito graves, estão ocultando todo o resto. E embora, tanto para quem lê como para quem escreve, isso possa parecer um tanto efêmero, porque eventualmente sairemos da pandemia e as manchetes voltarão a ser as mesmas de sempre, é importante não deixar de lado as outras grandes questões preocupantes que ocupam a agenda política.
Nossos líderes sabem que o coronavírus vai chegar às manchetes quase automaticamente e sabem que suas ações podem se esconder atrás da cortina de fumaça da Covid-19. Portanto, é mais importante do que nunca permanecer vigilante, continuar denunciando abusos e violência e denunciar os desvios autoritários que alguns governantes e grandes grupos de interesse estão adotando, aproveitando o fato de que ninguém os vê.
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