
Evo Morales: a queda do herói da transformação boliviana

A renúncia do presidente boliviano Evo Morales encerra uma era incrível na história da Bolívia. Morales, ex-produtor de coca e primeiro presidente indígena do país, chegou ao poder em uma onda de protestos populares e sofisticada mobilização popular. Seu governo reduziu a pobreza e a desigualdade e elevou o padrão de vida de milhões de pessoas.
Se essas realizações tivessem ocorrido em um país baixo a tutela do Banco Mundial e do FMI, em vez de em um país que se opunha implacavelmente à doutrina neoliberal dessas instituições, a Bolívia hoje seria aclamada como um milagre do desenvolvimento.
Ao mesmo tempo, Morales cometeu erros graves; em particular, o foco do poder em torno de sua própria personalidade e sua acomodação com alguns dos interesses de elite da Bolívia. Isso significa que, embora a Bolívia hoje esteja imensamente melhor do que em 2005, antes da primeira vitória de Morales, ela também é altamente instável, dominada por uma crise política que poderia ter sido evitada.
Luta contra a pobreza
Evo Morales assumiu o cargo em janeiro de 2006. Ele foi eleito por trás de algumas das mobilizações mais inspiradoras contra a globalização corporativa, em particular as famosas "guerras pela água" que contribuíram para a expulsão da gigante corporativa Bechtel depois de uma desastrosa privatização do sistema de água na cidade de Cochabamba em 2000.
Morales foi o primeiro presidente que veio da grande minoria indígena da Bolívia e um dos primeiros a não representar a pequena elite da Bolívia. Sua eleição, por si só, fez com que grande parte da Bolívia se sentisse representada pela primeira vez. Com um forte movimento por trás dele, e muitos dos líderes do movimento tendo cargos no governo, ele começou a trabalhar para transformar o país mais pobre da América Latina. Morales contou com a ajuda de outros líderes da "onda rosa" que vinha varrendo o continente, incluindo Hugo Chávez na Venezuela, Néstor Kirchner na Argentina e Luiz Inácio Lula da Silva no Brasil.
Mesmo para os padrões da América Latina nos anos 2000, as conquistas da Bolívia foram impressionantes. A economia do país cresceu a 4,9% ao ano - um número incrível o suficiente para um país acostumado a altos endividamentos e dependente de empréstimos estrangeiros. O PIB real per capita cresceu mais de 50% em 13 anos, duas vezes a taxa de crescimento da região da América Latina e do Caribe, e hoje a Bolívia ainda possui o maior crescimento do PIB per capita da América do Sul.
Mas o crescimento costuma dizer pouco sobre o desenvolvimento humano e pode acompanhar o aumento da desigualdade e até o aumento da pobreza. Na Bolívia, graças às outras políticas de Morales, as coisas eram diferentes e os benefícios do crescimento foram sentidos pelos mais pobres. A pobreza caiu de 60% em 2006 para 35% em 2017. A pobreza extrema mais da metade - de 38% para 15%.
Isso foi alcançado tanto pelo investimento público maciço quanto pela redistribuição da riqueza. O desemprego na Bolívia quase caiu pela metade (7,7% para 4,4%) em 2008, um valor que não mudou consideravelmente, mesmo após a crise financeira global de 2008. Além disso, o salário mínimo mensal aumentou três vezes. Grandes mudanças foram feitas no sistema educacional, trazendo grandes números de pessoas para a educação em tempo integral. Pagamentos através de transferência social foram dados a milhões de bolivianos pobres, especialmente aos jovens, ajudando a manter crianças nas escolas e dando dignidade aos idosos.
Transformando a economia
Se outros governos tivessem alcançado um sucesso econômico tão impressionante, o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional estariam bradando aos quatro ventos. Só que Morales reconheceu o papel desastroso que ambas as instituições haviam desempenhado na história da Bolívia. Longe de seguir seus conselhos, ele declarou independência desses mecanismos de dívida, austeridade e ajuste estrutural e recusou um novo contrato de empréstimo.
Em vez de seguir a "lógica do mercado", Morales pagou por seu programa com uma combinação de nacionalização e propriedade pública, tributação de grandes empresas e foco na dívida interna vinculada a altos níveis de investimento nacional. Isso incluiu um programa de 'desdolarização' para quebrar a dependência da economia da Bolívia em dólares importados, algo que anteriormente havia removido a capacidade do governo de usar a política monetária para beneficiar os bolivianos em vez do capital internacional.
Quase todas essas políticas foram um anátema para o Banco e o FMI. De fato, o think tank americano CEPR investigou os conselhos do FMI para a Bolívia. O CEPR constatou que a instituição elogiou as políticas fracassadas do governo anterior - embora elas tenham ficado perplexas com o fato de que “um país percebido como tendo um dos melhores registros de reforma estrutural na América Latina experimentou um lento crescimento per capita e não fez praticamente nenhum progresso na redução das medidas de pobreza medida pelo critério da renda". Nunca disposto a aprender com seus erros, o FMI se opôs fortemente às políticas que Morales estava prestes a implementar, expressando "oposição a qualquer tipo de nacionalização ou outras tentativas de aumentar o controle do governo sobre os recursos de hidrocarbonetos”, política instrumental para Morales.
A pobreza caiu de 60% em 2006 para 35% em 2017
De fato, em 2007, Morales anunciou que sairia do Centro Internacional para Resolução de Controvérsias sobre Investimentos (ICSID) do Banco Mundial, um sistema de arbitragem que permite que investidores estrangeiros usem acordos de investimentos para processar governos por tratá-los "injustamente". A Bolívia já havia sido repetidamente alvo desse sistema de "tribunais corporativos", inclusive pela Bechtel, que tomou medidas contra a Bolívia depois que a privatização do sistema de água de Cochabamba foi revertida. A Bechtel process o país em US$ 50 milhões, um valor muito além do investimento que fizeram no país e massivamente inflado por lucros futuros perdidos, prática comum em tais reclamações de arbitragem.
Morales viu que esses tribunais corporativos seriam uma grande ameaça aos seus planos de controlar as multinacionais de hidrocarbonetos e usar a riqueza para beneficiar seu povo. A Bolívia tornou-se, portanto, o primeiro país do mundo a se retirar do ICSID.
Morales viu, junto com outros líderes da "onda rosa", que um país como a Bolívia simplesmente não poderia ser transformado sob as leis neoliberais da economia global, que simplesmente continuariam a sugar riquezas da terra e das pessoas dos países mais pobres. Nem um único país sozinho conseguiria fazer frente à economia global. Somente criando novas instituições que colocam o direito dos latino-americanos à frente dos privilégios do capital internacional é que países como a Bolívia podem realmente se desenvolver. A Bolívia desempenhou um papel fundamental na construção de áreas alternativas de comércio, uma moeda alternativa e um banco público, e embora essas instituições continuassem subdesenvolvidas, criaram as alternativas mais sérias à integração global neoliberal nos últimos 40 anos.
Os erros
Apesar dessas conquistas, o governo de Morales cometeu erros reais - e os erros pioraram com o passar do tempo. A própria constituição de Morales, um documento surpreendente, proibiu um presidente de permanecer por mais de dois mandatos. Em 2014, ele argumentou que seu primeiro mandato não contava como um desses termos porque precedia a constituição. Este ano, ele concorreu ao quarto mandato, depois que um tribunal constitucional permitiu que ele eliminasse os limites de mandato presidencial - um caso que ele só aceitou depois de perder um referendo que buscava eliminar os limites do mandato.
Pablo Solón, ex-colega de Morales e seu embaixador na ONU, acredita que esses problemas começaram cedo, com uma cooptação bem-intencionada, mas equivocada, dos líderes do movimento social no partido e no governo de Morales, enquanto o poder ser tornava cada vez mais focado na personalidade e menos capaz de tolerar críticas. As alegações de irregularidade eleitoral nas eleições recentes, por mais profundas que sejam, sugerem um crescente desinteresse pela responsabilidade democrática. O chefe do Democracy Center, Jim Schultz, cuja ONG de esquerda foi alvo do governo de Morales, é um forte crítico da deterioração do espaço democrático na Bolívia. Ao escrever sobre a recente eleição, ele diz que a afirmação de que o que está acontecendo na Bolívia é simplesmente um "golpe" ou uma história de "império versus governo radical" é muito simplista e não ajuda aqueles que realmente querem construir um tipo diferente de sociedade. Inclusive, ele diz que é absolutamente perigoso: "É assim que guerra civis começam".
Mas o declínio do compromisso com a democracia criou um problema mais profundo - uma crescente falta de radicalismo real no programa econômico de Morales. Como Pablo Solón diz sobre Morales:
“Depois de obter a maioria absoluta [no Congresso], ele não aprofundou o programa original que tínhamos, mas buscou pactos com setores da oposição, com base em concessões sérias, e em particular com o setor de agronegócios das terras baixas do país, que sabotaram seu governo durante o primeiro mandato. Essas concessões incluíam de tudo, desde permitir organismos geneticamente modificados a promover biocombustíveis e a exportação de carne, e de não seguir a regulamentação das funções socioeconômicas de propriedades de médio porte e propriedades de escala comercial, que permitiam que grandes proprietários de terras preservassem suas propriedades de terra".
Ele viu a necessidade de romper com as instituições neoliberais e construir uma forma diferente de integração com os demais presidentes da "onda rosa" na América Latina
Embora os recentes incêndios na Amazônia no Brasil tenham sido bem relatados, com muitos apontando corretamente o papel específico do líder fascista Bolsonaro, poucos jornalistas apontaram que incêndios semelhantes estavam ocorrendo na Bolívia. Enquanto Morales reconhece fortemente as mudanças climáticas como uma ameaça à humanidade, sua crescente proximidade com o agronegócio o viu introduzir políticas diretamente ligadas ao desmatamento devastador.
Embora as exportações de hidrocarbonetos, minerais e produtos agrícolas, se reguladas e tributadas adequadamente, possam desempenhar um papel no desenvolvimento de um país como a Bolívia, o tamanho e a dependência excessiva desses setores estão agora impedindo a democratização e diversificação da economia e levando o governo a entrar em conflito com grupos que deveriam constituir seu eleitorado principal, como indígenas pobres. Um contrato recente de 70 anos de exportação de lítio para Alemanha foi confrontado protestos em massa quando moradores descobriram quão baixos seriam os pagamentos de royalties.
A atual crise política foi explorada pela direita na Bolívia, bem como por líderes de direita de outros países, incluindo Trump e Bolsonaro. E é quase certo que o que vem a seguir na Bolívia será muito pior que Morales. Mas nada disso significa que o governo deve ser isentado de seus erros. A crise já vem há muito tempo e poderia ter sido evitada com políticas diferentes.
Onde procurar esperança? À medida que uma direita encorajada ressurgiu em toda a América Latina, uma nova onda de grupos de base e protestos de rua surgiu para se opor a esses líderes neoliberais e fascistas. As mobilizações maciças no Chile são a manifestação mais óbvia desse movimento, mas a derrota de Macri nas recentes eleições na Argentina e a resistência do movimento social em larga escala a Bolsonaro no Brasil também nos dão muita esperança, assim como o ainda poderoso movimento indígena na Bolívia. Essa esperança não começa com os governos, mas com a força e a independência do movimento - que foi o que deu poder à "onda rosa" em primeiro lugar. Como Pablo Solón comenta: “Temos que construir e reconstruir algo diferente e aprender com nossos erros”.
Nunca devemos esquecer os sucessos substanciais dos governos de Morales. Em pouco menos de 15 anos no poder, ele alcançou muito mais do que a maioria dos países consegue, precisamente porque viu a necessidade de romper com as instituições neoliberais e construir uma forma diferente de integração com seus colegas presidentes da "onda rosa" na América Latina.
Mas, à medida que o período de otimismo nesses governos desaparece, e os movimentos sociais retornam às ruas para enfrentar os governos de direita novamente, vamos lembrar também dos erros de Morales. Não fazer isso não nos ajudará a construir algo melhor e mais forte.
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