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Donald Trump: o homem errado

O presidente eleito Trump traz com ele a incerteza. A Europa e a América Latina devem aprender a defender, por elas mesmas, os ideais republicanos da revolução francesa, as liberdades e o cosmopolitismo. English Español

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Francesc Badia i Dalmases
18 Janeiro 2017
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O presidente-eleito Donald Trump durante o Chairman's Global Dinner. 17 de Janeiro, 2017. Washington. Fotografia AP/Evan Vucci. Todos os direitos reservados.

Donald Trump é o homem errado. Por mais que a responsabilidade nos recomende calma, não podemos deixar de reconhecer que a situação é grave. Anda que pareça pomposo dizê-lo, a grande ordem liberal, estabelecida depois da Segunda Guerra Mundial sobre a base dos princípios das Nações Unidas e da hegemonia Americana, está na corda bamba. Ambos constituem os vínculos que mantiveram a ordem internacional liberal atual, que agora perdeu a sua capacidade de atração e se encontra em decomposição. Nem a Rússia nem a China são capazes de estabelecer outros vínculos.

Incerteza e debilitamento

No momento em que a globalização alcança a maturidade e reclama com urgência o estabelecimento de instituições capazes de garantir a sua governabilidade, o seu máximo promotor e garante prepara o seu desmantelamento imediato, assim como a substituição dos tratados de livre comercio por um regime de tarifas. A elite mundial, esses 3000 homens (e algumas mulheres) que representam o 0.4% do 1% que acumula mais riqueza que o 99% restante – 8 pessoas possuem mais riqueza que o 50% mais pobre da humanidade, de acordo com o ultimo relatório da Oxfam – reúne-se esta semana em Davos, tendo como certa una única coisa: a incerteza.

Os elementos desta grande incerteza mundial são múltiplos: mudança climática, crescimento económico fraco, emprego precário, desigualdade profunda, modelo energético, ciber-segurança, terrorismo jihadista, desprestigio da democracia, culpabilização das elites, ataques ao establishment, antipolítica, populismo, e, obviamente, o casal de moda: o Brexit e Trump. Ninguém previu que a queda da ordem anglo-saxónica fosse tao caótica, nem que fosse ativada por uma implosão autoinfligida.

Mais além dos Estados Unidos, os dois grandes espaços de prosperidade e construção de liberdade no Ocidente, como foram a Europa e a América Latina, debilitam-se. O projeto europeu de paz e prosperidade, construído passo a passo durante 60 anos sobre a base da unificação económica e o desaparecimento das fronteiras internas, como passo prévio para a unificação política, foi traído pela arrogância e pelo sentimento de superioridade dos Britânicos. Theresa May, primeira-ministra do Reino Unido, acaba de anunciar que, em vez de continuar a disparar contra o pé, talvez seja melhor disparar diretamente contra a cabeça. Chamaram-lhe Brexit Limpo. O seu ministro das finanças, chegou mesmo a ameaçar com converter o Reino Unido num paraíso fiscal, se Bruxelas não lhes der o que querem. Certamente, a gravidade do Brexit foi subestimada.

"Ninguém previu que a queda da ordem anglo-saxónica fosse tao caótica, nem que fosse ativada por uma implosão autoinfligida."

Por outra parte, as instituições de integração latino-americanas vivem horas baixas. A Colômbia, Venezuela, Brasil e a Argentina, que estão concentrados em manejar a suas respetivas crises internas, olham-se ao espelho. E o México, que não foi capaz de consolidar, durante os anos de prosperidade do NAFTA, o estado de direito no seu território, vê-se agora diretamente ameaçada por um vizinho do norte agressivo, hostil, anti-imigrante, precisamente no momento em que Peña Nieto, o seu presidente mais fraco, se debate entre a irresponsabilidade e a irrelevância.

Erro de casting

A perceção generalizada sobre o Donald Trump candidato, confirmada infelizmente durante o seu turbulento período como presidente-eleito, é que o seu perfil não cumpre com os requisitos mínimos para o cargo. Qualquer que tenha tido responsabilidade na gestão de organizações sabe que um erro de casting na direção pode ser fatal e levar, se falharem os estabilizadores, a organização à ruina. A realidade é que Trump não teria superado nenhum painel de seleção profissional, tendo em conta que não cumpre com praticamente nenhum dos requisitos necessários para o cargo.

Tem experiencia de governo? Não, nenhuma. É paciente? Não, tem um carácter impulsivo e devastador. Sabe ouvir? Não, não ouve o que não quer ouvir. É reflexivo ou compreensivo? Não, tendendo a prescindir daqueles colaboradores que se lhe oponham: desde os tempos do seu papel no programa de televisão “O Aprendiz”, “estás despedido” é a sua frase favorita. Trabalha em defesa da inclusão, respeita a diversidade? Não. Ataca os muçulmanos, os mexicanos, aos que chama de “bad hombres”. Respeita as instituições de controlo da democracia e um jornalismo livre? Longe disso, tendendo a atacá-lo. Na sua última – e única conferencia de imprensa nos últimos 6 meses – negou a palavra à CNN, chamando-lhe “fake news”, e apelidando o Buzzfeed de um “monte de porcaria”.

Em Trump preocupa sobretudo que confunda a governação com os negócios, e que aplique a sua lógica executiva de um jogo de soma zero, e o seu hábito de fechar negócios com um apertão de mãos, sem antes ter lido o contrato. Despreza os políticos profissionais, quem considera gente proclive a fechar negócios ruinosos, que levaram os Estados Unidos a pagar sumas desmedidas por coisas que não valem a pena, como o ObamaCare ou a NATO. Apresenta-se como uma pessoa que saberá poupar, tanto a nível doméstico como internacional, e diz de si mesmo que será o “maior produtor de postos de trabalho que Deus alguma vez criou”.

Dele dizem que não lê os relatórios, que sofre de deficits de atenção, que se impacienta rapidamente, que só se deixa guiar pela intuição, e que recorre constantemente à improvisação. Como administrará a sua primeira grande crise? De que forma o afetará o seu evidente conflito e interesses? Até onde chega o kompromat em mãos russas? Demasiadas incógnitas, demasiada incerteza.

Nunca ninguém com um perfil tao inadequado chegou tão alto.

A hora de governar

Nunca ninguém com um perfil tao inadequado chegou tao alto. Governar numa democracia supõe o contrário: confiar na equipa, escutar, ler os relatórios, contrastar opiniões, ceder, chegar a entendimentos, evitar conflitos e ter sempre em mente o interesse geral, por cima dos interesses particulares (ou familiares neste caso). Mas saberá Trump governar? Evitará o nepotismo? Quanto tempo permanecerá no cargo?

A administração Trump promete ser o maior teste de stress ao que alguma vez se submeteu a democracia americana. Muitos confiam que as instituições democráticas aguentem a investida. Que, uma vez em Washington, o imenso poder institucional do establishment acabará por se impor ao poder pessoal do presidente, moderando-o, tanto em relação as formas, como em relação ao conteúdo. Washington não é Nova Iorque, e as coisas interpretam-se de forma diferente em função de se se está na Casa Branca ou na Torre Trump.

Os estabilizadores têm que funcionar. A maioria absoluta da que dispõe o Partido Republicano no Congresso e no Senado podem ser um fator de governabilidade, pelo menos até às eleições que terão lugar daqui a dois anos. Permaneçamos confiantes que, chegado esse momento, a curva de aprendizagem do presidente menos preparado da historia tenha chegado a bom porto, e que tenhamos um Donald Trump contido.  Até que não comece a governar, resta-nos dar-lhe um ínfimo beneficio da duvida. Ao fim e ao cabo, o que expressa nos seus Tweets são as suas opiniões pessoais, e não as suas opiniões políticas. Quanto antes se dê conta que não pode governar com mensagens de 140 caracteres, melhor. Talvez Trump acabe por converter-se num presidente popular e respeitado? Alguns querem acreditar nisso, ainda que saibam que, como lhes dirá qualquer diretor de recursos humanos, o comportamento passado é aquele que melhor antecipa o comportamento futuro.

"A administração Trump promete ser o maior teste de stress ao que alguma vez se submeteu a democracia americana."

Seja como for, uma vez terminado o show em que se converterá a tomada de posse, incluindo a primeira dança, – veremos neste momento o Donald Trump mais narcisista, entusiasmado por protagoniza o melhor reality show alguma vez imaginado –  chegará a hora de Trump governar.

"Perante o ensimesmamento americano, já não há desculpas para não assumirmos a responsabilidade de ser livres."

Responsabilidade Europeia e Latino-americana

Mas a insólita eleição de Trump abre tantos interrogantes, e tao sérios, e encheu de tanta incerteza os governos, começando pelos europeus e latino-americanos, que a ansiedade no ar é percetível. Devemos preparar-nos para viver grandes sobressaltos. Será este o momento para nos fortalecermos internamente? Para reforçar a União Europeia, deixando de lado os nacionalismos e assumir como valentia um futuro comum? De que a América Latina dê um passo mais na consolidação das suas democracias e culmine as suas transições com êxito? Tarefa difícil, tendo em conta as divisões e rivalidades internas em ambos continentes. Mas, perante o ensimesmamento americano, já não há desculpas para não assumirmos a responsabilidade de ser livres.

Hoje sabemos que o fim da história foi uma ilusão. Confirma-o Donald Trump, o homem errado. Oxalá não passe de um acidente da historia. Mas os anos 30 do século passado não se podem repetir. Nestes momentos históricos, a Europa e a América Latina devem saber procurar aliados dentro dos Estados Unidos – existe uma enorme oposição interna – e não abandonar a América liberal à sua sorte. Mas a Europa e a América Latina também devem aprender a defender, por si sós, os ideais republicanos da revolução francesa, as sociedades abertas, as liberdades, o cosmopolitismo. Quando acordar do seu pesadelo, o amigo americano agradecer-nos-á.  

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