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No Brasil, a polarização alimenta-se a si mesma

Marina Silva e José Gustavo, porta-vozes nacionais da Rede Sustentabilidade, defendem que o seu trabalho vai no sentido de quebrar a polarização no Brasil. English Español

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Marina Silva José Gustavo Francesc Badia i Dalmases
5 Outubro 2016
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Marina Silva e Zé Gustavo, porta-vozes nacionais da Rede Sustentabilidade. Foto: Rede Sustentabilidade. Todos os direitos reservados.

Francesc Badia: estamos em São Paulo com a Marina Silva e com o José Gustavo, porta-vozes nacionais da Rede Sustentabilidade. Muito obrigado por receberem a DemocraciaAberta. A primeira pergunta refere-se ao momento político que vive o Brasil, que tem uma parte de legalidade, mas que também apresenta um déficit de legitimidade. Isto produz uma tensão política adicional e talvez acabe por consolidar uma serie de retrocessos que já vinham do governo anterior, mas que com esta mudança política acabaram por acentuar-se. Que lhes parece esta situação?

Marina Silva: vivemos um momento muito difícil no Brasil. Porque a crise econômica tem como base, no meu entendimento, uma crise política. O Brasil escolheu os políticos errados, não tomou as medidas econômicas necessárias para lidar com a crise de 2008. Para manter a popularidade e ganhar as eleições em 2014, Dilma cometeu os mesmos erros. Até há pouco tempo o Brasil estava perto do pleno emprego. Agora temos 12 milhões de pessoas sem empregos. Éramos um país em que o governo tentava manter os juros baixos, mas agora os juros estão acima dos dois dígitos. Nós, que depois de um esforço tremendo a partir do plano real conseguimos estabilizar a economia e controlar a inflação, estamos com uma inflação também acima de dois dígitos. Nós, que conseguimos a duras penas ter algum equilibro fiscal, estamos com um déficit que compromete toda e qualquer capacidade de investimento, inclusive em setores essenciais que hoje estão em crise. 

Tudo isto aconteceu por causa de decisões políticas erradas de um governo que no meu entendimento, é a outra face da moeda do atual governo de Michel Temer. O PT e PMDB ganharam as eleições juntos, governaram juntos. Temer não fez uma única crítica aos problemas do Governo de Dilma. É como se fosse apenas virar a moeda para o outro lado. Prova disto foi a tentativa feita por parte da Presidenta Dilma para nomear o ex-presidente Lula como Chefe da Casa Civil para tentar ter uma liderança política forte que lhe permitisse resolver a crise política. O próprio Lula disse que o seu Ministro da Fazenda, com a autonomia para escolher sua equipe, seria Henrique Meireles. O mesmo escolhido por Temer para ocupar o posto. Os retrocessos aconteceriam igualmente se fosse Dilma em vez de Temer no poder. 

A chapa Dilma/Temer ganhou a eleição sem apresentar um programa de governo e mentindo à sociedade brasileira, impondo coisas que não foram legitimadas no debate político, aliás foram negadas durante as eleições.

Vivemos um momento dramático no meu entendimento. O impeachment não é um golpe, já que está previsto na constituição, ou seja, cumpre a legalidade, mas não alcança a finalidade de passar o Brasil a limpo. A continuidade deste governo liderado por Temer não tem nem credibilidade nem popularidade para fazer uma transição nestes dois anos e resolver os graves problemas do Brasil. A chapa Dilma/Temer ganhou a eleição sem apresentar um programa de governo e mentindo à sociedade brasileira, impondo coisas que não foram legitimadas no debate político, aliás foram negadas durante as eleições . Não tem credibilidade inclusive devido a corrupção, algo em comum ao PT. Como pode este governo levar a cabo reformas? É provável que a crise aumente de magnitude no futuro, com Temer no governo e o PT na oposição. 

José Gustavo: a minha sensação é que a ideia de que há um tensionamento no Brasil hoje faz parte de uma narrativa que tenta convencer os cidadãos que os problemas começaram agora, que tenta publicitar o que se fez bem e oculta o que se fez mal, quando na verdade esta é uma situação crítica que já vem de longe. Tem sido investigado a possibilidade de que Dilma, nas eleições de 2014, tenha financiado a sua campanha com desvios de dinheiro de empresas públicas, algo que no Brasil é crime. E, se houve crime, o mandato de Dilma/Temer não é legítimo. A narrativa que se coloca agora baseia-se em esquecer os erros do passado, esquecendo a lógica do que aconteceu nos últimos anos. A sensação deste tensionamento para mim está muito ligada ao fato de que a política cada vez mais afastada da sociedade civil, independentemente de quem esteve no poder nos últimos anos. Perdemos a proximidade que tínhamos entre as instituições políticas e a sociedade. Prova disso foi o que aconteceu ontem no Brasil, uma tentativa de anistia aos políticos que fizeram Caixa 2, algo totalmente contrário ao que exige a sociedade: a luta contra a corrupção, contra a captação ilegal de recursos e a impunidade dos políticos. Só uma nova eleição poderia reaproximar a sociedade das instituições políticas. 

Marina Silva: aliás, temos pesquisas que dizem que 32% dos brasileiros acham que o problema mais grave do Brasil é a corrupção; 16% acham que o problema principal é a saúde e o desemprego. E mesmo assim, produzem-se constantemente manobras atrás de manobras para tentar inibir a operação Lava Jato e tentar anistiar os que cometeram crimes eleitorais. Por isso, na minha opinião, o melhor caminho teria consistido em cassar, – ainda que o impeachment não seja golpe – Temer e Dilma e convocar novas eleições, onde teríamos uma representação dos partidos e das suas lideranças, que seriam obrigadas a dizer o que pensam fazer sobre a crise. Se a sociedade quiser ir pelo caminho do populismo, seja de esquerda ou de direita, é a sua decisão. Se a sociedade quiser uma nova síntese, é algo que lhe compete. Mas isto só será possível com uma nova eleição a partir de uma decisão do Tribunal Superior Eleitoral. Na minha opinião, uma proposta de emenda à constituição para novas eleições seria um oportunismo e forma de anistia. 

FB: Um tema transversal que afeta especialmente o Brasil neste período em particular, é esta imagem de polarização entre dois pólos, dinâmica esta que não deixa despontar uma terceira via. Que lhes parece a dificuldade de romper a dialética bipolar que impera hoje em dia no Brasil? É esta polarização tão fácil de entender que não permite a entrada de um discurso mais matizado e elaborado, dirigido aos problemas reais e não aos holofotes políticos?

 O nosso trabalho vai no sentido de quebrar esta polarização e de procurar um novo conteúdo político. Não uma nova forma ou discurso, mas sim uma nova praxis política.

MS: A polarização alimenta-se de si mesma. Os dois grandes partidos que protagonizaram esta polarização até há bem pouco tempo eram o PT e o PSDB. Neste momento estamos perante o início de um deslocamento na direção do PMDB e o PSDB está perdendo, pelo menos momentaneamente, esse lugar de pólo principal. Essa polarização tenta evitar o surgimento de qualquer força que possa constituir uma alternativa à mesma, e qualquer coisa para existir terá que se transformar num satélite de um dos pólos. Então, o PT tem o os seus satélites, o PSDB tem os seus, mas agora está na condição de satélite do PMDB. O nosso trabalho vai no sentido de quebrar esta polarização e de procurar um novo conteúdo político. Não uma nova forma ou discurso, mas sim uma nova praxis política que permita quebrar os velhos paradigmas da esquerda e da direita que hoje, pelo menos na realidade atual do Brasil, já não dizem muita coisa. 

O PT dizia-se de esquerda, mas aliou-se ao PMDB. Elegeu-se junto com Eduardo Cunha, apoiou o Cunha e diversas figuras mais próximas da direita, chegando ao ponto de fazer alianças com muitos deles, inclusive com o Maluf. Então, esta história de direita e esquerda no Brasil perdeu totalmente o seu conteúdo fático, o que existe é apenas a versão que é criada pelos dois pólos, destes dois partidos da social-democracia. O PT é um partido social-democrata de cunho popular, com a participação de intelectuais e alguns empresários. O PSDB é um partido social-democrata formado maioritariamente pelo setor empresarial, por alguns intelectuais e com pouco seguimento social. Mas são ambos partidos social-democratas. 

Estes partidos nunca criaram um ponto de contato entre eles, e para governar sozinhos, para reinar sozinhos, fizeram alianças. Inclusive entregaram causas que são muito caras para a sociedade, como a questão indígena. O governo da Dilma foi o governo que menos demarcou as terras indígenas, foi o governo em que se mudou o código florestal e regularizou 40 bilhões de hectares de terras degradadas, além de ter realizado os investimentos mais nefastos a nível ambiental, tal como a hidroelétrica de Belo Monte, sem atender os requisitos sociais e ambientais obrigatórios. Esta polarização tem muita força no Brasil e não é fácil quebrá-la, até porque estes polos têm uma força gravitacional tão grande que têm o poder de decretar a realidade. Não se trabalha, por isso mesmo, a partir da realidade, mas sim a partir das versões que são reproduzidas por estes partidos. A campanha de 2014 foi um retrato disto. Uma campanha altamente violenta do ponto de vista da agressividade, na qual sofremos todo tipo de calunias, agressões e na que fizemos 61 pedidos de resposta ao Tribunal Superior Eleitoral e não obtivemos resposta alguma, o que supõe uma violação clara da legislação eleitoral brasileira. 

JG: A sensação da polarização dá uma imagem das coisas. Mas está muito longe da realidade. Pretende expulsar, ou criar imagens dos outros, só podendo existir o seu partido e o seu polo oposto. Estes partidos escolhem o que polarizar, sendo esta lógica superficial e despolitizadora. Esta situação tem um agravante, pois várias gerações, incluída a minha, não tiveram formação politica nas escolas, salvo um ou outro professor que por vontade própria trabalhava algum tipo de formação política dos estudantes. Muitas pessoas não entendem a lógica e a função básicas da separação dos poderes, por exemplo, o que implica a existência de uma sociedade que não sabe bem como funcionam as instituições e como funciona a democracia, onde a pouca informação ou a desinformação acabam por ser um instrumento muito potente para a estruturação da polarização. As pessoas têm pouco ferramental para o diálogo e para participação política no Brasil e, digo às vezes brincando, o futebol, com o fanastismo das torcidas, e os programas de televisão policial, sensacionalista e violenta, as ferramentas mais usadas. Isto favorece a polarização e desfavorece uma visão mais complexa de fazer política que pode trazer outro estilo de preguntas, de debate e reflexão. Mas isto em vez de nos desmotivar, estimula o nosso papel pedagógico na política.

FB: aproximam-se eleições municipais no Brasil. Acreditam que esta situação tão tensa e polarizada pode ver-se refletida na dinâmica local? Ou que a nova legislação sobre as formas de fazer campanha pode condicionar a capacidade de regeneração do ponto de vista local?

JG: devemos ter em conta que desde democratização em 88/89, este é o segundo impeachment pelo que passamos. O outro foi em 1992, contra Fernando Collor. Obviamente este é um momento traumático para qualquer regime democrático, um momento de ruptura. Mas cumprida toda a legalidade do impeachment, o mesmo estimula de certo modo uma reflexão a nível social que se pode materializar nas próximas eleições. O anterior impeachment mobilizou enormemente a juventude, ainda não sabemos como vai ser o resultado neste momento 

O marketing político tornou o debate ainda mais superficial. Cada vez com menos conteúdo e mais imagem, impondo uma lógica da estética sobre o conteúdo.

O impeachment da Dilma não deu tempo para juventude se mobilizar para poder disputar as eleições: começou em fevereiro e acabou agora. O que eu sinto é que há uma polarização. Mas o nível municipal muitas vezes não reflete a conjuntura nacional. Por outro lado, há uma tentativa de usar negativamente o marketing político para vender um produto político e fortalecer determinados candidatos, tal como é descrito no filme “Arquitetos do Poder”, que conta história do marketing político desde o impeachment do Collor. O marketing político tornou o debate ainda mais superficial. Cada vez com menos conteúdo e mais imagem, impondo uma lógica da estética sobre o conteúdo. Acho que ainda estamos vivendo o reflexo desse movimento que vai ser difícil ser contornado sem investir muito em educação e, especificamente, em educação política.  

FB: uma última pergunta. Depois de uma década de governos progressistas ou de esquerda na América Latina, – que tentaram fazer algumas mudanças profundas no discurso clássico da política da região, que vinha de décadas de ditadura – agora, produz-se uma mudança política regional na direção da direita, o que supõe um teste de stress para a democracia em geral. Acham que no caso do Brasil esta mudança à esquerda pode consolidar um sistema de alternância política? Ou, pelo contrário, acreditam que pode diminuir a qualidade democrática do país e por tanto supor um retrocesso a uma época onde a força valia mais que as urnas?

MS: as instituições que garantem a democracia no Brasil estão funcionando normalmente. Mesmo tendo sofrido dois impeachments em um espaço tão curto do tempo, as instituições democráticas foram capazes de assegurar um Estado de Direito nas duas situações. Neste momento vivemos uma situação em que se alternam os protagonistas, mas onde o arranjo político feito se mantém. Por mais que o PT hoje se queixe, foi o PT que colocou Temer na linha sucessória de Dilma. Quem o escolheu para ser vice-presidente foi a Dilma, o Lula e o PT. 

Existe para mim um problema anterior, que me preocupa mais. O fato de que as eleições de 2014 terem sido ganhas em base ao abuso do poder económico, – segundo as informações das investigações que têm sido feitas – tal como o uso de recursos públicos desviados por esquemas poderosos de corrupção. Isto sim altera a democracia e as regras do jogo democrático. Quando um grupo político se alia com um grupo econômico para influenciar de forma ilegítima e ilegal a decisão soberana dos cidadãos, quando pretende de forma artificial e econômica manipular a vontade soberana dos cidadãos, isso é uma forma antidemocrática de acesso ao poder. E isto foi sem sombra de dúvida o que aconteceu nas eleições de 2014. 

A democracia tem que se sustentar e assegurar a alternância de poder. Assegurar as conquistas implica a institucionalização das mesmas. 

Outro aspeto igualmente preocupante é a falta de regras. As eleições perdendo qualquer sentido ético. As pessoas não se importam mais se falam verdade ou se estão caluniando uma pessoa para ganhar votos. Não se poder fazer qualquer coisa ou dizer qualquer coisa para ganhar umas eleições. Pelo menos essa é a minha percepção de democracia. 

A democracia pressupõe a alternância de poder. Em uma democracia não posso ter um projeto tão maravilhoso de país que só funciona comigo e com o meu grupo político. Se tenho um projeto de poder que só funciona assim, então deixa de ser uma democracia. A democracia tem que se sustentar e assegurar a alternância de poder. Assegurar as conquistas implica a institucionalização das mesmas. 

Na América Latina sobretudo, mas também em alguns países da África e da Ásia, as conquistas são partidarizadas, são atribuídas a pessoas ou a partidos que estão no poder. Em uma verdadeira democracia, as conquistas são da sociedade, independentemente do partido ou do grupo que estiver no poder. Estas conquistas devem ser mantidas porque são ganhos da sociedade brasileira. O plano real foi uma vitória da sociedade brasileira, tal como o bolsa família e a inclusão social. A sociedade brasileira não precisa ficar refém eternamente do PSDB para ter estabilidade econômica, do mesmo jeito que não precisa ficar refém ad infinitum do PT para manter as suas políticas sociais. 

Uma democracia pressupõe a manutenção das conquistas, mesmo num ambiente de alternância de poder. 

FB: Muito obrigado por receber a democraciaAbierta. 

 

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