
Além da guerra biológica: a Covid-19 é uma questão de distribuição de terra na América Latina
A concentração de terras é uma das principais causas para os altos índices de pobreza, desigualdade econômica e polarização das estruturas políticas na América Latina.


A pandemia da Covid-19 é a causa direta da morte de centenas de indígenas na América Latina. Os chefes de governo que vêm falhando em controlar a disseminação do vírus, seja por negligência ou despreparo, são igualmente responsáveis pelas vítimas da doença. Porém, os governos anteriores que contribuíram para a persistência de um modelo econômico baseado na concentração de terras também devem ser responsabilizados pela catastrófica expansão do coronavírus entre os povos indígenas.
A disseminação da Covid-19 nas comunidades indígenas latino-americanas tem sido frequentemente comparada à “guerra biológica” do período da colonização. Mas essa pode não ser a descrição mais precisa.
De fato, a guerra biológica foi um dos fatores que permitiu a violenta dominação colonial sobre os povos originários. Naquele momento, doenças desconhecidas dizimaram e enfraqueceram comunidades, permitindo que os colonizadores impusessem um regime de violência, marginalização e exploração. A guerra biológica contribuiu para o estado de precariedade persistente por séculos sobre os povos indígenas.
Hoje, séculos após a invasão ibérica ao continente latino-americano, os povos originários já tiveram contato forçado com as doenças comuns aos não indígenas. Mas como resultado das estruturas sociais herdadas do período de exploração colonial, atualmente vivem em estado de falta de acesso à serviços de saúde básicos. A população indígena compõe 30% daqueles em extrema pobreza e vulnerabilidade sanitária na América Latina.
Em razão de um projeto de concentração de terras consolidado no período colonial, os povos originários têm por séculos lutado contra a invasão e expulsão de suas terras ancestrais, negligenciados por Estados alinhados com um projeto de grilagem de terras. Esse conjunto de violências resultou na vulnerabilidade dos povos indígenas a crises sanitárias, como a da Covid-19.
Um dos principais fatores por detrás desse regime de precariedade sanitária é a estrutura fundiária na América Latina: 1% das grandes propriedades ocupam 51% de toda a terra no continente
Enquanto o Brasil ultrapassa 80 mil mortes por Covid-19, dados oficiais registram que 502 óbitos foram de indígenas. Porém, uma vez que o vírus ainda se espalha progressivamente entre as comunidades, o impacto previsto pode ser ainda mais grave. Em alguns povos, como o da etnia Xavante, registraram-se 21 vítimas fatais do vírus e 168 infectados.
À medida que esses números entram nas contas oficiais, o impacto irreversível da perda de anciões indígenas é inumerável. No Brasil, o povo Mundukuru teve nas últimas semanas 12 vítimas fatais de coronavírus, 11 dos quais eram idosos. Os anciões são figuras de referência para as comunidades, já que carregam o conhecimento ancestral e exercem um papel de liderança na luta pela terra. Em países onde os povos originários vêm por décadas lutando pelo direito a suas terras ancestrais, os anciões são essenciais no engajamento e mobilização.
No outro lado da Floresta Amazônica, no Peru, esse quadro se repete. Embora Lima tenha decretado quarentena obrigatória logo no início da pandemia, o Peru tem hoje o terceiro maior número de vítimas fatais de Covid-19 no continente americano. Como uma das maiores populações indígenas na América Latina vive no país, esse grupo tem sido cada vez mais ameaçado pela pandemia.
Entre o povo Shipibo, da região amazônica do Caimito, 80% apresentaram sintomas da doença, entre uma população de cerca de 750 pessoas – mas apenas 20 pessoas puderam ser testadas. Entre os Shipibo koniboliving, na região de Ucayali, 58 vítimas fatais foram registradas até o momento. A subnotificação dos casos e a falta de materiais para teste pode estar acobertando uma catástrofe anunciada entre as comunidades indígenas na tríplice fronteira amazônica.
O aumento dos casos de Covid-19 entre os povos indígenas é também uma questão de terra. Para compreender essa relação, é preciso primeiramente entender como os povos indígenas na América Latina já eram mesmo antes da Covid-19 vítimas de doenças ‘índicadores de desigualdade’. Há, portanto, uma maior incidência de doenças respiratórias entre os indígenas, como a tuberculose. No Brasil, por exemplo, as doenças respiratórias são a principal causa de morte entre a população indígena.
Um dos principais fatores por detrás desse regime de precariedade sanitária é a estrutura fundiária na América Latina. Uma herança da distribuição de terras no período colonial, no presente 1% das grandes propriedades ocupam 51% de toda a terra no continente. Somente no Brasil, 1% das grandes propriedades detém 44% da terra, enquanto no Peru, esse 1% detém 77,03%.
Durante séculos, as comunidades indígenas foram vítimas da expansão de um modelo extrativista, que se expande e expulsa as comunidades indígenas, roubando suas terras ancestrais. Como apontado em um relatório da OXFAM de 2016, a concentração de terras é uma das principais causas para os altos índices de pobreza, desigualdade econômica e polarização das estruturas políticas na América Latina.
Apesar das medidas oficiais de distanciamento social e quarentena, garimpeiros seguem invadindo terras indígenas sem respeitar protocolos de saúde, disseminando o vírus e ameaçando as comunidades
Os povos e as lideranças indígenas têm sido por décadas violentados em conflitos pela terra. O Brasil é claramente um exemplo sobre como a organização política sobre a posse de terras contribui para esse cenário.
A Frente Parlamentar da Agropecuária é maior força política no parlamento brasileiro e atua ativamente para minar os direitos e condições de vida dos povos originários. Na atual legislação, a frente é composta por 257 parlamentares, aproximadamente 50% do parlamento, e estima-se que nos tenham promovido 1900 procedimentos legais anti-indígenas no Congresso Nacional nos últimos dois anos.
O processo de concentração de terras é fortalecido pelo desmantelamento de serviços básicos às comunidades, como os sistemas de saúde indígena. No Brasil, nas últimas décadas, a autoridade sobre a saúde indígena foi passada a diferentes órgãos, sem que medidas efetivas fossem tomadas para resolver problemas estruturais. Os apelos das comunidades para a descentralização do controle da atual Secretaria Especial de Saúde Indígena foram ignorados. Enquanto isso, o atual governo federal extinguiu conselhos e mecanismos de controle sociais que permitiam às comunidades a manifestação de suas demandas.
Na prática, a expansão global do coronavírus afetou indiscriminadamente populações ao redor do mundo. Mas na América Latina, o processo de concentração e grilagem de terras, apoiado pelos Estados, enfraqueceu a capacidade de resposta das comunidades indígenas à Covid-19.
Como um fator agravante da falta de estrutura e apoio do Estado, a tentativa de diversas comunidades de isolar-se para evitar o contágio foi violada por atividades relacionadas à grilagem de terras indígenas, como o garimpo ilegal em terras demarcadas. Apesar das medidas oficiais de distanciamento social e quarentena, garimpeiros seguem invadindo terras indígenas sem respeitar protocolos de saúde, disseminando o vírus e ameaçando as comunidades.
Alguns povos, como o Yanomami, no Brasil, estão engajados em denunciar essas atividades e proteger as comunidades, sem encontrar respaldo do poder público em sua defesa.
Os problemas da precariedade na saúde indígena e da concentração de terras são estruturais. Mas o custo humano irreparável da Covid-19 está acontecendo agora. Hoje, as ações contra a pandemia da Covid-19 só podem acontecer por meio da imprescindível alocação de recursos públicos. Contudo, no longo prazo, a principal ação para resolver a pandemia da pobreza entre as comunidades indígenas é assegurar de uma vez por todas o direito à suas terras ancestrais.
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